A pandemia, que parou cidades inteiras em todo o mundo, provocou uma série de programações virtuais como debates on-line sobre o tema com infectologistas, agentes da saúde pública, médicos, políticos, mas também suscitou discussões entre arquitetos e urbanistas preocupados com a qualidade do ambiente construído, com o futuro das cidades no período pós-pandemia, reflexões sobre a profissão, entre outras questões. As medidas de isolamento social ativaram uma série de discussões sobre o espaço: nas habitações, o “novo normal” demandou novas configurações espaciais para acomodar atividades em casa – do home-office, ao homeschooling e até as atividades físicas –, assim como impactou na percepção do espaço – no setor imobiliário constatou-se proporcionalmente um aumento na procura por casas ou por apartamentos maiores e com varandas. Na Roda de Conversa Virtual “Arquitetura em contexto de Pandemia: velhas questões, novos caminhos”, promovida pelo Grupo Projetar e pela Revista Projetar, uma das questões recorrentes e ponto para reflexão foi “a importância de apreendermos com a história, utilizando os conhecimentos adquiridos em outras situações catastróficas para compreender o presente e antecipar o futuro” (1).
Alinhado com estes debates e reflexões, não poderia haver melhor timing para a publicação do livro Modern Architecture and Climate. Design before Air Conditioning, de Daniel Barber, que, a partir de uma seleção complexa e multifacetada de eventos do passado, analisados como estudos de casos, discute historiograficamente ideias, discussões e projetos de um “modernismo climático” e o interesse em sistemas de condicionamento natural e mecânico. Evidentemente que o autor não tinha como prever este cenário, mas o assunto abordado no livro é pertinente e relevante para o atual contexto, em que, além das recomendações do distanciamento físico e do uso de máscaras, segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, há indicações de se evitar ambientes fechados e condicionados artificialmente, favorecendo, em contrapartida, os ambientes com ventilação natural. A pandemia forçou o planeta a se recolher em um interior que, na teoria, é tecnologicamente conectado com o mundo (apesar das grandes desigualdades sociais), porém fisicamente isolado do contato social, diferindo de um interior planetário colocado por Barber, enquanto uma experiência interior consistente, igual e aclimatizada em todo o mundo, apesar das diferenças culturais e climáticas. Com a pandemia, o interior planetário ganhou nova conotação, assim como novos desafios, mas ainda mantendo velhas preocupações que poderiam ter sido incorporadas com as lições que a história oferece. Em outras palavras, o livro mostra que a história indica aprendizados que até hoje não foram completamente apreendidos, e a humanidade segue enfrentando desafios de séculos anteriores.
A pertinência do livro se expande para outros assuntos contemporâneos de extrema relevância, como a preocupação com o meio ambiente, uma vez que o autor está constantemente lembrando do impacto que os sistemas mecânicos de ventilação têm no consumo de energia e, por conseguinte, no meio ambiente. Com isso, Barber esclarece seu interesse em uma historiografia que contribui com o debate contemporâneo e urgente das mudanças climáticas, com vistas a “futuros possíveis” e, ao mesmo tempo, entrelaçando temas distintos. Daniel Barber é um acadêmico da Universidade da Pensilvânia (UPenn) com um longo histórico de publicações relacionadas com a temática da história da arquitetura moderna e das questões ambientais e climáticas, de modo que tem contribuído no desenvolvimento da noção environmentalism.
O livro é dividido em seis capítulos, agrupados em duas partes, sendo a primeira sobre a “Globalização do Estilo Internacional” e a segunda sobre a “Aceleração americana”, concluindo com “O Interior Planetário”. Cada capítulo é narrado a partir de uma palavra-chave, de modo que o primeiro capítulo se intitula Obstáculos, seguido por Risco, Testes, Controle, Cálculo e, por último, Condicionamento, o que é revelador do percurso narrativo do modernismo climático sucumbindo ao ar condicionado (2). Esta objetividade é, inclusive, a marca registrada da escrita do livro. “No lugar certo”, o autor expõe seus objetivos em várias passagens, em especial na introdução, onde destaca a relação entre arquitetura moderna e clima, e apresenta as fachadas enquanto instrumento técnico e mídia de comunicação e representação cultural.
Interessante notar a construção de uma narrativa que entrelaça referências bibliográficas de distintas áreas da arquitetura como história e conforto ambiental. Em outras palavras, trata de Le Corbusier, Richard Neutra, aborda debates promovidos pela House Beautiful, mas também explora as referências dos irmãos Olgyay, sob uma perspectiva historiográfica, em que discute o desenvolvimento das suas pesquisas, métodos, discursos publicados e debates acadêmicos em eventos científicos, bem como os desdobramentos da ASHRAE (American Society of Heating, Refrigeration and Air-Conditioning Engineers). Poucos são os trabalhos que aproximam estes universos, embora sejam desejáveis, como já dizia Groat e Wang (2013), em seu compêndio sobre métodos de pesquisa em arquitetura, a respeito da tendência em dividir o “conhecimento” em domínios particularmente associados a subdisciplinas (3).
Além desta interdisciplinaridade, a narrativa é construída a partir de uma diversidade de fontes de pesquisa e de dados, incluindo revistas de arquitetura, congressos, livros, artigos de profissionais de diferentes formações — arquitetos, meteorologistas, engenheiros, antropologistas, médicos, decoradores, historiadores. Neste mesmo livro é possível encontrar discussões da House Beautiful e compreender o papel desta revista nas questões climáticas com o Climate Control Project, para além dos projetos do Pace Setter House e da defesa de uma arquitetura americana – American Style.
Vale destacar as ilustrações que variaram entre imagens de edifícios (fachadas), gráficos (muitos de natureza climática) e desenhos (preferencialmente cortes). As imagens apresentam uma centralidade na narrativa: são exploradas no campo explicativo e como argumentos para a trama que se desenrola – do mesmo modo que foram utilizadas enquanto ferramentas do seu tempo para justificar as ideias em questão. Segundo o autor, as imagens técnicas são entendidas como instrumento para servir como meio de comunicação e reflexão cultural pelos agentes históricos. Ao longo do livro, podem ser visualizadas várias fachadas e cortes que ilustram as estratégias bioclimáticas e simbólicas em edifícios de diferentes funções, seja residencial, comercial – em especial, as seguradoras – e governamental – como as propostas em Porto Rico e as embaixadas americanas. Em suma, a opção de valorizar o recurso imagético, em particular as seções diagramáticas dos edifícios, ricamente detalhadas nos projetos dos irmãos Roberto, por exemplo, tem sido objeto de valorização no discurso arquitetônico contemporâneo (4), o que indica mais um interessante diálogo com a literatura atual.
A publicação interessa particularmente ao público no Brasil, haja vista que a arquitetura moderna brasileira desempenha um papel protagonista na trama, exposta ao longo do segundo capítulo, intitulado Riscos (Risks). Considerando-se o conceito de “sociedade de risco”, conforme cunhado por Ulrich Beck, para Barber, a arquitetura moderna no Brasil, enquanto parte do processo de industrialização, foi marcada pelo risco, considerando-se os investimentos que o país recebia para se desenvolver economicamente. Emblemático de uma economia pautada por riscos são os edifícios de seguradoras, como o Instituto de Resseguros do Brasil – IRB e o Edifício Seguradoras – ambos projetados pelos irmãos Roberto e cujas obras apresentam papel de destaque –, os quais vieram no esteio dos investimentos e da modernização do país, visando perspectivas futuras. Outros exemplos que visavam perspectivas futuras no contexto de modernização incluíam o MES, a ABI, o aeroporto Santos Dumont, entre outros, de modo que todos reforçam a narrativa que entrelaça risco, arquitetura moderna e dispositivos de proteção solares para a construção de ambientes de trabalho que suportariam as atividades para o desenvolvimento do país: “Shaded buildings facilitated the industrialization of Brazil by producing operable and consistent interiors and shepherded the entry of its economy, culture and people in a new relationship with global flows and patterns” (p. 127). Evidentemente que a interpretação de “risco” não deve ser compreendida como uma particularidade do caso brasileiro, mas também pode ser interpretada no contexto de disseminação das embaixadas americanas no segundo pós-guerra – como explorado em parte do capítulo 3, intitulado Testes (Tests) –, quando as tensões da Guerra Fria incrementavam ainda mais a noção de risco e de perspectivas futuras, inclusive, a nível planetário.
O autor pontua uma circularidade de ideias entre Le Corbusier e os arquitetos brasileiros, mais precisamente Costa, e sugere, ainda, uma inflexão no fluxo de ideias modernas no tocante às estratégicas bioclimáticas, as quais “movem do hemisfério sul para o norte”, uma vez que arquitetos ao redor do mundo admiravam a arquitetura brasileira e suas soluções de sombreamento dos edifícios, com os brises soleils, as projeções horizontais e verticais, e, consequentemente, o que estas fachadas representavam – lições de projeto pertinentes ainda hoje. Para Barber, “Climate was central to many aspects of Brazil´s modernization efforts, architectural and otherwise” (p. 125). Vale notar que este fluxo de ideias viu estratégias bioclimáticas utilizadas no Brasil serem experimentadas nos projetos das embaixadas americanas na segunda metade da década de 1950, com a política do New Look, o que reflete a afirmação de que a globalização do estilo internacional também foi a brasilianização da arquitetura, como discutido pelo autor (5).
Ao mesmo tempo em que estabelece um diálogo com a arquitetura moderna brasileira, por outro lado, há uma série de omissões de experiências de outros países de clima quente, uma vez que a narrativa ainda é predominantemente estadunidense, apesar do protagonismo de muitos imigrantes que atuaram no país – como Richard Neutra e os irmãos Olgyay, os quais foram contemplados com capítulos inteiros. Algumas omissões são devidamente esclarecidas no corpo do texto, como a discussão de Arquitetura Tropical e a produção de Jane Drew e Maxwell Fry, em função da profusão de publicações já existente sobre tais temas e profissionais. No Brasil, faltou maior detalhamento da obra de Luís Nunes (6), que poderia enriquecer muito o debate em questão, assim como a lacuna da obra de Delfim Amorim e suas soluções de peitoril ventilado.
Muito mais ainda poderia ser apontado sobre o livro, mas vale a pena ressaltar outras resenhas que também revelam a pertinência e a atualidade do conteúdo que interessa globalmente. Merece destaque a resenha de Russel Fortmeyer (7), publicada na Architectural Record em outubro de 2020.
Por fim, em tempos de pandemia, o “interior planetário” foi além de um desejo, mas uma necessidade de saúde pública. A pandemia deixou claro que o desejo de um interior globalmente condicionado a partir de normas é impossível, muito mais em função das desigualdades socioeconômicas do que das diferenças climáticas, conforme discutido no recorte temporal do livro. O fato é que para uns o interior foi condicionado ambientalmente e confortável em termos de espaço, possibilitando o devido distanciamento social, enquanto que para outros o interior sequer foi o lugar seguro contra a Covid-19 diante da aglomeração de habitantes e/ou da ineficiência do saneamento básico, além da impossibilidade de exercer o home office para a grande maioria da população, levando-a a sair de casa.
sobre a autora
Mariana Fialho Bonates, é Professora Adjunta da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Possui graduação no Curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2004, mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAU-UFRN) em 2007, e doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (MDU-UFPE) em 2016.
notas
NA – O livro é disponível em versão capa dura e em formato e-book. Esta resenha é da versão e-book, que conta com um significativo número de ilustrações preto e branco (desenhos e fotografias), mas também imagens coloridas.
1
ELALI, Gleice Azambuja. Roda de conversa arquitetura em contexto de pandemia: velhas questões, novos caminhos – apresentação. In: Projetar, Projeto e Percepção do Ambiente, v. 5, n. 3, set. 2020, p. 194-196 <https://bit.ly/3mxB0Ss>.
2
No original, os capítulos são respectivamente intitulados: Obstacles, Risks, Tests, Control, Calculation e Conditioning, concluindo com The planetary interior.
3
GROAT, Linda; WANG, David. Architectural research methods. 2nd edition. New Jersey: John Wiley & Sons Inc., 2013.
4
Ver, por exemplo, MONTANER, Josep Maria. Do diagrama às experiências, rumo a uma arquitetura de ação. Tradução Maria Luisa de Abreu Lima Paz. São Paulo, Gustavo Gili, 2017.
5
Esta inflexão também foi identificada por Barry Bergdoll, como citado por Barber. Fernando Lara vem constantemente discutindo esta inversão em algumas publicações.
6
Luis Nunes foi brevemente citado na página 124.
7
FORTMEYER, Russel. Review of 'Modern Architecture and Climate: Design Before Air Conditioning' By Daniel A. Barber. Architectural Records, out. 2020 <https://bit.ly/3Bw5pER>.