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reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
Resenha-ensaio sobre o livro “Corpo Opaco”, de Flávio Nassar, publicado em 2019 pela Editora 7 Letras. Como um arquiteto e urbanista textual, Nassar reopera a estética e a estrutura da poesia concreta em um texto-imagem neo-barroco-neon.

english
Review-essay on the book “Corpo Opaco” by Flávio Nassar, published in 2019 by Editora 7 Letras. As a textual architect and urbanist, Nassar reoperates the aesthetics and the structure of Concrete poetry into a neo-baroque-neon image-text.

español
Revisión-ensayo sobre el libro “Corpo Opaco”, de Flávio Nassar, publicado en 2019 por la Editora 7 Letras. Como un arquitecto y urbanista textual, Nassar reabre la estética y la estructura de la poesía concreta en una imagen-texto neo-barroco-neon.

how to quote

NUNES, Mateus Carvalho. Tríptico ao corpo de Nassar. Resenhas Online, São Paulo, ano 20, n. 239.04, Vitruvius, nov. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.239/8353>.


1.

EnCharcado de água barrenta
feito jiboia que engole um (peixe-)boi
(não)
saio deste corpo opaco

sem saber
se saí mais limpo ou mais sujo que entrei
se me enterrei na água ou me molhei de terra
se fui batizado ou atolado
sem ar

o homem do fim do mundo
caminha sobre a áGuamá
segura minha cabeça
debaixo da água turva

baptismal
(ainda crê?)

 

2.

escrito em pena de ave preta
que sobrevoa a carcaça deste corpo opaco
sobre a mesa da ceia
ao lado da mãe que chora
a perda do filho
a eterna espera
a revelação
o manto
o alívio

(tudo que acreditavas que era trans-lúcido é opaco)

beija-me com os lábios de tua boca

be
lém

a ponta da língua toca o palato

amém

 

3.

antídoto da Antígona
anticorpo antidédalo
tratado de arquitextura para um barroco proto-apocalíptico

metafísica canibal
braS/Zil
ama só de raiva

parla


Post-scriptum (ou a resenha em si)

Corpo Opaco é a estreia de Nassar na poesia, mesclando estéticas da poesia concreta, QR Codes, métricas rígidas e haicais, adornando-as e floreando-as com belos laços de seda e pétalas de peônia e explodindo tudo depois em uma bomba textual anárquica. Flávio Augusto Sidrim Nassar, nascido em Belém do Pará, em 1952, é escritor, arquiteto, urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Este livro é o melhor dos prédios que Nassar já construiu.

Nassar é um contador de histórias de fantasmas para gente grande. Coordena o maior órgão de pesquisa sobre o arquiteto bolonhês Antônio José Landi (1713-1791) no mundo (1), embora seja convicto de que a preservação do patrimônio arquitetônico em Belém é impossível. No capítulo “Cidades opacas”, digere e expele imagens e textos sobre cidades idílicas, utópicas e pavorosas, sob o ritmo das cidades invisíveis de Italo Calvino e a decadência indiscutível defendida por Nassar sobre a cidade de Belém, uma cidade na Amazônia sempre às margens da modernidade, sempre uma tentativa fadada ao fracasso, um sempre “quase”. É recorrentemente chamado por jornais da cidade quando o assunto é de natureza crítica, como colapso no sistema de transporte público, alagamentos em assentamentos precários e a presença do frenético comércio ambulante no centro histórico de Belém. There’s no more hope, but crying is a waste of time.

Poema de Corpo opaco, de Flávio Nassar
Imagem divulgação

Enquanto Ernesto M. de Castro de Melo anuncia “o fim visual do século XX” (2), Nassar anuncia o fim dos tempos, o Armagedon (3), o apocalipse, o fim de tudo – e o faz também em seu texto, deleitando-se, ruminando, vomitando e repetindo o processo. O homem do fim do mundo – e do início de si – que é descrente da beleza pura, do sublime absoluto e jocosamente brinca com palavras-imagens. É necessário apontar que tal descaso só é possível com agudíssima erudição. Sua biblioteca é mítica, atlântica, borgeana-joyceana. Fala catalão e córsico, e possivelmente pediria para recitar o Cântico dos Cânticos como suas últimas palavras antes de ir à forca ou à guilhotina – onde a corda seria uma cobra e a lâmina seria uma vitória-régia. Ao subir aos céus, cuspiria lá de cima, como o vizinho velho que fura a bola das crianças com faca quente e corta suas pipas. Como Eça de Queiroz, tem a plena fé de que não se pode acreditar em nada:

Acreditei em futebol
não acredito mais 

acreditei na humanidade
na santíssima trindade
não acredito mais

acreditei no brasil
na ciência
na virtude da paciência

eu não acredito em Yoko
eu não acredito em mim (4)

Absteve-se da fé em Deus e nos homens há tempos, e procura nesse desassossego estético pistas satíricas e as joga como merda no ventilador em outdoor em via pública, para todo mundo rir. Cultiva e caça essas gemas escatológicas como um tesouro – o único possível neste plano. [Confessou-me, secretamente, às vésperas do lançamento de seu livro, aos seus 67 anos de idade, que estava com vergonha de que sua mãe o lesse por ter escrito palavras como “cu”, “orgasmo”, “foder” e “putaria”.] Flerta com a liberdade dionisíaca depois de ter sido aprisionado por muito tempo por uma esperança romântica. Em seu entrópico Corpo Opaco, Nassar demonstra a estupidez humana no mais alto grau de maturidade poética.

Poemas de Corpo opaco, de Flávio Nassar
Imagem divulgação

Poemas de Corpo opaco, de Flávio Nassar
Imagem divulgação

Poemas de Corpo opaco, de Flávio Nassar
Imagem divulgação

Poemas de Corpo opaco, de Flávio Nassar
Imagem divulgação

notas

1
O Fórum Landi, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU UFPA), é um órgão responsável pelo estudo e pela salvaguarda do patrimônio histórico material da cidade de Belém, especialmente vinculado à obra do arquiteto bolonhês Antônio José Landi (1713-1791).

2
CASTRO, Ernesto M. de Melo e. O fim visual do século XX & outros textos críticos. São Paulo, Edusp, 1993.

3
NASSAR, Flávio. O Armagedon da cidade do Pará e a polêmica ressurreição do EngoleCobra. Belém, Secult, 2001.

4
NASSAR, Flávio. Corpo opaco. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 2019, p. 14.

sobre o autor

Mateus Carvalho Nunes é doutorando em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FL UL), com período sanduíche na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP). Pesquisador Integrado do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (ARTIS-IHA-FL-UL). Arquiteto e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU UFPA).

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resenha do livro

Corpo opaco

Corpo opaco

Flávio Nassar

2019

239.04 livro
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