Um velho ditado inglês diz que a prova de um pudim é seu gosto – the proof of the pudding is the taste. Talvez isso valha para diversas das realizações humanas e para o abismo que vemos muitas vezes entre traço e resultado ou, como diziam nossos poetas, a distância entre intenção e gesto.
Refiro-me aqui a ideias do mundo da arquitetura e da residência. Riscos que muitas vezes vieram eivados de intenções (geralmente boas) e que passaram pelo escrutínio que só a passagem do tempo pode conferir.
Como os apartamentos duplex. Nada mais soviético: a proposta era a princípio se economizar em áreas comuns e se obter uma maior racionalidade para que todos pudessem morar. Morar com poucos metros para cada um, mas todos tendo moradia. Não qualquer moradia, mero abrigo, uma nova possibilidade de se morar em coletividade.
Entre o emblemático edifício Narkomfim, de Moisei Ginzburg e Ignaty Milinis e os duplex que hoje fazem a alegria das classes abastadas no Brasil e do mercado imobiliário, o que temos é história. Ginzburg talvez tenha sido o mais intelectualizado e arrojado arquiteto de seu tempo, entrando em boas polêmicas a respeito do futuro da cidade soviética, inclusive com seu conhecido Le Corbusier. E uma das imagens de um apartamento do Narkomfim e seus primeiros usuários nos traz uma mulher estudando. Sim, o imóvel era para o homem novo e a mulher nova teria a possibilidade de se afastar das amarras da vida domestica e meramente familiar.
É isso que Sabrina Fontenele nos traz. A história desse modo de se pensar a habitação e suas transformações ao lidarmos com a passagem do tempo e com as mudanças de latitude e contexto social.
O duplex aportou também em Marselha, França no contexto da reconstrução que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, gerando outro edifício importante, dessa vez por Le Corbusier e equipe. A Unité d’Habitation não é aqui analisada em seu projeto apenas, o que já foi feito muitas vezes, mas em seus usos e no que algumas imagens nos permitem ver.
Se estes edifícios traziam embutidos novos possíveis modos de se viver nas cidades, as imagens que a autora nos traz nos obrigam a um enfrentamento: somos/fomos modernos? Ou modernizamos alguns espaços a partir de uma experiência fraturada de modernidade, clivada por gênero? Afinal, nessa unidade modernista emblemática, a mulher seguia bordando enquanto o homem realizava um trabalho intelectual em sua mesa de trabalho.
O Edifício Japurá, no centro novo de São Paulo, de certa forma retoma os princípios vinculados à habitação social dos primeiros duplex. Trata-se aqui de economia de recursos em habitação pequena e racionalizada. Por outro lado, Brasil e nossos padrões de se morar, o duplex agrada ao usuário por lembrar uma casa. Ao mesmo tempo, as ilustrações que acompanham as plantas do conjunto mostram mulheres em seus papeis de cuidado de si e da família: no cabelereiro, tomando sol, lavando roupa. Ou, quando, em uma versão de habitação de interesse social em São Paulo, desenhos mostram quais seriam as atividades femininas naquele pequeno duplex na área central.
Em versão abastada de autoria de nosso maior arquiteto, Oscar Niemeyer, os duplex têm seu arranjo invertido, quartos embaixo da sala, para propiciar uma intensa vida social sem que o ruído acorde os vizinhos.
Tais exemplos nos conduzem, mais uma vez para os usos, em especial para a vida doméstica da principal usuária dos espaços domésticos: a mulher. Que aparece nesses ambientes em múltiplas atividades, dos cuidados cotidianos com a casa e com o outro até as festividades e momentos de comensalidade.
Isso tudo desfaz as idéias dos primeiros duplex? De modo algum, apenas nos mostra que um projeto não se encerra jamais em si mesmo e que suas apropriações posteriores fazem parte de sua história e nos contam muito sobre os mundos sociais nos quais estão imersos. Por mais que alguns arquitetos modernos pensassem nesses espaços para qualquer homem em qualquer contexto urbano.
Após décadas de extrema atenção aos espaços urbanos, temos nos últimos anos, uma bem-vinda emergência de estudos sobre domesticidade e seus espaços, vida privada, papéis de gênero, idade e classe social nos interiores. Soma-se a isso uma pandemia, que recolocou o espaço domestico e seus dilemas em evidência. Parece que, de repente, todos nós percebemos nossas casas em seus potenciais, mas também em seus problemas.
Escrito antes desse trágico momento, fruto de muita pesquisa, o livro de Sabrina nos alerta para nossos espaços, doméstico e urbano. Para as intenções cumpridas e aquelas que deixaram a desejar. Para os apartamentos em espaços urbanos e sociais diversos, e para o lugar das mulheres e homens nestes e na cidade.
Para lermos agora, desejando e contando os dias de retomarmos as ruas, quem sabe, tendo aprendido um pouco mais sobre nós mesmo, leitores prontos para fazer valer o direito à cidade a todos e todas.
nota
NE – o presente texto é o prefácio do livro comentado.
sobre a autora
Silvana Barbosa Rubino é professora livre-docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.