“A casa é uma máquina de morar”
Le Corbusier
“O espaço faz parte da arquitetura”
Oscar Niemeyer
“Menos é mais”
Mies van der Rohe
Não terá sido apenas por conta de um prolongado processo de gestação acadêmica que a oportunidade de conhecer o trabalho da arquiteta Márcia Gadelha Cavalcante foi por tanto tempo adiado.
Aceitei a responsabilidade de fazer a apresentação de um livro aguardado pelos que conheciam a sua existência, e que agora, em roupagem física irretocável, traz surpresa grata aos que o terão finalmente, impresso em papel, como já não se fazem habitualmente os escritos publicados.
Percebi, a uma primeira leitura, que sob o título linear de “Edifícios de Apartamentos em Fortaleza: universalidades e singularidades”, o que poderia parecer simples exercícios disciplinados de uma formalidade acadêmica, esconde-se o propósito de aprofundar o estudo sobre as formas de moradia que se foram delineando, ao longo de um lento e incerto processo de urbanização, em uma cidade brasileira. Em Fortaleza, precisamente, laboratório destes aplicados estudos.
O projeto origina-se, como a autora indica, nas questões próprias ao “conforto ambiental”, nos desafios de uma dissertação de mestrado, e ganha corpo e amplitude do ponto de vista teórico e histórico, para nos fixarmos apenas nestes campos da arquitetura e das ciências sociais, no seu trabalho de tese. O livro não surge, entretanto, como ocorre nesses árduos trâmites acadêmicos, da versão disciplinada de uma tese, composta sob estrita orientação e apreciada por uma comissão examinadora. De fato, como livro, é produto novo, abriga texto autônomo, pois origina-se na elaboração intelectual que acompanha a rotina da construção de uma tese de doutorado. Porém, escapa à ritualística do processo acadêmico, e por essa razão desperta singular interesse pela sua leitura.
Não sendo arquiteto, mas persistente trabalhador de áreas sociais afins, busquei, para desincumbir-me do convite que me fora feito, infiltrar-me pelos meandros de uma abordagem sócio-antropológica para a contextualização dos aspectos econômicos, sociais e urbanos que permeiam todo o texto, até mesmo quando autora parece pretender fixar-se em questões específicas do universo da arquitetura. Porém, não pretendo ir tão longe. Mais vale compartilhar uma conquista em vez de esquadrinhar, por mera vaidade intelectual, as intimidades de um processo criativo bem sucedido. Ademais, a autora não se descuidou desses aspectos cruciais, como os leitores descobrirão, ainda que o objetivo central da sua pesquisa e dos seus ensaios teóricos a tivessem conduzido a desafios consideráveis, na medida justa do espectro do projeto que se propusera levar a termo.
A moradia e a necessidade social de morar junto antecede ao processo urbano. Morar ao resguardo dos infortúnios da sorte e da agressividade do meio consistia, nos começos difíceis para a sobrevivência, em proteger-se da inclemência da natureza, reunir-se em tribos e grupos, defender as suas provisões, compartilhar e disputar a posse de bens e a imposição da autoridade entre os seus. A urbanização cuidou de disciplinar a expansão das moradias e controlar os hábitos de convivência com a apropriação de espaços coletivos.
Tomei a palavra antropoteca para proceder a uma redução, aparentemente distante das injunções e imposições da ciência – da moradia, das casas de corredor que vimos conhecer em nossos arruados ancestrais, dos conjuntos residenciais, apartamentos e outras habitações coletivas. Como biblioteca (do grego, biblio, livro, e theca, depósito – depósito de livros), a imagem de uma antropoteca, (antropos, seres humanos theca, depósito – depósito de humanos) corresponde ao espírito e à destinação do que pode tornar-se objeto central da arquitetura.
Márcia Gadelha Cavalcante reconstrói, neste livro, a lenta e preguiçosa ocupação do solo, neste lugar da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, como nele surgiram as primeiras habitações e nos tornamos vilarejos de tão poucas almas; como crescemos incorporando vidas e expulsando as de menor valia para as periferias, como nos tornamos cidade, pela acumulação de riquezas e a absorção das migrações espontâneas, algumas delas indesejadas. Tudo a transcorrer, ao longo do tempo, no arruado isolado em uma capitania esquecida e por longo tempo abandonada.
A expansão das antropotecas por estes lados da colônia, as suas origens e a natureza que marcam a sua capacidade de adaptação a circunstâncias sociais e econômicas pertinentes, são retratadas com traços precisos neste livro – valorizado pelo conteúdo analítico de um texto objetivo e consistente, nem por isso menos atraente.
Morar, trabalhar, divertir-se, exercer o comércio, cuidar da guarda dos bens da cultura, a burocracia, o poder do Estado e as celebrações da fé – tudo o que representa a imagem de vida associativa, para o bem ou para o mal, são extensões da vida em sociedade. Do morar, da habitação que protege e guarda, defende e amplia os laços de conviviabilidade, Márcia extrai o motu continuum do seu trabalho. Dessa tarefa cuidadosa ressalta a desordem urbanística na qual a cidade de Fortaleza, inculta e bela, cresceu e ocupou largos espaços. Os projetos urbanos e as suas correções fazem-se, como transparece, pela legislação corrente dos códigos municipais, exemplo de intervenção do poder público, nem sempre bem sucedida. Faltam-se consequência e planejamento sistemático, atributos aparentemente alheios à nossa cultura administrativa.
A percepção sociológica do processo de urbanização e de expansão das formas de ocupação dos espaços coletivos, como Fortaleza expandiu-se e tornou-se o que é atualmente não projetou sombra sobre o olhar incisivo da arquiteta que constitui, afinal, a essência do seu traço intelectual. Com pena ágil (metáfora que resiste ao assédio da expressão virtual), a autora abre diante dos nossos olhos o traçado histórico de como o perímetro central da cidade, crescido e avantajado, elastecido por concessões e privilégios, pôs-se a tanger os desvalidos para a periferia e os bem havidos para sítios de pessoas de ganho e propriedades. A área central perde, progressivamente, a função residencial, os pobres conhecem o seu lugar e plantam as suas habitações por onde restam áreas devolutas, graças a indulgente politica municipal. Os ricos, os bem-havidos, os assemelhados, rendeiros ou funcionários do Estado, assentam-se por onde surgirão estâncias, sítios e prédios dignos da ocupação imobiliária. Alagadiço, Benfica, Jacarecanga, a praia de Iracema, o Outeiro e a Aldeota darão continuidade a esta expansão que chegará, por fim, ao Meireles e ao porto das Dunas. O que sobra ou excede expande-se pelos vazios do amplo entorno da cidade. A periferia, como ocorre nas grandes concentrações populacionais, enlaça o epicentro da urbe, por onde se espalham os instrumentos mais visíveis do poder e multiplica-se nos espaços ocupados por uma cidade marginal, outrora denominada favela, rebatizada como comunidade, como se esta categorização lhes conferisse cidadania, a ressalva bem intencionada das perdas acumuladas e recuperação de uma certa dignidade esquecida.
A grande Fortaleza, a urbe que abraça e asfixia para lá de dois milhões de habitantes, surge, entretanto, das expulsões que a especulação imobiliária vai impondo, espécie de força centrípeta que induz e comanda a expansão urbana, em um processo perverso e incontrolável de seleção natural dos seus moradores e dos recolhidos pela indulgência do Estado às antropotecas que se vão multiplicando no rastro de uma riqueza mal compartilhada.
O projeto gráfico que veste o livro valoriza a profusão de imagens e de plantas que enriquecem o texto e dá visibilidade às formas assumidas, a partir do início dos anos 1900 – também ousamos viver os nossos “anos dourados”. E o faz pela afirmação de um arquitetura refrescada pelo talento de uma geração de arquitetos e engenheiros, formados, na sua grande maioria, aqui mesmo por esta universidade, sinal expressivo do ensino superior público no Ceará.
Não basta à universidade pesquisar e produzir conhecimento, encorajar o debate e o senso crítico entre os da sua grei. Não lhe basta a capacidade intelectual e científica para a transmissão dos saberes – impõe-se-lhe que esse legado de trabalho e esforço individual e coletivo seja compartilhado com a sociedade, em uma preciosa socialização dos haveres guardados da inteligência.
O lançamento de mais um livro, no contexto de um ambicioso projeto editorial, como demonstra a Universidade Federal do Ceará, nestes 66 de existência, revela o reconhecimento do papel social e intelectual da universidade – e do processo civilizatório que lhe coube impulsionar desde as suas origens.
sobre o autor
Paulo Elpídio de Menezes Neto é cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.