A construção de narrativas históricas é um processo complexo e nunca linear que resulta das dinâmicas internas entre o narrador (pesquisador) e os documentos que lhe servem de substrato para a escrita da história. Embora possamos pensar que o narrador detenha um lugar privilegiado, pois é aquele que engendra e emite a “fala”, é preciso lembrar que sua atuação é condicionada pelo acesso às fontes de informação e, neste aspecto, os arquivos desempenham um papel fundamental. Nesse quadro, os arquivos são espaços privilegiados para um encontro que até pode ocorrer de forma fortuita, mas que surge motivado por perguntas, inquietações e o desejo de revisar ou iniciar a narrativa sobre lugares, individualidades ou grupos sociais. Qual o papel dos arquivos, e dos documentos neles contidos, para a construção de narrativas históricas no campo da arquitetura e do urbanismo no Brasil?
Dentre os três títulos que anunciaram, em 2021, o lançamento de uma nova ação editorial coordenada pela Direção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, denominada Coleção Caramelo (1), o livro Arquivos, memórias da cidade, historiografias da arquitetura e do urbanismo, organizado por Ana Claudia Veiga de Castro, Joana Mello de Carvalho e Silva e Eduardo Augusto Costa, vem ao encontro dessa questão trazendo contribuições de um grupo diverso de pesquisadores da história, da arquitetura, do urbanismo, da cidade e das artes, de bibliotecárias e arquivistas.
Ainda que o foco desta publicação recaia sobre os arquivos e seus documentos, não deixa de revelar o importante papel do pesquisador, como formulador das perguntas e das questões que movimentam o processo investigativo e mobilizam documentos e arquivos — sem esquecermos que esse é essencialmente um processo que se retroalimenta e de difícil determinação do início e fim. O livro está organizado em três partes que se articulam e se complementam no sentido em que a primeira (“Indagar, organizar, conservar”), põe em evidência as perguntas que mobilizam a investigação histórica; a segunda (“Narrar, ensinar, difundir”), enfatiza o modo como as narrativas são construídas e suas relações com a historiografia, o ensino e a difusão; a terceira (“Coletar, gerir, dialogar”), apresenta reflexões sobre novas perspectivas para revisão historiográfica, crítica e prática em arquitetura e urbanismo.
Diante do atual quadro cultural brasileiro e das significativas perdas documentais registradas nos últimos anos, é mais do que oportuno ocuparmos e ocuparmo-nos de nossos arquivos para refletir sobre os condicionantes e as intencionalidades que coordenaram sua criação e, hoje, permitem sua manutenção, ampliação e gestão. No sentido de assumir esses espaços não como elementos inertes, mas de entendê-los como reagentes e assumi-los como objetos de estudo, inquirindo sobre sua natureza documental, possibilidades técnicas, capacidade pedagógica e difusora da informação. Antes de cingir o olhar aos arquivos, o trabalho editorial aqui em pauta convida-nos a alargar nossa compreensão sobre os processos e procedimentos intrínsecos à escrita da história — aqui circunscrita à cidade e sua dimensão social — e estruturada na relação dinâmica entre: pesquisador(es), documento(s) e arquivo(s).
Decerto, ações reflexivas e até (re)estruturantes do sentido da história são recorrentes em momentos de efervescência cultural e intelectual como a revisão epistemológica dos anos 1970, que contribuiu para a desconstrução de discursos totalizantes e abriu caminhos para novas narrativas. Ao questionar a validade da narrativa histórica coloca-se em xeque seus métodos e o seu sentido, exigindo a reconstrução de teorias da história, consequentemente, a ampliação teórica e científica do campo. Do conjunto de autores possíveis de serem trazidos para este contexto, limito-me a referir a obra do alemão Jörn Rüsen (1938-), publicada originalmente em 1983 sob o título Razão histórica (2), na qual ao tentar responder às críticas de autores como Michael Foucault (1926-1984) e Hayden White (1928-2018), que operou um profundo debate sobre o método histórico na ciência da história. Para este autor, ao contrário das ciências exatas, que tentaria “fixar a verdade segundo determinados critérios de cientificidade”, a ciência da história, enquanto forma particular do pensamento histórico,
“Deve ser entendida, praticada e fundamentada a partir dos pressupostos e das condições de seu mundo existencial, e não interpretada como isolada e independente dele. Ao mesmo tempo, sua peculiaridade deve ser evidenciada e defendida das tentativas de diluí-la, reprimi-la ou mesmo abandoná-la, numa adaptação acrítica aos padrões reflexivos de outras ciências” (3).
A qualidade e a contribuição teórica do trabalho editorial coordenado por Ana Claudia Veiga de Castro, Joana Mello de Carvalho e Silva e Eduardo Augusto Costa está, precisamente, na postura crítica que analisa as “condições de seu mundo existencial” evidenciando os elementos que condicionam a narrativa histórica, questionando os arquivos e os documentos e, ainda, o próprio julgo do pesquisador na definição de sua abordagem. Os diversos textos nos conduzem a acompanhar performances, idas e vindas, orientadas por um enredo de perguntas e apoiada em objetos que dão ritmo ao processo investigativo.
A primeira parte do livro, “Indagar, organizar, conservar”, parece nos colocar nos bastidores, vendo de longe os movimentos, a organização de cena e a agitação que advém das perguntas que mobilizam o pesquisador.
Os trabalhos de Karla Maestrini (“Arquivos municipais: repositórios de fontes para a pesquisa no campo da arquitetura e do urbanismo”) e Eliana de Azevedo Marques (“A seção técnica de materiais iconográficos da biblioteca da FAU USP: origem e história”) direcionam a luz de cena aos arquivos, posicionando-os como objetos de estudo refletem sobre sua natureza e escrutinam suas estruturas internas. No primeiro caso, a autora evidencia a natureza do arquivo municipal (Arquivo Histórico Municipal de São Paulo — AHM) e a natureza institucional do acervo que revelam as atividades do poder público no âmbito do desenvolvimento urbano. No segundo, a autora releva os meandros de constituição de um acervo (material iconográfico da Biblioteca da FAU USP) que já suportou interpretações diversas acerca da história da cidade de São Paulo — o que inclui muitos dos trabalhos que se movimentam neste palco.
Ainda neste primeiro ato, além dos espaços de cena são apresentados alguns dos enredos que conduzem e orientam a movimentação e a escolha dos objetos a apoiar o ato da investigação. Ana Paula Nascimento (“Samuel das Neves: uma possível biografia profissional”) e Ana Lúcia Duarte Lanna (“Um bairro italiano em São Paulo: arquivos e fontes para uma história do Bixiga”) generosamente partilham conosco as questões de base, as dúvidas e angústias do porvir ao explicarem a seleção e o uso de fontes diversas na aplicação de uma leitura cruzada que permitisse ora ampliar ora corroborar interpretações.
No primeiro caso, a autora assumiu o acervo documental disponível na biblioteca da FAU USP sobre o engenheiro Samuel das Neves (Fundo Samuel das Neves) como ponto de partida, questionando e tensionando o sentido daqueles documentos — em grande medida produzidos pela família do engenheiro — e buscando outras fontes documentais (revistas e jornais da época) para validar sua narrativa. No segundo caso, a narrativa foi estruturada a partir da leitura cruzada de dois grupos documentais (4) sendo possível formular uma nova interpretação sobre a ocupação espacial e a organização social do bairro Bixiga que fala de uma realidade plural e diversa. No entanto, toda essa movimentação gera novas possibilidades e apontam novos caminhos a partir da constituição de novos documentos e novos arquivos, trazendo para o horizonte do pesquisador desafios de gestão e disponibilização da informação.
Findo o primeiro ato, a atuação de Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (“Cem anos de Ramos de Azevedo — Severo & Villares: acervo documental e legado arquitetônico-urbanístico”), evidencia a importância dos arquivos e dos acervos especialmente dedicados à arquitetura e urbanismo. A autora amplia a narrativa circunscrita a um dado personagem (Ramos de Azevedo) e propõe pensar a atuação profissional de um escritório de arquitetura articulando diversos arquivos e reativando redes de sociabilidade nacionais e internacionais. Somos então convidados a acompanhar a tessitura de uma rede de informações que traz para o debate a digitalização e a imaterialidade dos objetos em cena.
No segundo ato, “Narrar, ensinar, difundir”, percebemos os movimentos direcionados ao público. O importante papel que os arquivos e os documentos assumem na comunicação e transmissão da história e memória em arquitetura e urbanismo. José Tavares Lira, Jonas Delecave, Victor Próspero e João Fiammenghi (“Acervos, histórias e arquiteturas: notas sobre ensino e pesquisa”) partilham com o público uma experiência didática de investigação a partir da coleção de profissionais disponíveis na seção técnica de materiais iconográficos da biblioteca da FAU USP. Essas quatro vozes nos informam como estiveram intimamente relacionados o ensino, a história, a memória e a construção de acervos de Arquitetura Brasileira. Para nos fazer ver que essa relação é ainda fulcral e parte de um movimento que se retroalimenta.
Essa fala coletiva é ratificada pela narrativa acerca da constituição de um acervo sobre arquitetura colonial brasileira a partir da prática de ensino na Escola Politécnica de São Paulo. Maria Lúcia Bressan Pinheiro (“O estudo da arquitetura colonial brasileira: sua inserção no curso de arquitetura da Escola Politécnica de São Paulo”) conta-nos como o método de ensino estruturou o processo de documentação de uma prática arquitetônica gerando documentação que hoje orienta narrativas sobre a cidade e a história da arquitetura colonial no Brasil. Estes objetos, ora articulados, conformam um espaço cênico que para além de propiciar performances, traz consigo os desafios de manutenção, gestão e difusão.
Juntam-se aos desafios apresentados por Maria Lúcia Bressan, aqueles trazidos por Gisele Ferreira de Brito acerca do acervo iconográfico da FAU USP, que para além da representatividade quantitativa tem grande valor qualitativo e, como diz a autora, “o contato com essa fonte primária de informação cria novas possibilidades de pesquisas e novas questões; reorganiza narrativas e traz à luz novas interpretações.” Por outro lado, a abertura a um mundo de novas possibilidades pode aturdir o pesquisador movido pelo impulso e pelo desejo.
Neste sentido, André Tavares desacelera o movimento ao lançar luz às contingências do “mundo existencial” partilhando suas próprias oscilações e a busca pelo equilíbrio entre “Euforia e pragmatismo: utilizando arquivos arquitetónicos”. O autor é preciso em pontuar a interdependência entre o pesquisador e os documentos, numa relação que não é apenas de coleta de dados do primeiro sob o segundo, mas uma oportunidade de transmutação entre partes que após o contato não serão mais como antes fazendo novas perguntas e descobrindo novos caminhos. Assim Tavares reconhece: “o arquivo me ofereceu uma possibilidade de desviar do autor, aprender sobre o espaço urbano e o poder da arquitetura para transformá-lo.”
Chegando ao ato final, “Coletar, gerir, dialogar”, os autores deste terceiro ato reflexivo descortinam possibilidades de conexões e arranjos intelectuais a partir da constituição de redes nacionais e internacionais entre instituições culturais (arquivos, museus, bibliotecas etc.). Os textos de Solange Ferraz de Lima (“Acervos em diálogo: desafios contemporâneos do Museu Paulista da USP”), Lauci Bortoluci Quintana (“Historiografia da arte no mac-usp: obras de arte, arquivo e biblioteca”), Giselle Beiguelman (“Das memórias conservadoras aos arquivos corrompidos: visualidades e formas de luta na contemporaneidade”) e Renato Cymbalista (“Sítios de consciência: história, trabalho em rede, arquivos”), além de possibilidades, especulam sobre os desafios para gestão do grande volume de informações desses arquivos, cuja complexidade intensifica-se nos múltiplos arranjos possíveis entre fontes diversas. Está no horizonte das questões emergentes o diálogo entre materialidade e imaterialidade, entre o documento físico e os sistemas de tecnologias da informação, o direito e o acesso efetivo à informação, a mediação e a autonomia crítica.
Em duros tempos nos quais a ciência precisa comprovar sua validade, quando arquivos e documentos convertem-se em cinzas pela ausência de uma política pública que garanta sua salvaguarda e, ainda em consequência desta ausência, acervos nacionais são transladados e entregues a outras Nações, a ciência histórica reafirma sua pertinência ao demonstrar o rigor de seus métodos e o valor de arquivos e acervos documentais. Neste sentido, ainda que a narrativa deste livro esteja geograficamente localizada na cidade de São Paulo, a discussão que mobiliza ecoa em todo o país sem dificuldades.
Em História e Memória, Jacques Le Goff recorda que
“Do mesmo modo que se fez no século 20 a crítica da noção de fato histórico, que não é um objeto dado e acabado, pois resulta da construção do historiador, também se faz hoje a crítica da noção de documento, que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas exprime o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro: o documento é um monumento” (5).
Ao recuperar a ideia do documento como monumento pretendemos ressaltar seu valor cultural e incluí-lo, assim como os seus lugares de abrigo (os arquivos), no rol dos bens culturais cuja vulnerabilidade material exige ações efetivas e eficazes para preservação. Ações que se iniciam na tomada de consciência, para a qual este livro traz uma grande contribuição.
notas
1
Idealizada pelo professor Mario Henrique Simão D’Agostino (Maíque), falecido precocemente em 2021.
2
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília, Editora UnB, 2001.
3
Idem, ibidem, p. 96.
4
As séries de obras particulares localizadas no Arquivo Histórico Municipal — AHM e os registros de operações imobiliárias que compõem o Arquivo Aguirra sob guarda do Museu Paulista da Universidade de São Paulo — USP.
5
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 1990.
sobre a autora
Carolina Chaves é arquiteta e urbanista (UFPB), mestre (IAU USP) e doutoranda (Universidade de Lisboa). Professora Assistente do DAU UFS, vice-líder do grupo de pesquisa Laboratório Projeto Ensino e Memória e membro do Icomos.