A historiografia dedicada ao Design produzida no Brasil tem constituído importantes avanços nas últimas décadas, apesar de ainda guardar uma certa incipiência. Nos últimos trinta anos, observa-se uma dedicação em busca da identificação de temas, agentes e perspectivas, como também da revisão de pressupostos consagrados. As pesquisas de Pedro Luiz Pereira de Souza (1), um dos primeiros a enfrentar mais detalhadamente a criação da Escola Superior de Desenho Industrial — Esdi, a de Ethel Leon (2), que destrinchou a história do Instituto de Arte Contemporânea — IAC, e a de Zoy Anastassaks (3), dedicada à relação entre o designer Aloísio Magalhães e a arquiteta Lina Bo Bardi, para citar apenas algumas, representam esta mudança de clivagem mais recente.
No entanto, a despeito de contribuições importantes, é possível caracterizar a produção historiográfica como embrionária, no Brasil. São diversos os motivos que condicionam tal situação. Um dos mais relevantes diz respeito à consolidação tardia não apenas de um ensino de Design, mas, em especial, de uma demora considerável na implementação de pós-graduações dedicadas ao campo (4). Associada a esta demora, pode-se considerar que os programas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico dedicados ao Design, apesar de boas contribuições, são exíguos, dificultando ainda mais a estruturação de um corpo de pesquisadores e profissionais, como também a consolidação de um universo bibliográfico/editorial dedicado ao tema. Esta situação não colabora para que o Design seja devidamente compreendido pela sociedade — acarretando também num certo desprezo por parte da classe política, o que restringe a implementação de incentivos e projetos sociais e econômicos. Deste modo, cria-se um falso entendimento de que a sua falta de espaço seria decorrente exclusivamente de baixos investimentos industriais. Este é, por certo, um erro significativo, que faz jus à crítica formulada por João de Souza Leite, quando destacou que “De costas para o Brasil, o ensino de design internacionalista desembarcou por aqui sem nada negociar com qualquer atividade pregressa por aqui existente” (5).
Este olhar direcionado ao contexto do chamado norte global não tem nos permitido reconhecer problemas ou formular questões apropriadas à nossa realidade. De forma geral, a produção historiográfica brasileira persiste, em sua ampla maioria, em concentrar seu interesse na boa forma de um design concretista, sem necessariamente identificar suas contradições ou particularidades (6). O poder exercido por autores — associados a grupos econômicos e intelectuais de forte influência nacional —, restringe as possibilidades de leitura, como também a própria compreensão do que vem a ser a disciplina e sua importância para a sociedade.
Esta situação é semelhante à apresentada pela professora e historiadora da arte, Claudia Mattos, quando publicou o artigo “Whither art History?”, no periódico The Art Bulletin. Segundo a historiadora: “As principais narrativas da história da arte no Brasil apresentam o desenvolvimento das artes no país exclusivamente como um processo de transferência e adaptação de modelos europeus aos contextos locais” (7), decorrência do poder exercido pelas vozes dominantes da nossa cultura. E finaliza destacando a necessidade de que “Mudanças na teoria e no método são evidentemente necessárias se nós quisermos que a história da arte se torne mais inclusiva” (8). A reflexão proposta por Mattos pode ser, em grande medida, direcionada ao panorama da produção historiográfica do Design no Brasil. E é a partir deste ponto que a publicação do livro de Julio Katinsky, Reflexões sobre o design industrial, revela a sua importância para o contexto brasileiro.
Julio Roberto Katinsky é arquiteto e professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP. O reconhecimento da sua contribuição entre os arquitetos é consolidado, com especial destaque a sua liderança na organização da cadeira de disciplinas de História da Técnica, logo após o seu ingresso na FAU USP. Seu reconhecimento entre os arquitetos está muito bem representado com a contribuição do arquiteto Ricardo Ohtake, que elaborou o prefácio do livro, evidenciando aspectos relevantes da sua contribuição, especialmente junto a faculdade. Por outro lado, entre os designers, esta posição não é exatamente um consenso, por aspectos que não dizem respeito à qualidade do seu trabalho ou à sua importância para o campo, mas à leitura que se buscou atribuir ao Design produzido no país, aquela mesma responsável por dar as costas para o Brasil. Neste ponto, vale observar alguns aspectos dos artigos reunidos.
O artigo que abre a coletânea pode ser considerado um clássico da historiografia do Design no Brasil. O texto de Katinsky “Desenho Industrial no Brasil: meados do século 19 até 1970” compôs o segundo volume do compêndio de História da Arte, organizado por Walter Zanini (9). A obra deste professor, historiador, crítico e curadora da arte é um marco da historiografia da arte no Brasil por ter buscado sistematizar temas estruturais à compreensão desta e de disciplinas correlatas — como a Arquitetura, o Design e a Fotografia —, quando se promulgava a Lei da Anistia (1979) e a população ocupava as ruas, reivindicando eleições diretas (1983-1984) (10). O livro de Zanini tem, portanto, um caráter sistematizador, projetivo, como se buscasse organizar eventos e temas relevantes de serem tratados pelos pesquisadores nos anos subsequentes à abertura política do país. Trata-se de uma base a partir da qual as artes poderiam operar a partir de então (11).
Não é de se estranhar, portanto, que este artigo de Katinsky tenha contribuído para construir uma perspectiva panorâmica da história do Design, revelando fatos, movimentos, obras ou problemas estruturais, quando a bibliografia era praticamente inexistente. O embate entre o modelo industrial do Palácio de Cristal e a proposta de Willian Morris junto ao movimento Arts and Crafts; os aspectos materiais, estruturais e funcionais dos objetos, sinalizados pelo Art Nouveau; e o problema do standard no projeto alemão do entre guerras, capitaneado pela Bauhaus, são alguns dos temas apresentados nesta perspectiva panorâmica elaborada por Katinsky.
Mas o que chama a atenção é a argumentação apresentada pelo texto, onde se caracteriza a Arquitetura e a cidade como lugares privilegiados enquanto manifestação de Design. Para justificar esta caracterização, Katinsky debate a relação entre protótipo e produto industrial, para, assim, reconhecer que a casa — como também a cidade — seria uma manifestação de Design por excelência. Formulando uma síntese de sua proposição, Katinsky destaca três aspectos:
“a) Todo produto obtido através de séries rigorosamente normalizadas, qualquer que seja a extensão da série, é um produto da indústria moderna;
b) a série de operações pode terminar em produtos repetidos (standard, como copos ou agulhas);
c) a série de operações pode terminar em um único produto (como um navio, edifício e cidade)” (12).
É sob esta perspectiva que Katinsky, ao tratar da implementação da The New Bauhaus, em Chicago, relata ter havido uma “cisão pragmática entre uma escola voltada para o industrial design de um lado, e as escolas de arquitetura de outro”. Num contexto dominado pelas “grandes corporações não havia lugar para a utopia urbana” (13), reforça Katinsky. Este debate é muito importante para a caracterização deste artigo, visto que foi escrito de dentro de uma faculdade de arquitetura, a FAU USP, e num contexto em que a Escola Superior de Desenho Industrial — a Esdi, criada em 1962 e caracterizada naquele momento como a primeira escola de Desenho Industrial do Brasil — já se encontrava estabelecida. O texto “Desenho Industrial no Brasil” sinaliza, portanto, para uma caracterização do Design em oposição à produção de objetos individualizados — como cadeiras, talheres ou revistas. Destaca, por outro lado, a importância de se observar objetos que resultam da associação de outros produzidos dentro de uma lógica industrial, como a casa ou até mesmo a cidade. Não é por menos que mobiliza exemplos da indústria aeronáutica e naval — onde, muitas vezes, são produzidas poucas ou apenas uma única unidade -, como também salienta a produção bélica como manifestação relevante “do ponto de vista de projeto” (14).
Este lugar atribuído à casa e à cidade — à arquitetura e ao urbanismo, se quisermos ser mais específicos — revela, primeiramente, uma distinção de perspectiva historiográfica em relação àquela que acabou se consolidando no Brasil. No processo de estruturação do campo do Design e com a emergência de escolas e centros universitários, os historiadores buscaram reconhecer práticas locais que estabelecessem correlações com os debates elaborados no âmbito internacional, estas mais ligadas ao industrial design. Por certo, tratou-se de uma estratégia de diálogo ou sobrevivência, mas que, hoje, poderia ser interpretada dentro de uma chave colonialista. Assim, a casa como manifestação de Design aparece, em parte, deslocada daquilo que se consolidou internacionalmente enquanto problema dedicado ao campo, o que nos ajuda a compreender uma certa recepção deste texto, como também da própria posição de Katinsky no campo disciplinar.
O objetivo do artigo de Katinsky não é o debate historiográfico. A proposta apresentada pelo professor visa a atender ao propósito panorâmico encampado pela obra de Walter Zanini. No entanto, analisando-a em perspectiva histórica, ela cumpre esta função, já que estamos falando de um texto republicado mais de quatro décadas depois de sua escrita e num contexto de revisão das contribuições iniciais. Este tensionamento, no campo historiográfico, emerge como questão. A contribuição de Julio Katinsky singulariza, assim, aspectos talvez ignorados ou mesmo desprezados pela historiografia brasileira, revelando, uma vez mais, a importância da publicação deste livro.
Este sentido aparece também no segundo artigo da coletânea. Em “As cinco raízes formais do desenho industrial”, publicado em 1999, Katinsky questiona a construção historiográfica de que o Desenho Industrial seria um subproduto das preocupações dos arquitetos modernos. Aqui, reconhece-se um movimento de autonomização do Design, em relação à Arquitetura Para tanto, apresenta cinco origens que teriam contribuído para a consolidação contemporânea dos objetos industriais, reavendo correlações com inventos antiquíssimos — como as bússolas do século 10 —, demonstrando, assim, uma fundamentação do Desenho Industrial em relação à própria condição humana.
A primeira deles seriam os instrumentos científicos, que teriam recebido influência direta da tectônica dos materiais que os constituem. A segunda seriam os instrumentos e as máquinas, permitindo reconhecer a relação entre forma e função. A terceira seriam as construções sem história e sem arquitetura — bem aos moldes da formulação apresentada pelo arquiteto Bernard Rudovsky, na importante exposição “Arquitetura sem arquitetos” no Museu de Arte Moderna de Nova York — MoMA NY (15). A quarta seria o ideário do movimento moderno, calcado em valores sociais em relação ao Art Nouveau. E, por fim, a quinta e última raiz formal seria o próprio desenho industrial, quando o desenho — o projeto — ganhara autonomia.
É muito impressionante a reflexão de Katinsky, especialmente se levarmos em consideração os títulos disponíveis naqueles anos (16). Neste caso, se consultamos a bibliografia apresentada no artigo, notamos que os títulos não circunscrevem apenas às disciplinas do Design e da Arquitetura, mas também a Filosofia, a Antropologia e a História da Ciência. Este é um aspecto muito relevante por alguns motivos específicos. Primeiro, é de se reconhecer que a produção editorial dedicada ao Design era restrita, especialmente no Brasil. E não estamos falando apenas da falta de leitores, mas de uma ausência de interesse do mercado editorial em publicar e traduzir obras importantes para a disciplina (17). Do mesmo modo, é relevante o movimento realizado por Katinsky em direção a outros campos disciplinares, qualificando o seu trabalho como uma produção historiográfica sofisticada, aos moldes do que se compreende hoje como uma boa produção dedicada ao Design. Se “A história do design deriva de várias vertentes metodológicas”, como destacado por Rafael Cardoso (18), a liberdade intelectual de Katinsky, especialmente sublinhada no artigo “As cinco raízes formais do desenho industrial”, revela sua melhor forma.
Por fim, os três artigos que se seguem parecem operar num sentido comum. “Modelos de desenvolvimento industrial”, publicado originalmente em 1990, é a apresentação de uma série de “notas” — como destacado pelo próprio Katinsky — onde se debate o problema da baixa ou incipiente industrialização do Brasil. Ainda que a sua estratégia seja ler modelos internacionais, o foco está em reconhecer os problemas locais e sinalizar para estruturas importantes para a sua consolidação. Não por menos, fala na necessidade do envolvimento de novos pesquisadores, como também de uma mudança radical nas políticas públicas de financiamento.
Em “Artesanato moderno”, publicado em 1991, e “Artesanato moderno revisitado”, publicado em 2008, Katinsky observa esta atividade social à luz da indústria moderna — enquanto polo de oposição. Num país sem indústria ou com uma industrialização precária como o Brasil, pensar o artesanato como prática inerente à economia e às relações sociais é uma forma de elaborar estratégias pedagógicas como também em práticas de ativação cultural. Trata-se, afinal, de uma leitura da condição industrial do país, mas também das características socioculturais. Uma forma de pensar a partir delas nas estratégias políticas para a democratização das ações e recursos, especialmente aquelas das instituições públicas (19).
O livro Reflexões sobre o design industrial deve ser reconhecido, de partida, como uma justa homenagem ao professor Julio Katinsky. Mas, se seus artigos trazem debates relevantes para a reflexão interna ao campo, é justo dizer que este livro é também um documento singular para a compreensão da historiografia e da consolidação do campo do Design no Brasil. Não por um debate direto sobre o assunto — a historiografia -, mas por podermos tomá-los como documentos que revelam aspectos dos debates e das produções desenvolvidas ao longo do tempo. Trata-se de um documento angular do próprio campo disciplinar, já que os debates apresentados por Katinsky são alguns dos que foram desprezados ou pouco reconhecidos pelos historiadores brasileiros, revelando a potência destes textos, como também deste professor e historiador, para o enfrentamento da realidade brasileira. Não por menos, o último capítulo reunido é uma resposta à organizadora do livro, a historiadora do design, Ethel Leon. Ou seja: este último capítulo — “Resposta a Ethel Leon” — demonstra que as conversas com a organizadora levaram Katinsky a refletir sobre outro aspecto — a “cópia em país periférico” —, destacando este seu espírito inquieto, que faz jus aos grandes intelectuais.
Apresentado os conteúdos debatidos por Katinsky, parece-me oportuno sinalizar para ao menos dois aspectos do livro. O primeiro deles diz respeito à edição. A qualidade dos livros produzidos pela editora Olhares é reconhecida no contexto brasileiro. A editora tem colecionado premiações (20), e contribuído de forma inequívoca para a consolidação de livros dedicados às Artes, à Arquitetura e ao Design. Neste sentido, é relevante a publicação de um livro dedicado à história e à teoria do Design. Majoritariamente, a editora vem investindo em livros que possuem um forte apelo visual, muito provavelmente pelo entendimento de que o seu público demanda este tipo de livro, mas que, por outro lado, acabam saindo por valores muito elevados. Este é um fator relevante, se pensarmos que a disponibilidade de títulos no Brasil é restrita e que a compreensão do que vem a ser a disciplina é ainda muito enviesada. Neste sentido, a publicação de um livro de texto, teórico, chama a atenção dentro deste universo, sinalizando para um movimento que pode revigorar não apenas o portfólio da editora, mas especialmente o próprio campo do Design.
Mas um outro aspecto chama a atenção: o título do livro. Reflexões sobre o design industrial exige uma reflexão mais detalhada. O uso do termo “Design industrial” causa um certo estranhamento aos leitores — especialmente aos historiadores, justamente o público deste livro. Ao longo de todo o miolo, não se usa uma única vez o termo. No lugar de “Design industrial”, Julio Katinsky — como também Ethel Leon e Ricardo Ohtake — utiliza corretamente o termo “Desenho industrial”, o que nos leva a questionarmos esta utilização no título da edição.
Hoje, é consenso que o termo corrente para designar o campo é “Design”. Neste contexto, identifica-se que a produção historiográfica está dedicada a questões culturais, aproximando de sua caracterização enquanto “História Cultural do Design”. Deste modo, decantou-se a compreensão de que a produção historiográfica associada ao Design não se restringe mais a objetos excepcionais ou anônimos. O que o Design enfrenta são as relações entre coisas, pessoas e ideias, em seu sentido ampliado. Este entendimento é também fruto de processos que percorrem meio século de reflexão e embates historiográficos.
Sucinta e esquematicamente, podemos periodizar a produção historiográfica em seis períodos diferentes: Um primeiro denominado por “pré-historiografia”, caracterizado por um interesse na produção industrial com um foco em aspectos plásticos e formais, onde prevalece um certo interesse autoral — como na obra inaugural de Nikolaus Pevsner, publicada originalmente em 1936 (21); Um segundo período é identificado pela influência da História da Arte, quando os designers institucionalizaram o campo, cientificamente, e passaram a ter seus primeiros jornais científicos (22), debatendo mais criticamente a partir de teóricos como Pierre Boudieu e Michel Foucault; O terceiro, denominado de “Desenho Industrial”, é reconhecido pelo interesse na produção industrial, abarcando aspectos como estruturas de negócio, organização profissional e industrial, política econômica, impacto e influência social, como na obra singular Industrial Design de John Heskett (23); O quarto período identificado por uma polarização entre os historiadores designers, que deram ênfase ao design em suas análises — como fizera Victor Margolin (24) —, e os historiadores de ofício, que trouxeram para o campo o rigor metodológico da Nova História — como Adrian Forty (25); O quinto período seria caracterizado pela influência da Cultura Material, a partir das formulações de Daniel Miller (26); e, por fim, o sexto e último período identificado como “História Cultural do Design”, buscando reconhecer o Design a partir das relações, em contextos culturais específicos, como na obra de Paul Betts (27).
Esta leitura panorâmica é importante para caracterizar o uso do termo “Desenho Industrial” pelo professor Julio Katinsky, ainda que ela mereça uma pesquisa mais detalhada. O uso do termo “Desenho Industrial”, como tratado ao longo dos textos, preserva a perspectiva mobilizada por Katinsky, reconhecendo o tempo e o contexto da escrita, como também da filiação teórica a que se encontra vinculada a sua produção. “Design”, como utilizado mais contemporaneamente, abarcaria aspectos culturais que não necessariamente estão delineados nos textos ou, ao menos, não possuem centralidade. Deste modo, “Design Industrial”, aos moldes do que foi apresentado no título desta coletânea, revela uma fabulação, que sinaliza para aspectos específicos do contexto no contexto brasileiro.
Primeiro, não podemos atribuir esta escolha à organizadora do livro, a historiadora do Design, Ethel Leon. O motivo é simples. Ethel é uma sumidade no campo do Design e conhece a fundo seus debates, polêmicas e atores. Especialmente em relação ao contexto brasileiro, conhece os meandros do campo, tendo produzido quase três centenas de artigos em jornais e revistas. Esta liberdade intelectual é explicitada na introdução que apresenta no livro, onde não apenas evidencia a trajetória de Julio Katinsky — que foi seu orientador de mestrado — mas também destrincha aspectos dos textos, sugerindo debates e pesquisas. Trata-se de uma introdução que é generosa com o autor dos artigos, mas, especialmente, com os leitores, que têm a oportunidade de ler a obra de Katinsky à luz de suas indicações. Neste sentido, destaca aspectos como a sua relação com a arquitetura — não à toa ressaltada aqui nesta resenha —; a sua visão macro do campo; os debates qualificados em torno do standard; a relação do design com Economia e o Estado; entre outros. A introdução apesentada por Ethel Leon é, portanto, uma peça importante da leitura dos artigos de Julio Katinsky, reforçando a historiadora arguta.
A fusão de “Design” com “Desenho Industrial” é, por certo, uma escolha da editora Olhares. Entre os motivos para esta opção, destaca-se uma possível tradução direta e contemporânea do termo em inglês Industrial Design. Parece ser também um desejo de se descolar do termo “Desenho Industrial”, de algum modo associado a uma perspectiva superada. Mas esta solução causa estranheza ao público, já que a denominação do campo, enquanto “Design”, é recente e descolada do termo mobilizado por Katinsky. A mudança de “Desenho Industrial” para “Design Industrial” pode ser justificada, portanto, por um interesse de aproximação do livro com um público mais jovem e pouco informado sobre o campo. Em termos comerciais, esta opção é válida, mas deixa esse ruído para os domínios da história, que exige precisão. Este é, por certo, um detalhe desta obra singular. Mas serve de alerta ao mercado editorial, que prescinde de iniciativas como essa.
O livro “Reflexões sobre o design industrial” é, portanto, um alento aos historiadores, especialmente àqueles interessados na historiografia e, mais especialmente, na produção dos brasileiros. Por certo, é um livro que contribui com novas investigações e lança luz sobre uma produção, muitas vezes, relegada a segundo plano, seja por falta de incentivos na sua divulgação ou por uma preferência desmedida por autores estrangeiros.
A iniciativa de Ethel Leon e da editora Olhares merecer ser saudada com alegria. Ela é fundamental para a consolidação de uma massa crítica em torno do Design, como é também fundamental para se enfrentar desafios complexos que se impõem na contemporaneidade.
Por fim, não posso deixar de manifestar a minha felicidade particular. Apesar de Julio Katinsky não ter sido meu professor, como foi para Ethel Leon e centenas de outros arquitetos e designers, na condição de professor da FAU USP, sinto-me como que lendo de forma privilegiada a obra de um colega. Mas percebo este livro também como parte da obra intelectual de uma geração de professores, a quem sucedo. Como professor de História do Design e interessado na sua historiografia, esta leitura é um privilégio. Faço votos para que iniciativas tão fundamentais como a publicação deste livro se ampliem pelo país.
notas
1
PEREIRA DE SOUZA, Pedro Luiz. ESDI: Biografia de uma ideia. Rio de Janeiro, Eduerj, 1996.
2
LEON, Ethel. IAC: Primeira escola de design do Brasil. São Paulo, Blucher, 2014.
3
ANASTASSAKIS, Zoy. Triunfos e Impasses: Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães e o Design no Brasil. Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj, 2014.
4
O primeiro mestrado em Design foi implementado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC Rio, em 1994. COUTO, Rita Maria de Souza. Escritos sobre ensino de design no Brasil. Rio de Janeiro, Grupo Rio Ltda/Rio Book`s. 2008.
5
LEITE, João de Souza. De costas para o Brasil: o ensino de um design internacionalista. In MELO, Chico Homem de (org.). O design gráfico brasileiro: anos 60. São Paulo, Cosac Naify, 2006.
6
Destaco a publicação do compêndio Boa forma Gute Form: Design no Brasil — 1947-1968, que ficou disponível ao público no mesmo dia em que o livro de Júlio Katinsky foi lançado. DEBBANE, Lívia. Boa forma Gute Form. Design no Brasil 1947-1968. São Paulo, Art Consulting Tool, 2021.
7
MATTOS, Claudia. Whither Art HIstory? Geography, Art Theory, and New Perspectives for an Inclusive Art History. The Art Bulletin, vol. 96, n. 3, set. 2014, p. 259-264.
8
Idem, ibidem.
9
ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil. Volume 2. São Paulo, IMS, 1983.
10
Como destacado por Katinsky, o artigo foi produzido entre março e agosto de 1979, mas sua a publicação só veio a ocorrer no ano de 1983. KATINSKY, Júlio Roberto. In LEON, Ethel (org.). Reflexões sobre o design industrial. Artigos reunidos de Júlio Roberto Katinsky. São Paulo, Olhares, 2022, p. 26.
11
Deve-se avaliar, ainda, que o livro organizado por Zanini tem também um caráter organizador da política que viria a ser implementada pelo Instituto Moreira Salles, já que se trata de um livro organizado pela então Fundação Walter Moreira Salles. Não cabe aqui debater o livro como projeto institucional, mas sinalizo aqui para esta especificidade.
12
KATINSKY, Júlio Roberto. Op. cit., p. 63.
13
Idem, ibidem, p. 63.
14
Destaco, inicialmente, que estes objetos industrializados — casas, aviões ou navios — são, muitas vezes ignorados pela historiografia do Design, o que revela uma sensibilidade muito particular por parte de Katinsky. Mas destaco também o seu cuidado ao abordar a produção militar, em plena Ditadura Civil-Militar, onde o foco está no — projeto — e não no militarismo. Idem, ibidem, p. 82.
15
RUDOVSKY, Bernard. Architecture without architecture. Nova York, MoMA, 1964.
16
Ainda que a FAU USP tivesse uma biblioteca de grande relevância para o campo, reconhece-se que os títulos disponíveis eram ainda restritivos.
17
Problema que, infelizmente, ainda persiste nesta segunda década do século 21.
18
CARDOSO, Rafael (org.). O design brasileiro antes do design. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 14.
19
No início dos anos 1980, a Editora Blücher publicou o livro A tecnologia da tecnologia, de Gui Bonsiepe, que debatia justamente a questão das tecnologias em países em desenvolvimento, revelando a importância do tema naqueles anos. Nesta obra, destaca-se também a apresentação de Darcy Ribeiro, então vice-governador do Estado do Rio de Janeiro. BONSIEPE, Gui. A tecnologia da tecnologia. São Paulo, Blücher, 1983.
20
Na categoria de trabalhos escritos publicados na 34ª Edição do Prêmio Design Museu da Casa Brasileira, a editora Olhares levou os dois primeiros prêmios.
21
PEVSNER, Nikolaus. Os pioneiros do desenho moderno: de William Morris a Walter Gropius. São Paulo, Martins, Fontes, 2002.
22
Refiro-me aqui aos seguintes jornais: Design History Society (1977); Design History Forum (1983); Design Issues (1984) e Journal of Design History (1988).
23
HESKETT, John. Industrial Design. London, Thames & Hudson, 1980.
24
MARGOLIN, Victor. A reply to Adrian Forty. Design Issues, vol. 11, n. 1. 1995, p. 19-21.
25
FORTY, Adrian. Debate: A Replay to Victor Margolin. Journal of Design History, vol. 6, n. 2, 1993, p. 131-132.
26
MILLER, Daniel. Material Culture and Mass Consumption. London, Routladge, 1995.
27
BETTS, Paul. The authority of Everyday Objects. California, University of California Press, 2007.
sobre o autor
Eduardo Augusto Costa é professor doutor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde desenvolve pesquisa vinculada ao Programa Jovem Pesquisador da Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo.