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Prefácio de Claudia dos Reis e Cunha para o livro “Entre o restauro e a recriação: reflexões sobre intervenções em preexistências arquitetônicas e urbanas”, de Juliana Cardoso Nery e Rodrigo Espinha Baeta.

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CUNHA, Claudia dos Reis e. O projeto sobre preexistências e um debate ainda incipiente, porém fundamental, no Brasil. Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 247.02, Vitruvius, jul. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.247/8521>.


O projeto sobre preexistências e um debate ainda incipiente, porém fundamental, no Brasil A tremenda ampliação dos objetos passíveis de serem reconhecidos como bens culturais que se verifica nas práticas patrimoniais desde pelo menos os anos 1960 e acentuada nas últimas décadas vem acarretando uma proporcional curva ascendente nas demandas por intervenções em áreas ou edificações patrimonializadas.

De um lado, assiste-se a um incremento do campo de atuação de arquitetos urbanistas, antes restritos – especialmente no Brasil – a limitadas oportunidades de obras de consolidação ou restauração de bens isolados tombados. De outro lado, em que se pese o exponencial aumento do número de cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo no país, ainda faltam profissionais com a formação adequada para enfrentar essa demanda ampliada, que exige preparo e cultura, muitas vezes ausentes em nossos recém-graduados (e até mesmo em profissionais “experientes”). Demandas de variadas naturezas, que não se restringem mais (o que já não seria pouco) à tradicional restauração de grandes monumentos, mas que agora passam a envolver igualmente novas edificações em áreas envoltórias de bens tombados, novos restauros sobre obras previamente restauradas, consolidações e recuperações de áreas urbanas deterioradas, adaptação de edificações históricas a novos usos, reconstruções pós-destruições traumáticas e tantas outras possibilidades emanadas do cotidiano de convívio com bens culturais das mais diversas naturezas e estratificações temporais que habitam nossas cidades.

Nesse quadro, verifica-se que “a projetação em sítios historicamente consolidados é crucial no labor do arquiteto contemporâneo (e em sua formação)”. (p. 372, grifo nosso)

Justamente nesse sentido caminha a presente publicação, de autoria dos arquitetos e Professores Juliana Nery e Rodrigo Baeta. Ao longo de seus oito capítulos e densas páginas, recheadas de análises críticas, emerge o nó central que costura a variada casuística apresentada: o papel fulcral que o projeto tem nas ações sobre preexistências de valor cultural. Ou, nas palavras dos autores: “a questão central das discussões sempre recai sobre o problema do projeto de intervenção e/ou da análise crítica das ações que afetam o patrimônio edificado de interesse cultural”. (p. 38)

Em suas mais de quinhentas páginas, ficam patentes as consequências – para o bem e para o mal – que projetos de boa qualidade, ou inapropriados, ou mesmo inexistentes, acarretam para a adequada conservação da memória coletiva decantada nas superfícies lapidadas ao longo dos séculos e que, a partir do ato coletivo de reconhecimento de valor, (BRANDI, 2004) deveriam ser escrupulosamente conservadas e transmitidas às futuras gerações.

Nave da Capela de Santana ao Pé do Morro, Ouro Branco. Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos
Foto Rodrigo Baeta

A ascensão de “novos temas” no campo da conservação patrimonial, com a emergência de uma ênfase dada pela cultura contemporânea aos fatores imateriais e subjetivos dos bens culturais, parece apontar para uma fragilização de debates que, em território nacional, nunca foram aprofundados ou mesmo seriamente tratados. Quais são os meios idôneos para transmitir de forma honesta e mais íntegra possível nossa herança material do passado? Quais estratégias podem ser adotadas para que edificações e áreas urbanas de reconhecido valor estético e histórico sejam conservadas e oferecidas à fruição de todos? Os “novos valores” necessariamente precisam se sobrepor aos “tradicionais valores” ou mesmo anulá-los? Infelizmente, temos assistido a uma indesejável polarização ou mesmo uma oposição entre os que defendem a atenção continuada à materialidade dos bens culturais e aqueles que advogam pela sua consideração como simples invólucros para valores e gostos subjetivos e cambiantes.

Certamente, está fora de questão a total legitimidade que os “novos patrimônios” têm ao tornarem visíveis “manifestações que, por muito tempo, foram desprezadas por uma ideia de cultura elitizada e excludente”. (p.25) Igualmente se reconhece que muitas dessas manifestações culturais não podem ou não devem ser tratadas, nas ações de conservação, com os mesmos métodos ou estratégias que aquelas tradicionalmente adotadas para a conservação dos bens móveis ou imóveis, salvaguardados por serem de reconhecido valor estético e histórico. Quando se fala em tutelar saberes, modos de fazer e valores como o afetivo e o simbólico, o âmbito da discussão certamente é distinto, se comparado à salvaguarda de valores artísticos e históricos de edificações e sítios urbanos ou, ainda, de obras de arte de modo geral.

De todo modo, mesmo reconhecendo a possibilidade de tratamento distinto, a depender da especificidade do bem cultural analisado e das razões que o tornaram objeto de tutela, deve-se sempre ter em mente que a materialidade, mesmo quando não é o motivador primeiro e central para as ações de conservação, desempenha papel fundamental ao ser o suporte para valores intersubjetivos de variadas naturezas, e por isso mesmo não se pode considerá-la – de maneira nenhuma e sob nenhum argumento – descartável ou irrelevante. A autenticidade e a integridade material muitas vezes são garantidoras da perpetuação de valores imateriais ou intangíveis.

Ademais, deve-se chamar a atenção para outro aspecto destacado pelos autores, quando afirmam que parte significativa do nosso patrimônio assim o é justamente por ser constituído por objetos cujo principal valor para a preservação reside em suas qualidades artísticas e/ou em sua historicidade: “grande parte das expressões humanas reconhecidas como tal ainda apresentam, como caráter de excepcionalidade, valores postulados pela cultura da conservação e do restauro ocidental há alguns séculos: valores vinculados às qualidades históricas e artísticas de tais objetos”. (p. 26) E, se assim o são, devem ser enquadrados nas práticas, teorias e métodos próprios a esse campo disciplinar que vem sendo decantado ao longo de pelo menos dois séculos no mundo ocidental, qual seja, o campo da restauração, reafirmando a estreita relação que o ato de restauração guarda em relação ao reconhecimento da obra de arte enquanto tal:

"não se dá um correto projeto de restauração sem uma constante tensão teórica, vivida com continuidade a partir das primeiras fases de ‘reconhecimento’ do bem até à conclusão da intervenção. Essa tensão teórica deve guiar constantemente o projeto, com o escopo de ancorar cada intervenção sobre o existente em sólidas bases referenciais e subtraí-lo do arbítrio". (PANE, 2016, p. 33, tradução nossa)

Compreender a historicidade da noção de bem cultural, assim como sua legítima ampliação, não pode ensejar a desconsideração de séculos de reflexão sobre o tema, bem como a definição clara de um campo disciplinar de atuação, consolidado desde pelo menos finais do século XIX. Ao contrário, justamente quando se compreende a noção de bem cultural como construção e processualidade, aflora a responsabilidade de toda e qualquer ação sobre os suportes materiais da memória, que se sabem únicos e irrepetíveis ou irrecuperáveis, como admoesta Cesare Brandi: trata-se de um imperativo moral categórico, voltado à conservação, imposto àquele fruidor individual que se liga à consciência universal. (BRANDI, 2004, p. 31)

Palácio da Villa Comendador Bernardo Martins Catharino, atual Museu Rodin, Salvador. Arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci / Brasil Arquitetura
Foto Rodrigo Baeta

Em um campo com princípios cada vez mais esgarçados, o livro de Baeta e Nery nos instiga a voltar os olhos para a importância de estudos teóricos e para experiências e reflexões que redundaram na adoção de princípios-chave a qualificar as intervenções sobre o patrimônio urbano e arquitetônico, apontando que o corpo teórico que se estratificou – especialmente as chamadas teorias modernas e contemporâneas da restauração – “mais do que eficientes, são necessárias para fundamentar e balizar as ações projetuais que visam a sua conservação, restauração, ou mesmo as iniciativas de renovação de seu tecido figurativo”. (p.27)

Diversas intervenções – das mais variadas naturezas – vêm sendo chamadas de restauração mundo afora, incluindo o Brasil; porém, grande parte dessas intervenções não resiste a uma análise mais consistente de suas motivações e justificativas, excetuando as do campo da restauração, ainda que, por serem empreendidas sobre obras de reconhecido valor artístico e histórico, deveriam a ele se submeter.

As motivações para esse esquivar-se dos limites impostos pela restauração são bastante variadas, indo desde a simples negação da validade de seus postulados a uma cega obediência aos ditames do mercado imobiliário e especulativo; da interpretação apressada dos conceitos teóricos à redução da restauração às tarefas de natureza unicamente técnica, derivada “naturalmente” dos diagnósticos; de uma imposição da vontade renovadora à não compreensão mais aprofundada das qualidades estéticas e históricas dos bens culturais. Ou, sinteticamente, como apontam os autores: “ainda parece pairar no horizonte do campo a ideia de que restaurar não é projetar, e que projetar é necessariamente recriar”. (p. 52)

Novamente, retorna-se à questão do projeto.

Projeto para as preexistências ou projeto sobre as preexistências, isto é, projetos cujo objetivo é a conservação e transmissão ao futuro da nossa herança material, ou projetos que dela se servem para propósitos outros, muitas vezes desrespeitando sua conformação e sua historicidade. Independentemente das premissas e dos objetivos a serem alcançados com os projetos, são eles que revelam – de forma densa e profunda – os modos de se relacionar com o passado que cada sociedade, em contextos e culturas distintas, estabelece. De fato, o projeto (mesmo quando ausente) é aquilo que define nossa relação com o passado, explicitando aquilo que queremos de fato preservar (e de que modo) e, por consequência, aquilo que desejamos obliterar, suplantar ou negar. De uma forma ou de outra, trata-se, portanto, de “imprescindível ato de projetação, nem mais nem menos”. (CARBONARA, 2013, p. 71, tradução nossa) E, ao se configurar como ato de projetação, vem à tona o papel do arquiteto como protagonista desse ato projetual.

"na solução de problemas delicados e complexos, que só podem ser enfrentados por meio de um projeto, os arquitetos devem recuperar, demonstrando talento e vocação, seu papel diante da sociedade contemporânea". (SEGARRA LAGUNES, 2011, p. 38, tradução nossa, grifo nosso)

Corroborando a visão de Segarra Lagunes, Giovanni Carbonara não deixa dúvida que, dada a complexidade da restauração, especialmente no que concerne aos vários âmbitos disciplinares que nela se envolvem, a figura do arquiteto ascende como articulador de diversos saberes que convergem para a adequada conservação das estruturas urbanas e arquitetônicas:

"Ao passar dos princípios às concretas realizações, abre-se todo um espaço projetual que deve ser preenchido, no nosso âmbito [da restauração arquitetônica], das competências específicas do arquiteto, certamente aberto e sensível às contribuições das aferentes disciplinas, mas, com igual certeza, primeiro responsável por toda intervenção. […] Traduzir um programa de restauro desenvolvido em colaboração com historiadores da arte, arqueólogos e conservadores […] em verdadeiro projeto e, depois, em operatividade de canteiro é ato de arquitetura ‘moderna’ a pleno título". (CARBONARA, 2012, p. 16, tradução nossa, grifo nosso)

Casa da Torre de Garcia D’Ávila, o litoral norte da Bahia. Arquiteto Ubirajara Avelino de Mello
Foto Rodrigo Baeta

Interessante aqui relembrar que, ao longo da chamada fase heroica do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), os arquitetos tiveram papel hegemônico na instituição, fato que se tornou alvo de muitas críticas a partir dos anos 1970/80, chamando a atenção para a carência de olhares oriundos de outros campos do saber, o que redundou, certamente, em um olhar reducionista da nossa produção cultural. A hegemonia destes profissionais no discurso e no delineamento do corpus patrimonial brasileiro nas primeiras décadas de ação preservacionista no país, vinculada à pedra e cal, é inconteste. Porém, não se pode, recaindo em outro extremo, prescindir desse profissional na condução das intervenções em bens culturais arquitetônicos e urbanos, justamente por se tratar de uma das áreas de atuação próprias do arquiteto urbanista e, dessa forma, configurar-se dentro de atribuições profissionais legalmente definidas.

"O restauro arquitetônico é, ao contrário [do que desejariam muitos], totalmente interno à arquitetura, entendida de modo geral e com ela se identifica, com ressalvas às devidas diferenças, por sua estreita ligação com o instrumento e a metodologia do ‘projeto’; […] pela exigência de ‘resoluções estéticas’ que cada ato de restauro postula; por aquelas exigências de controle e definição das valências espaciais, linguísticas e ainda ornamentais, de conjunto e de detalhe; pela natural continuidade entre projeto e canteiro […]; pelas técnicas de intervenção e pela sua direção, com contribuições de vários âmbitos disciplinares, mas todos reconduzíveis a uma sábia razão ‘edilícia’; […] pela fundamental ligação entre arquitetura e urbanística, vale dizer, do singular episódio arquitetônico com seu sítio, em uma visão conservativa que potencialmente se alarga, sem perder os seus referenciais de fundo, aos temas do território e do ambiente". (CARBONARA, 2012, p. 1415, tradução nossa)

Como afirma Miarelli Mariani, o restauro pertence inteiramente ao território da arquitetura, dada sua condição de “ato de verdadeira e própria formatividade arquitetônica, ainda que com finalidades conservativas”. (MARIANI 1975 apud DALLA NEGRA, 2011, p. 15, tradução nossa)

No entanto, ao defender o papel de protagonista do arquiteto no campo da restauração arquitetônica e urbana, não se deve incorrer em alguns erros comumente percebidos nas práticas patrimoniais atuais. O primeiro deles seria o de confundir esse papel central de “regente” nas restaurações com o profissional isolado e narcísico, que faz o que bem entende, sem dialogar com outros profissionais – seja da própria arquitetura ou de outros campos de formação – e sem respeitar o próprio objeto sobre o qual pretende intervir, resultando em projetos voluntaristas e espelhos de um ego inflado. Muito ao contrário, o arquiteto “necessário” nas lides com o patrimônio é aquele dotado de sensibilidade e cultura, aliada a um conhecimento – ao mesmo tempo técnico e humanista – que o habilita a dialogar com profissionais de diversas áreas, sempre necessariamente envolvidos na tarefa da conservação e transmissão ao futuro da herança material cultural. O aporte profissional aqui reclamado é aquele da coordenação e capacidade de sintetizar múltiplos olhares e saberes, com serenidade e sensibilidade, num projeto consistente para a preexistência e não a despeito desta.

Outro erro de interpretação possível, e bastante comum, ao se defender o protagonismo do arquiteto no campo da restauração arquitetônica e urbana seria aquele de considerar a restauração arquitetônica um campo à parte no universo do restauro em geral. Por suas especificidades e exigências, as regras válidas para a restauração arquitetônica e urbana seriam necessariamente distintas daquelas das artes figurativas em geral, ou, em outras palavras, o que valeria para as artes plásticas em termos de restauração, não seria aplicável ao restauro arquitetônico e urbano, desqualificando, inclusive, os postulados teóricos do campo da restauração e questionando sua pertinência como guia nas intervenções em áreas e edificações de interesse para a conservação.

Casa do Bispo, Mariana. Arquitetos Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Sylvio de Podestá
Foto Rodrigo Baeta

Essa falácia deve ser combatida, sob o risco de “deixada a si mesma, [a restauração arquitetônica] resvalar para um banal funcionalismo, um confuso sociologismo ou, por outras razões (ligadas à presumida não ‘autografia’ da arquitetura e à sua igualmente presumida fácil reprodutibilidade, ainda que ‘diversa’ no tempo), em direção à repristinação”. (CARBONARA, 2012, p. 15, tradução nossa) Ao contrário, ainda que se exprima com as linguagens e técnicas próprias da arquitetura, a restauração pode e deve ser entendida a partir de uma unidade teórico-metodológica do campo da restauração em geral, que carrega uma base comum de referências conceituais estratificadas em séculos de debates e experimentações práticas, que não se confundem com cartilhas, manuais ou mesmo dogmas a serem seguidos cegamente, mas fundamentam as escolhas inerentes a qualquer intervenção, conforme advertem Nery e Baeta:

"Geralmente são várias as modalidades de ações projetuais possíveis em cada situação específica, cabendo ao arquiteto ter o discernimento crítico para julgar a potencialidade dos conjuntos arquitetônicos e urbanos para que sua proposta de intervenção não iniba, fragmente ou destrua a unidade paisagística existente, apreendida através da imagem emanada pelos objetos afetados". (p. 215)

Cotidianamente, assiste-se a ações de clara irresponsabilidade na atuação sobre os bens culturais, sem a necessária mediação teórico-conceitual e sem um discernimento crítico adequado, redundando em produtos frágeis, com impactos negativos nas próprias obras e em seu entorno. Irresponsabilidade ainda maior ao se levar em conta os prejuízos para a memória coletiva e a impossibilidade de recuperar as perdas no campo do patrimônio. Uma vez perdido, o está para sempre. Nessa seara, soluções fáceis são opções incongruentes com uma visão do processo histórico como dado irreversível e revelam uma incompreensão de nossa filiação à noção ocidental de tempo, que é linear e não cíclica. Dessa forma, reafirma-se a necessidade de enquadrar claramente e consistentemente o restauro em seu campo disciplinar, o único do qual se podem extrair as balizas para tomar decisões e agir de forma idônea e pertinente nas preexistências de valor cultural.

"Avaliar demanda aproximar-se desses conflitos e tensões, compreendendo que estes são partes da conformação e requalificação de qualquer nova intervenção; mas requer fundamentalmente saber ponderar sobre a adequação de cada uma destas inserções, que vão das mais acertadas às mais inaptas, passando por inúmeros graus de qualificação. É exatamente nesse momento que a construção teórica se faz importante na instrumentalização dos elementos analisáveis e consideráveis. É aí também que as tentativas de categorização e criação de cartilhas se revelam incapazes e insuficientes na necessária flexibilidade ao lidar com a singularidade dos casos reais – acabam congelando posturas institucionais estreitas, ou abrindo a ‘festa do vale tudo’ e a celebração da novidade rasa como a única possibilidade de escolha projetual frente à preexistência". (p. 420, grifo nosso)

Ruínas do Colégio do Caraça, Serra do Caraça MG. Arquitetos Rodrigo Meniconi e Maria Edwiges Leal
Foto Rodrigo Baeta

O projeto se apresenta como síntese de uma reflexão crítica, que olha acuradamente para seu objeto – ao mesmo tempo figurativo e historicizado – e responde adequadamente às suas demandas e necessidades, conjugando a valorização de suas vicissitudes formais e históricas com sua reinserção no mundo contemporâneo. Projeto como elo entre a teoria e a intervenção propriamente dita. Projeto como prefiguração daquilo que se deseja obter com a intervenção, de modo a garantir mais segurança e evitar “surpresas” ao se passar à etapa operacional do canteiro, evitando situações como a apresentada nas análises das obras de renovação urbanística da cidade de Roma após o Risorgimento:

"Muitas vezes, como no caso do isolamento da Colina do Campidoglio e da definição gradual do desenho da nova Piazza Venezia, o resultado obtido era reconhecido como ‘desagradável’ até mesmo pelos próprios técnicos. Isso se dava em consequência do fato que, frequentemente, não eram desenvolvidos os planos e projetos que deveriam prescrever as ações a serem tomadas após os desventramentos: primeiro demolia-se tudo o que estava à frente, para depois discorrer sobre o que fazer com as áreas desoladas". (p. 337, grifo nosso)

Além de existente, o projeto de restauração deve ser suficientemente detalhado, a fim de possibilitar sua correta interpretação no canteiro de obra por outros profissionais que se envolverão com a intervenção. No Brasil, desde as primeiras restaurações levadas a cabo pelo Sphan, tem sido comum a apresentação de projetos genéricos e sumários, sem o necessário detalhamento. Igualmente, as etapas de projeto são desrespeitadas e, por vezes, as obras têm início antes mesmo da aprovação do projeto junto aos órgãos competentes. De outra parte, especialmente quando se trata de intervenções em grandes monumentos, as obras são confiadas a grandes empreiteiras, que não dispõem de profissionais adequadamente preparados para esse tipo específico de obras civis, e o autor do projeto não acompanha a execução. Problema da nossa construção civil em geral – que é ainda mais danoso no campo da conservação dos bens culturais – a separação entre projetação e canteiro é acompanhada, geralmente, de um desrespeito ao projeto, e que, com sua identidade de concepção e partido, resultam em cenários lamentáveis, tais como o apresentado em relação ao conjunto de Laranjeiras/SE, onde:

"as novas deturpações causariam a fragmentação da concepção inicial, derrocando em uma cópia mal feita do passado, além de apresentarem um amontoado de expedientes arquitetônicos desconexos, derivados da colaboração de inúmeros agentes que não demostrariam nenhuma capacidade de avaliação conceitual, plástica e técnica para intervir em um patrimônio de tamanha importância (entre contratantes, projetistas e construtores da obra), prevalecendo, mais uma vez, forças políticas e econômicas em detrimento da arte e da história, na construção de cenários pasteurizados e ‘espetaculosos’". (p. 474, grifo nosso)

Museu Janete Costa de Arte Popular, Bairro do Ingá, Niterói. Arquiteto Mario Costa
Foto Rodrigo Baeta

Cabe ainda uma última colocação sobre as instigantes páginas que se seguirão. Ainda que o projeto seja o objeto principal desta publicação, ele vem acompanhado da advertência de que interessa ao campo dos bens culturais, no qual o projeto se concretiza, se materializa, passa a estar no mundo e, por isso mesmo, a nos afetar com sua existência concreta. A experiência de “completar” o projeto do antigo Restaurante Universitário (RU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e adaptá-lo às instalações da Faculdade de Comunicação (FACOM) ilustra bem os contrassensos de tais ações. Mais uma vez, a acurada visão de Brandi chama a atenção para a necessidade de compreender os tempos da obra de arte e precisar o momento oportuno para a intervenção:

"O restauro, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro, além disso, e devido à mesma exigência que impõe o respeito da complexa historicidade que compete à obra de arte, não deverá colocar-se como secreta e quase fora do tempo, mas fazer-se de modo a ser pontuada como evento histórico que é, pelo fato de ser ação humana e de inserir-se no processo de transmissão da obra de arte para o futuro". (BRANDI, 2009, p. 55, tradução nossa)

Se necessitamos debater os projetos de intervenção nas preexistências de valor cultural, devemos, juntamente, aprofundar a compreensão dos resultados dessas intervenções no ambiente concreto da vida com os instrumentos oriundos da crítica, que no Brasil têm sido tão pouco explorados. Certamente, a presente publicação traz importante contribuição nesse campo. A leitura das diversas experiências analisadas ao longo desta publicação, que demonstram o olhar didático e, principalmente, arquitetônico dos autores sobre conteúdos “teórico-críticos e situações que se colocam entre o restauro e a recriação”, (p. 38) nos convida a empreender um debate ainda incipiente, porém fundamental, especialmente no Brasil: o projeto sobre preexistências de valor cultural e sua (necessária) ligação com os postulados teóricos da restauração. Nesse sentido, a publicação de Entre o Restauro e a Recriação: reflexões sobre intervenções em preexistências arquitetônicas e urbanas, abre a possibilidade de amplificar o chamado ao debate, franqueando a um público mais extenso a oportunidade de nele tomar parte.

Palácio Tomé de Sousa, Salvador. Arquiteto João Filgueiras Lima, Lelé
Foto Rodrigo Baeta

nota

NE – o presente texto é a apresentação do livro comentado.

sobre a autora

Claudia dos Reis e Cunha é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia (FAUED UFU), do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia (PPG-AU UFU) e do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos da Universidade Federal da Bahia (MP-CECRE UFBA).

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resenha do livro

Entre o restauro e a recriação

Entre o restauro e a recriação

Reflexões sobre intervenções em preexistências arquitetônicas e urbanas

Juliana Cardoso Nery and Rodrigo Espinha Baeta

2022

247.02 livro
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