O jornalista, tradutor, poeta e crítico literário brasileiro Mário Faustino (1930-1962) definiu João Cabral de Melo Neto dizendo: “O senhor João Cabral é um poeta para quem a história existe, a geografia existe e a sociologia existe”. Definição de que o poeta pernambucano certa feita afirmou muito orgulhar-se.
Ao ler Memória repartida, eu me lembrei dessa definição, e ouso parodiá-la afirmando que o senhor Getúlio Marcos Pereira Neves é um autor para quem a história existe, a geografia existe, e o Espírito Santo existe. Defino-o assim por conhecer, não apenas este romance que aqui resenho, mas também outras obras do escritor e sua atuação como magistrado, pesquisador e músico. Todas elas relevantes para a cultura no Espírito Santo.
Publicado pela editora portuguesa Chiado, este romance foi por mim lido “de uma talagada só”, como talvez dissesse o seu personagem Antídio Marcolino. Da mesma forma foi que o reli agora em junho, para esta resenha.
A história tardia da ocupação do norte do Espírito Santo, com seus conflitos entre índios, desbravadores, jagunços; a sociedade movida a mando de um coronel, posteriormente atualizado sob o título de doutor; a peculiar geografia dessa região; sua riqueza paisagística; seus produtos naturais; suas tradições, lendas e mezinhas, em suma: sua cultura – tudo isso está plenamente ao dispor de uma leitura com fins de estudo. Mas a atilada pesquisa não é o único mérito deste romance.
Não fosse tudo isso o bastante, o autor nos brinda com valores literários que nos enredam no universo por ele criado. São os personagens profundos, muito bem trabalhados, verossímeis: os meninos, os moços, os homens, as meninas, as moças, as mulheres, as senhoras, as mães, esposas, amantes, namoradas, prostitutas; são as descrições paisagísticas, arquitetônicas e urbanas, que nos ambientam na “Vila” e no município onde se desenrola a trama; são as aventuras dos meninos no rio, e as desventuras amorosas do narrador e dos homens locais; é o pleno conhecimento do autor dos encantos e desencantos proporcionados pelo futebol.
A série de méritos não para por aí. Há ainda os recursos literários tomados de outros gêneros, como o cordel sobre uma personagem lendária local, e o crime elaborado como nos melhores romances policiais. São acionados igualmente os recursos do historiador, do herbolário, do colecionador, do geógrafo, do economista. Todos presentes na narrativa e, depois, descobertos em livros na estante da personagem central, farta em títulos de autores e temas espírito-santenses. Luiz Guilherme Santos Neves, Renato Pacheco, Maria Stella de Novaes, Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa, Ivan Borgo e Ceciliano Abel de Almeida são alguns deles.
Restam ainda as investidas tomadas ao cinema, como o clima de bangue-bangue nas disputas entre as personagens do desenvolvimento local; e, por fim, mas não menos importantes, os recursos pictóricos, que povoam as descrições que ambientam a trama.
Prometi a mim mesma que tentaria resumir todo este universo em duas páginas, o que penso ter conseguido. Mas não me furto a citar duas passagens ilustrativas:
A primeira é a do futebol, que, como ao autor, me fascina:
"E eis também que acaba o jogo. Ficou mesmo em dois a um para os da sede. No mínimo um contratempo na, até então, boa (dizem) temporada do tal zagueiro. Desgraçado, foi atrasar uma bola para o goleiro dentro da área, numa jogada de ataque do adversário, e deu no que deu" (p. 16).
A segunda é a da paisagem da Vila, descrita em termos pictóricos:
“O sol começava a se pôr detrás da sucessão de morros que dali se vê. O reflexo dos raios, avermelhando as águas do rio lá abaixo, davam um colorido todo especial àquelas tardes da Vila, onde as aves aproveitavam as correntes de ar quente num voo plácido que se desenrolava muito acima, mesmo entre as nuvens – aliás, quase nenhuma, num dia tórrido como vai acabando de ser este” (p. 13-14).
Observações argutas, descrições poéticas, menções a consagrados intelectuais do Espírito Santo, como o saudoso Miguel Depes Tallon; conselhos literários para escritores iniciantes; romances dentro do romance, e tudo o mais que tentei sintetizar aqui fazem deste livro uma obra cativante, e, não apenas para os espírito-santenses.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) e doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Histórico (UFPE, 2008). Servidora pública municipal há 30 anos, atualmente trabalha na Coordenação de Revitalização Urbana da Secretaria Municipal de Desenvolvimento da Cidade. Colaboradora e integrante do Corpo Editorial de Vitruvius, publica neste portal desde o ano de 2004.