Qual foi a trajetória da moradia urbana teresinense entre segunda metade do século 19 até meados do século 20? Como a busca pela modernidade, conforto e salubridade interferiram na concepção estética e funcional desses exemplares? A arquiteta e historiadora Amanda Cavalcante Moreira, que tem como objeto de estudo as principais formas de morar identificadas na capital e no estado do Piauí, traz discussões de tal natureza em sua pesquisa, na qual articula a intimidade entre as produções citadas e contexto no qual se desenvolveram, elucidando como a associação entre os fatores sociais e econômicos puderam originar uma arquitetura de “características muito particulares”, como ela mesma denomina.

A dissertação intitulada Teresina e as moradias da região central da cidade (1852-1952), foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, no ano de 2016, e atualmente se encontra publicada na biblioteca digital da instituição. Trata-se de um escrito cujo valor historiográfico salta aos olhos daqueles que buscam compreender e se aprofundar sobre a construção da arquitetura teresinense. Tem como foco a produção edificada no centro da cidade durante seus primeiros cem anos, utilizando as residências como uma ferramenta de análise. Ela justifica tal escolha pela relevância dessa tipologia como uma materialização cultural e como um “protótipo” de experimentação das tentativas de modernização sofridas pela cidade no decorrer desse primeiro século. Por isso, o objetivo central de seu estudo é, através da caracterização e análise desse objeto, compreender as transformações que essa arquitetura sofreu, discutindo a importância dos agentes impulsionadores desse processo.

Diante disso, Amanda coloca como a grande problemática que envolve seu objeto de pesquisa o processo de bruscas renovações pelas quais o centro da cidade vem passando nas últimas décadas, e que tem ameaçado a integridade desses exemplares com violentas descaracterizações. Por isso, defende a urgência de estudar e registrar esse patrimônio antes que a “bola da demolição” o acerte, e impeça sua percepção pelos que ainda virão.

Partindo disso, para uma melhor compreensão de como o estudo foi sendo construído, e familiarizando o leitor com as questões recorrentes de uma pesquisa científica, é relatado o ajuste que precisou ser feito em seu objeto de estudo, visto que, de início, a ideia era se debruçar sobre as residências ecléticas do centro de Teresina, produzidas no período em questão. No entanto, a linha tênue que diferencia os estilos recorrentes na cidade, e a ausência de um conceito fechado do que seria o “eclético teresinense”, a fizeram ampliar seu olhar para toda produção residencial da região central de Teresina no mesmo recorte temporal, resultando no levantamento de mais de trezentos exemplares, dos quais ela escolheu alguns para destacar e analisar minuciosamente. Já a escolha do recorte temporal se deu em função do crescimento urbano considerável que a Teresina apresentou até a década de 1950, apesar de ser um período pouco estudado e documentado quanto à produção arquitetônica.

Em relação ao conteúdo dissertado, ela optou por organizá-lo em três capítulos, estes resultantes de uma divisão dos cem anos estudados em três recortes temporais, sendo o início de cada um deles determinado por algum marco da história da capital que teve reflexos diretos nessa produção arquitetônica. Essa estruturação revela o propósito da autora em fomentar, no leitor, uma articulação entre a arquitetura e os agentes que impulsionaram suas transformações, em detrimento de uma leitura superficial das obras, focada apenas nos aspectos estilísticos.

O primeiro capítulo (1852-1900) tem como marco inicial o surgimento da cidade, uma vez que se interpreta necessária a familiarização do leitor com as condições que antecederam a disseminação da arquitetura estudada. Dentre as ideias centrais desse capítulo, estão os aspectos relativos à fundação de Teresina como cidade planejada, e, principalmente, às limitações econômicas e técnicas que foram determinantes no desenvolvimento dessas manifestações construtivas. Inicialmente, essas questões são relacionadas ao surgimento dos primeiros prédios públicos da cidade, visto que a estética aplicada a eles teria reflexos diretos na arquitetura residencial. Posteriormente, são escolhidas algumas edificações dentre as poucas que ainda resistem, e, com base nos primeiros códigos de posturas implantados, são realizadas algumas análises, como por exemplo a relação entre o surgimento do porão alto na casa do Barão de Gurgueia e a busca pela salubridade que emergia na cidade.

O segundo capítulo (1900-1938), por sua vez, já oferece ao leitor uma maior amostra da arquitetura produzida e analisada no trabalho, e desponta como o capítulo mais denso em relação ao conteúdo, visto que tem como marco o início do século XX, momento em que o ecletismo de difunde de maneira significativa pela arquitetura residencial do centro, carregada das prerrogativas de progresso que se disseminavam, especialmente em função das determinações dos Códigos de Posturas de 1905 e 1912. Outro ponto de grande relevância para esse capítulo, e até mesmo para a dissertação como um todo, é o espaço que se dedica para ressaltar a importância dos construtores e engenheiros na difusão dessa nova arquitetura, contribuindo com informações raras sobre importantes passagens da história da arquitetura local. Além disso, ainda levanta algumas questões de grande pertinência social, ao mostrar o quão elitista se manteve a arquitetura eclética, mesmo depois de um período de intensa disseminação.

Já o último dos três capítulos tem como marco inicial a promulgação do Código de Posturas de 1939, em função do grande papel modernizador que ele agrega à cidade de Teresina nas proximidades de seu centenário, e que se reflete nas produções residenciais da época. Ainda nesse capítulo, a autora revela uma mudança na estética arquitetônica predominante, uma vez que o neocolonial passa a ocupar a dianteira na concepção da arquitetura residencial. Assim como na seção anterior, ressalta a relevância dos engenheiros na disseminação dessa nova estética, e dedica um tópico para discorrer sobre a contribuição do engenheiro Cícero Ferraz de Sousa Martins, considerado, por ela, como o profissional mais renomado da cidade na execução e no projeto de edificações residenciais, atribuindo a ele a autoria de muitas obras tidas como de procedência desconhecida, firmando o ineditismo e a relevância da sua pesquisa para a historiografia da arquitetura piauiense.

Ainda quanto a esse tópico, é pertinente discorrer sobre a abordagem das edificações residenciais desse profissional, que, apesar da relevância, são apenas citadas, e não detalhadamente analisadas, o que, no entanto, pode ser visto positivamente ao abrir precedentes para uma continuação desse estudo. A partir daí, é realizada a análise das edificações escolhidas para esse terceiro recorte, datadas entre 1939 e 1952, o ano do centenário, fazendo nota de suas principais características, sempre buscando articular o que é esteticamente apurado com suas possíveis motivações.

Em relação a iconografia da dissertação, a autora, enquanto arquiteta e historiadora, permite uma profunda compreensão das obras ao dispor de um rico acervo fotográfico que vai, desde imagens autorais, até os mais raros exemplares obtidos em acervos, demonstrando um criterioso trabalho investigativo. A obra também é enriquecida pelo artifício adotado por ela em construir linhas do tempo com as principais edificações analisadas, facilitando a compreensão dessas obras e sua articulação dentro do recorte temporal adotado.

Ressalta-se também que, ao discorrer sobre as residências, agrega-se ao trabalho uma grande carga afetiva, despertando em seus leitores, não apenas naqueles que já cruzaram com tais exemplares, mas em qualquer um que tenha memórias relacionadas a alguma residência antiga, a sensação de familiaridade e pertencimento. Paralelo a isso, configura-se um notável ponto dentro da dissertação o contato que se estabelece com relevantes trechos dos códigos de posturas da cidade, documentos de difícil acesso que foram garimpados arduamente e que oferecem ao leitor uma rica noção da sociedade da época.

Como conclusão do que é exposto no decorrer do trabalho, é sublinhada a importância e complexidade desse objeto de estudo, assim como de tal abordagem perante a ele, reconhecendo-o como uma amostra relevante do cenário heterogêneo e diversificado que é a arquitetura brasileira. Amanda se preocupa em enfatizar a riqueza dessa produção repleta de particularidades, exemplificadas pelas escolhas de implantação e pelas reinterpretações de estilo que se adequavam às limitações técnicas e financeiras da época. Dito isso, é necessário salientar o papel dessa obra como um dos poucos exemplares publicados com foco nesse primeiro século da história arquitetônica teresinense, sobre o qual as fontes são raras e imprecisas, demonstrando o minucioso trabalho de garimpo e análise desenvolvido pela autora, revelando, para quem se interessa em desvendá-la, a originalidade da sua pesquisa, além de sua coerência perante as necessidades da historiografia local e do alcance desse tipo de estudo, ao construir uma sólida referência bibliográfica para investigações vindouras.

sobre a autora

Camila Soares de Figueiredo é arquiteta (UFPI, 2020, distinção acadêmica Láurea Universitária), especialista em Projeto de Arquitetura e urbanismo (Faculdade Metropolitana de Ribeirão Preto, 2022) e mestranda em Teoria e História da Arquitetura pela Universidade Federal do Ceará (UFC).