Há muito tempo o imaginário deixou de ser fruto de uma percepção direta da realidade. Hoje, mais do que nunca, o imaginário se constrói através de uma visualização incessante das representações da realidade, das imagens técnicas. O imaginário do arquiteto, infelizmente, só pode compreender e assimilar aquilo que lhe é ensinado ou mostrado. E o que nós arquitetos temos feito, é mostrar, de alguma forma, a eterna perpetuação da ausência da figura humana na representação arquitetônica, seja por fotos, seja por projeções.
Este ensaio surge a partir da leitura de um texto do filósofo Vilém Flusser intitulado Phantom City (2), escrito para uma exposição fotográfica que percorreu algumas cidades da Europa nos anos de 85 e 86. A exposição mostrava fotografias de vários autores, cujo tema era a cidade sem pessoas. Esse material constitui um desdobramento da visão premonitória do papel da fotografia como imagem técnica, e da exclusão do homem das atividades públicas da cidade.
Phantom City é, de certa forma, uma continuidade das idéias de Flusser apresentadas em sua famosa obra Filosofia da caixa preta, e serviu de referência a meus estudos realizados no final dos anos 80 sobre a fotografia de arquitetura (3), sendo fundamental para a descoberta de que não só as fotografias da referida exposição eram marcadas pela ausência da figura humana, mas que essa ausência também se apresentava em praticamente todas as imagens contidas em revistas e livros de história da arquitetura.
Para fotógrafos e arquitetos, persiste até hoje o mito de que capturar a presença de um sorriso, a expressão de satisfação ou de tristeza de alguém se constitui numa linguagem fotográfica não científica e não aplicável à arquitetura; nada mais errôneo que a idéia de que a arquitetura e a cidade devem falar por si mesmas, sem a intromissão de seus moradores. Retirar a figura humana da fotografia de arquitetura é retirar a alma da cidade e da própria arquitetura, é ver nelas somente a beleza e o caráter objetivo.
A questão da fotografia de arquitetura deve ser colocada em dois níveis de reflexão: o nível específico da representação fotográfica e das atribuições da fotografia como representação arquitetônica, e o nível que diz respeito ao âmbito da filosofia da comunicação.
O fotógrafo e o arquiteto não deveriam se utilizar da pretensa virtude de isolamento do objeto para torná-lo algo objetivo e, portanto, analisável cientificamente como se fosse uma radiografia, como requerem os desenhos técnicos.
As fotografias de arquitetura têm por objetivo divulgar a produção arquitetônica. Essa divulgação, no entanto, vem sendo acompanhada por uma desenfreada exibição pessoal dos arquitetos. Infelizmente, tem sido utilizada como uma imagem para a promoção dos arquitetos, e isso na verdade pouco tem a ver com a arquitetura. A fotografia em si não é o documento principal, é um pálido reflexo que visa substituir o que realmente está “lá fora”.
O verdadeiro documento da arquitetura continua sendo ela mesma (4).
Uma das idéias que está por trás da exclusão da figura humana é a de mostrar como está feita a arquitetura e de como pode ser copiada e inspirar outras, ou seja, ela deve possuir claridade e legibilidade suficientes para a compreensão do espaço tal como é. O problema, no entanto é a idéia por trás desse “tal como é”.
Nas palavras de Flusser: “(...) os fotógrafos manipulam a cidade, retirando as pessoas. Mostram a cidade como desejariam que ela fosse. De qualquer modo, a cidade não é independente do observador. Ao contrário, é o alvo da flecha do observador. Obviamente, não existe a cidade sem as pessoas, e nem a arquitetura sem os seus moradores. Não existe objeto sem sujeito, do mesmo modo que não existe sujeito sem objeto. Essa inversão da relação objeto-sujeito é totalmente anti-humanista, porque retira o homem da cena. Nesse sentido, as fotografias são documentos de uma intenção”. (5)
Notadamente, as melhores representações de arquiteturas são as encontradas no cinema. Nos filmes, a arquitetura aparece normalmente como pano de fundo, mostrada de forma fragmentária, total ou mesmo como personagem. Na fotografia, porém, quando ela própria se torna a única personagem, em sua totalidade, em sua artificialidade de pose fotogênica, perde toda a sua virtuosidade, ficando tão fantasmagórica quanto aquelas pinturas de cidades ideais do Quattrocento de Piero de La Francesca, cujo objetivo era mostrar os admiráveis efeitos da perspectiva clássica proporcionados pela arquitetura.
Proponho que se ataque a fotografia, em parte porque desfruta de uma posição privilegiada e oficial, e quando digo atacar, estou propondo o debate sobre as relações entre arquitetura em sua base de representação. Quando critico a fotografia, em realidade estou criticando o ponto de vista da utilização tradicional. Se não mudarmos a nossa forma de ver o mundo, a “nova visão” será sempre a velha visão do mesmo.
Parece que os fotógrafos de arquitetura não se libertaram da prática dos primeiros tempos, quando os objetos animados e as pessoas eram excluídas propositadamente porque perturbavam a imagem fotográfica, que demorava a se formar no fundo da câmara. Para captar esse vazio da cidade, os fotógrafos tinham que acordar muito cedo, ou saírem aos domingos, enquanto a cidade estava ainda dormindo, inanimada, como em algumas fotografias de Nadar e Atget, onde se percebe as poucas pessoas existentes como fantasmas (6).
Arquitetos e urbanistas continuam achando que o que se vê nas revistas e nas fotos é exatamente aquilo que há "lá fora", e não conseguem perceber que estes edifícios, que estas fotografias, fazem parte de uma cidade imaginária. Essa cidade que se “re-apresenta” nada mais é que uma coletânea de edifícios-imagens, desanimados e classificados como borboletas nas páginas de revistas e livros. Uma cidade fantasma, onde não mora ninguém, totalmente oposta à cidade real.
É típico das imagens técnicas jogar ao mesmo tempo com a crença e com a descrença, buscar instalar no nível da percepção uma segurança existencial cujos limites são nebulosos, mas eficazes, estabelecidos por regras de percepção cultural e universal ditadas por essas mesmas imagens.
A cidade imaginária, espectral que representamos hoje pode ser o modelo metafórico da cidade do amanhã. Ocorreu algo parecido com os modelos de cidades ideais e reticuladas do Renascimento, inicialmente existentes só em representações, mas que se concretizaram, em sua totalidade ou em partes, a partir do século XVIII, principalmente no novo mundo.
Acho que seria oportuno entender as fotografias e imagens técnicas não como representações fiéis da realidade, mas como o índex de um projeto, de uma futura construção a ser criada, como metáfora do abandono do modelo da cidade moderna tradicional do século XX, afetada pelo impacto da informática e pela estética do desaparecimento (7).
Pode-se dizer que as fantasmagóricas cidades exibidas em revistas, e agora nas telas dos computadores, são a visão de um futuro espectral de duas cidades: uma virtual, com intensa atividade e outra real, onde pouco circulamos, ou pouco existimos, que visa, entre outras coisas, o confinamento de nossos corpos em nossas próprias casas.
Foi exatamente esse ponto de transformação das cidades, a crise da substituição de um modelo urbano por outro, que Flusser antecipou, com grande lucidez e ironia: “A cidade (em grego, polis; em latim, res publica) se compõe de casas particulares (em grego, oikataie; em latim, res private), e de um mercado aberto (agorá, fórum). Se considerarmos as conotações dos termos que acabam de ser citados, observaremos que falam da essência mesma da existência humana. Pois a cidade é uma materialização da estrutura dinâmica da vida civilizada.
O mercado não é unicamente aberto às pessoas que saem de casa para fazer negócios. Não é unicamente aberto às pessoas que vão exibir o que fazem na intimidade, ou para levar para casa o que os outros exibiram. Ele é aberto às pessoas vagarosas, às pessoas que não têm nada a fazer, às pessoas livres (em grego, schole; em latim, ótium). Essa gente ociosa abandona sua casa para encontrar outras pessoas ociosas e intercambiar idéias. Esse intercâmbio de idéias vigorosas, puro, é o que os gregos chamavam de “Filosofia”.
A atual revolução da informação consiste, precisamente, em substituir a cidade por um aparelho de comunicação diferente. O princípio é fácil: deixar de lado o mercado e construir canais que levem a informação produzida pelo autor, de um lugar particular diretamente ao lugar particular do receptor. E não é necessário que se pense em tecnologias atuais como o telefone, o rádio e a televisão para entender este princípio. A imprensa e o correio, essas tecnologias relativamente antigas, já o ilustram. Não precisamos ir à cidade, se podemos ver o que se passa pelo jornal enquanto comemos, ou se podemos trocar idéias com nossos amigos por cartas. A única coisa que a revolução informativa faz é anunciar o bastante, as informações enviadas no espaço privado e acelerar o ritmo da distribuição.
Já não é necessário sair para fazer compras quando se pode ter a informação exibida em seu terminal, quando se pode solidificar a informação desejada por fax e usá-la imediatamente. Não é necessário também ir ao banco se podemos ver o movimento de nossa conta em casa, retirar ou depositar através da Internet. Também não precisamos ir ao cinema se podemos ver o filme na TV, tampouco necessitamos ir às urnas nas eleições se podemos fazê-lo apenas apertando as teclas do computador doméstico. Em suma, a revolução informática converte a cidade em uma coisa obsoleta em quase todos os aspectos da sua função comunicativa.
O que observaremos não serão casas particulares distribuídas por todo lugar, com cabos e satélites que conectam cada casa particular com todas as outras. O que verão não será o povo substituindo as cidades. O que acontecerá é, na realidade, um sistema de cabos irradiantes numa ponta, onde há poucos emissores e, em outra ponta, uma massa enorme de receptores solitários e isolados” (8).
Hoje, com os avanços da informática e de outros meios de comunicação como a telefonia e a Internet, começa-se a perceber que estes meios acabam absorvendo, e muitas vezes substituindo o papel comunicativo da arquitetura. Este é, efetivamente um dos princípios de transformação e renovação constante das cidades. Até aí, nenhuma novidade, pois a arquitetura, ao longo da história, sofreu constantemente este processo de oxigenação. Um dos exemplos mais expressivos da substituição em termos de suporte de representação e de narração foi o surgimento da imprensa e do livro, em contraposição às superfícies narrativas das paredes da catedral gótica, o livro de pedra, como designava Victor Hugo em seu célebre romance Notre Dame de Paris. Victor Hugo acreditava que o livro impresso, a imprensa, mataria a função narrativa da arquitetura. Em parte, assim foi (9).
Tudo mudou e continua mudando. Hoje não precisamos mais sair de casa para fazer compras, para ir ao mercado, ao banco ou às lojas, nem participar da vida pública cara a cara. Podemos ficar eternamente acomodados dentro de nossos próprios mundinhos. O mercado, o fórum, o agorá, estão agora dentro de casa, embutidos na TV, na Internet, no telefone. A casa não está mais na rua, mas a rua, dentro de casa.
Agora podemos ver as fotografias de arquitetura não só como parte de uma cidade fantasma, abandonada, como uma metáfora do abandono da cidade tradicional moderna, conforme sugeriu Flusser, mas podemos também imaginar que as pessoas não abandonaram a cidade, continuam lá, só que dentro de suas casas, dentro das fotografias, metidos e entretidos dentro da “rede”.
As idéias de Flusser não são totalmente novas ou originais; curiosamente, a partir dos anos 60 compreendeu-se que a arquitetura deveria significar, comunicar, e todos os esforços se voltaram para os seus aspectos comunicativos e formais. Surgiu uma série de livros sobre a linguagem e o significado da arquitetura e da cidade. Hoje, com a implantação da rede global de comunicação, da informática, percebe-se que a arquitetura não só significa e comunica, mas é o próprio “meio” de comunicação. A própria comunicação, o meio, o veículo, a mensagem.
Até então, não se conseguia perceber que a arquitetura é uma extensão do homem como a vestimenta; um meio de comunicação que se utiliza de energia, como explicou antecipadamente Marshall McLuhan.
Jean Baudrillard, Paul Virilio, Guy Debord entre outros, produziram uma forte crítica aos meios de comunicação de massa. Entretanto, Mc Luhan foi um dos primeiros críticos a antever o panorama globalizante e a relacionar a arquitetura e a cidade como meios e extensões do homem.
Em 1964, Mc Luhan já mostrava em Understanding Media: the extensions of man, que toda tecnologia gera gradualmente um ambiente humano totalmente novo, e que esses ambientes não são envoltórios passivos, mas processos antigos e ativos. “O meio é a mensagem” significava, em termos da era eletrônica, que já havia sido criado um ambiente novo cujo conteúdo era o antigo ambiente mecanizado da era industrial. O novo ambiente reprocessara o velho tão rapidamente quanto a TV reprocessara o cinema.
O tema constante de Understanding Media (10) é que todas as tecnologias são extensões de nosso sistema físico e nervoso, relacionadas com a energia e a velocidade. Qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão ou ampliação de nosso corpo, e essa extensão exige novas relações e equilíbrio entre os demais órgãos e extensões do corpo. Contemplar, utilizar ou perceber essas extensões de nós mesmos sob uma forma tecnológica implica necessariamente em adotá-la, depender dela como se fosse uma prótese.
É essa contínua adoção de nossa própria tecnologia, para Mc Luhan, que nos coloca no papel de narciso da consciência e é responsável pelo adormecimento subliminar em relação às imagens que temos de nós mesmos. A idade da angústia e dos meios eletrônicos que hoje vivemos é também a idade da inconsciência e da apatia.
Mas surpreendentemente, também é a idade da consciência do inconsciente.
A mesma década que proclamou a revolução da comunicação, a introspecção corporal, e deu os primeiros passos para a informatização do mundo, proclamou também a revalorização da vida pública, da extroversão, da vivência em comunidades, da vida ao ar livre, da cultura hippie e do existencialismo.
Na arquitetura, esses pensamentos se concretizaram na exaltação da casa ambulante, no culto ao trailler, na teoria da mobilidade, na casa como lugar usado basicamente para dormir. Isso se expressou nitidamente nas vivendas mínimas, nas cápsulas e células de morar.
As propostas dos metabolistas japoneses, as teorias de crescimento, identidade, clusters dos Smithson’s, as utopias urbanísticas de Archigram, Yona Friedmann, Paolo Soleri, Superstudio, B. Fuller, entre outros, no fundo fomentavam a vida pública, o ócio. Um novo nomadismo, em contraposição à vida privada e a reclusão. Não é à toa que a teoria dos encontros, em particular a fenomenologia, teve neste período uma certa repercussão. A rua voltava a desempenhar um papel fundamental nas relações sociais, veja-se por exemplo, Urban Struturing, de Peter e Alison Smithson.
Quanto mais me informatizo, mais diminui minha atração por essa parafernália. Esse complexo de máquinas, em minha opinião, é, literalmente uma rede de comunicação que serve apenas para capturar os usuários, não envolvendo as pessoas no seu sentido mais amplo de comunicação, de interação física e emocional. Trata-se, decididamente, de uma comunicação de almas sem corpos, uma espécie de mortos-vivos às avessas, alimentando-se através de cabos e fios artificiais. Ligações e terminais.
O que está embrulhado neste processo, e que muitos não conseguem ver é basicamente uma economia montada sobre o consumo de energia que transita de um lado a outro do planeta, a compra e venda da invisibilidade, da energia controlada pelas multinacionais e corporações de telecomunicações. Com muita acuidade, Mc Luhan também observava que: “A tecnologia elétrica está relacionada diretamente com nosso sistema nervoso central, de modo que é ridículo falar do que o público quer brincando com seus próprios nervos. Poucos direitos nos restam a partir do momento em que submetemos nosso sistema nervoso e sensorial à manipulação particular daqueles que procuram lucrar arrendando nossos olhos, ouvidos e mentes. Alugar nossos olhos, ouvidos e nervos para interesses particulares é o mesmo que transferir a conversação comum para uma empresa particular ou dar a atmosfera terrestre em monopólio a uma companhia” (11).
Na economia energética, se estabelece uma relação de consumo e demanda: consumimos energia das máquinas e elas consomem as nossas, através do constante estado de atenção e alerta que elas exigem. Sob este aspecto, uma importante transferência de energia, própria da arquitetura, passa para os espaços virtuais. Sabe-se, desde a hermética até a geobiologia e a radiestesia, que cada lugar possui sua peculiaridade energética, e partilhamos deste estado energético, saudável ou não, criado por nós mesmos. Entretanto, com a substituição de um modelo por outro, no caso, do físico pelo virtual, não só a alma do edifício desaparece, sua energia também acaba desaparecendo.
Todo esse aparato de comunicação e a velocidade das informações produzem benefícios, “rola muita energia pela rede”, mas também são responsáveis pela ansiedade e a fadiga intelectual, o stress.
O cineasta Jean Epstein, já nos anos 50, em seu artigo Fadiga do homem espectador (12), percebera esse processo montado em cima da velocidade, da aceleração da espetacularidade,da fadiga do homem espectador.
Muitos poderão argumentar que o sistema de comunicação informatizado, em sua essência, não é muito diferente dos antigos sistemas. Certamente que não, mas possui pequenas e sutis diferenças, que estão trazendo grandes e relevantes mudanças na organização das cidades, dentro da própria arquitetura e, conseqüentemente, no comportamento social.
Não é à toa que a proliferação da violência interessa a todas as grandes corporações de comunicação e informatização e aos grandes conglomerados de bancos e administradoras de crédito. Quanto mais perigosas e feias tornarem-se as ruas, mais seremos forçados a ficar em casa, consumindo energia e pagando pelo o uso das linhas para nos comunicarmos uns com os outros.
Para mim, o retrato mais fiel deste panorama de isolamento e desencontro entre pessoas, encontra-se no filme Denise está chamando, de Hal Salwen. O filme tem como tema um grupo de amigos que só se conhecem por telefone, via Internet, e que passam o tempo todo se comunicando uns com os outros, contando seu dia-a-dia através destes meios. Marcam encontros com freqüência, mas por um motivo ou outro, acabam nunca se encontrando, nem mesmo em suas festas de aniversário. Quando realmente resolvem se encontrar, não se reconhecem, nem mesmo pelas fotografias ou fax de suas fotos.
O discurso da estrutura informatizada, da cidade virtualizada, que agora se apresenta, deveria também ser da conta de arquitetos e urbanistas, pois ele nos afeta, e para ele devemos estar preparados. O desaparecimento de certos espaços não significa, entretanto, o desaparecimento de nossa competência. Muitas coisas da cidade tradicional estão desaparecendo ou já desapareceram. Parte da vida pública, do agorá como espaço e local de encontro, está sendo substituída rapidamente pelas redes emissoras que funcionam como vitrines ou intermediários de toda sorte de produtos, vendidos através da TV e da Internet.
Estamos, desde já, plugados, atados a esses fios como homens terminais, navegando em uma longa e densa rede difícil de ser mapeada e compreendida. Obviamente para os cinéfilos, Matrix é o sistema.
Deveríamos ter em mente que os cabos e os fios desempenham a mesma função das ruas: circular, transportar informações, encontrar-se. Toda a rede de comunicação corresponde a uma arquitetura de cabos, conexões, terminais e malhas, substituindo pontes, ruas, caminhos, estradas e trilhas. Basta ver a terminologia utilizada: infovias, navegar, site, portais, windows, etc.
As janelas tradicionais da arquitetura estão sendo trocadas pelas falsas janelas da fotografia, dos monitores dos computadores, da TV. A cada dia a vida parece mais bonita pela TV, pelo cinema do que na realidade. Mas isto é próprio das representações na cultura ocidental, e que não deve ser colocado em termos de oposição entre realidade e representação, mas simplesmente tratar de reincorporar a beleza da representação à realidade e, assim, dar “mais realidade” à vida.
Retomando a linha de Phantom City, Flusser observou a importância da janela como elemento de comunicação. “Tomemos, por exemplo, a janela. Através dela podemos observar quando chove o que se passa lá fora sem nos molharmos. A janela protege a intimidade, e nos permite, de certa forma, participar da vida da cidade. Pode ser que isso explique por que os revolucionários gostavam de jogar pedras contra as janelas... As portas, ao contrário das janelas, têm a função de comunicar os corpos, de deixar sair e entrar, são os buracos que nos abrem para vida pública, para a comunicação com os demais” (14).
Evidentemente não podemos ser paranóicos a ponto de pensar que um sistema substituirá o outro de modo totalitário. Porém, podemos acreditar que os dois sistemas, o tradicional e o informatizado, poderão coexistir simultaneamente, até porque, no presente momento, parece impossível suprimir totalmente a arquitetura da existência humana. A cidade e a arquitetura, entretanto, deixarão de ser o que eram, serão reestruturadas, a partir desses aspectos comunicacionais em voga. Não mais a partir do valor comunicacional da imagem do edifício, do significado, mas sobre uma densidade e profundidade maiores, que resgatam um discurso que se perdeu no tempo: o da arquitetura como meio. Com isso, quero dizer uma vez mais que a arquitetura é, simultaneamente, o meio, a mensagem.
A informática faz alguns espaços desaparecerem em um passe de mágica e os tele-transporta para lugar nenhum. Lugares públicos tradicionais como bancos, cinemas, mercados, oficinas, tendem a encolher de tamanho e até desaparecer. Além de dar sumiço na arquitetura, a informática incrementa o controle, inibe o crescimento físico das cidades e dos espaços. Isso significa repressão, retenção.
Esse confinamento, essa transferência de certos espaços e usos de um mundo a outro talvez seja uma saída ao crescimento, aos deslocamentos e à organização das grandes cidades, o mito da megalópolis, em contraposição às propostas e utopias urbanísticas dos anos 60. Duvido, no entanto, que seja a única.
A informatização e a rede absorvem tudo. Podemos colocar tudo nela, como se fosse um saco sem fundo, um suporte de reprodução quase infinito. Algo bastante similar ocorreu com a pintura em relação à fotografia. Baudelaire acreditava que a fotografia era um sistema de representação que competia com a pintura. Mas o que se observou no decorrer do século foi que a fotografia era mais que um sistema de representação, era uma fabulosa superfície de absorção, capaz de absorver tudo, inclusive a pintura. Esta absorção, entretanto, não significava a troca de um modelo por outro. Ela implicou numa reestruturação do modelo absorvido a partir de novas bases, no abandono de suas funções anteriores, de suas formas de apresentação e na busca de novos conceitos, enveredando por outros caminhos, a fim de perpetuar-se enquanto estrutura. Tal como aconteceu com a pintura realista.
Certamente, continuaremos tendo todos os modelos de cidades construídos ao longo da História, só que agora convivendo simultaneamente com mais um: o da cidade virtual, fantasmagórica, espectral. É possível que alguém encontre virtude nisso tudo, e num futuro próximo possa caminhar virtualmente dentro de um novo modelo de Shopping Center, fazer suas compras, encontrar com seus amigos virtuais em bares, ou ainda se apresentar como uma pessoa fisicamente completamente diferente do que é, como seu alter ego.
Com o desaparecimento físico do mercado vieram o encolhimento e a poupança dos espaços físicos públicos. Também outro objetivo da revolução da informática, – além do desaparecimento e da fragmentação da sociedade em uma nova multiplicidade de pequenos pedaços desconectados fisicamente uns dos outros –, é justamente manter as pessoas em casa, olhando o mundo através dessas falsas janelas que trazem cada vez mais o trabalho e o lazer para dentro do lar. O mundo exterior dentro do interior.
Essa cidade espectral, que se visibiliza por alguns instantes, está impondo também um fim à economia tradicional, algo jamais imaginado por Marx. Com o desaparecimento de parte da cidade, Mc Luhan observou que desaparece também o dinheiro, a espécie. Na medida em que o trabalho é substituído pelo puro movimento e circulação da informação, o dinheiro enquanto informação, enquanto depósito de trabalho, vai se fundindo com as formas informacionais do cartão de crédito.
“Onde o homem global está envolvido não há trabalho, pois o trabalho começa com a divisão do trabalho. Na era da informação instantânea, o homem dá por fim o seu trabalho de especialização fragmentada e assume o papel de coletor de informações” (15).
“Em lugar de pensar em fazer compras pela televisão, seria melhor que tivéssemos consciência de que a intercomunicação televisionada significa o fim das compras, e o fim do trabalho, tal como hoje conhecemos” (16).
Às vezes, o cenário delineado é sedutor, mas devemos estar atentos, porque os meios, as extensões, produzem acontecimentos, realizações e fantasias, mas não a conscientização dessas fantasias. Eles nos transformam em espectadores, não em atores.
Algumas considerações terminais sobre cabos e fios ainda se fazem necessárias. Todo meio, toda forma de transporte, toda arquitetura, não apenas conduz, mas traduz e transforma o transmissor, o receptor e a mensagem. Para o filósofo da Aldeia Global, o termo comunicação já era empregado extensivamente na era da eletricidade, referindo-se a estradas e pontes, rotas marítimas, rios e canais, antes mesmo de ser transformado em movimento da informação.
Talvez não haja modo mais adequado de definir a natureza da era da eletricidade do que associá-la, inicialmente, ao surgimento da idéia de transporte como comunicação, e depois da transição da idéia de transporte para a idéia de informação, por meio da eletricidade. Foi só com o advento do telégrafo que a mensagem no mundo começou a viajar mais depressa do que o mensageiro. Antes dele, as estradas e a palavra escrita estavam estreitamente interligadas. A partir do início do século, com o aparecimento do automóvel, dos grandes transatlânticos, da consagração dos trens, dos aviões, a cidade sofreu um impacto avassalador, a ponto de sua estrutura ter de ser readaptada às novas condições de transporte e comunicação, as quais exigiam novas formas de organização espacial.
Certamente a fragmentação da cidade em dezenas de subúrbios, a criação de cidades satélites e jardins, deve-se muito mais ao aparecimento do automóvel, dos transportes de massa do que propriamente às proposições do CIAM, da Carta de Atenas ou dos princípios de funcionais de trabalhar, circular, habitar, recrear, preconizados por Le Corbusier.
Tanto a história da arquitetura como a da arte, de um modo geral, tem o hábito de estar construídas sobre si próprias. Isolando todo o resto, acabaram por menosprezar e refutar os verdadeiros fatores incidentes sobre a transformação das cidades ao longo da história, algo bastante similar ao que está acontecendo agora. Talvez os únicos historiadores da arquitetura que chegaram a contemplar a importância da tecnologia foram Lewis Munford e Giedion.
Outro ponto importante na mudança da estrutura físico-urbana, provocado pelos meios de comunicação de massa, é a dispersão urbana e o fim da idéia de um centro único. Com o advento da rede de comunicações e o transporte de massas, criam-se centros por toda parte. E ter muitos centros significa não ter nenhum. O espaço urbano é totalmente irrelevante para o telefone, para o celular, o rádio, a televisão e a Internet. Aquilo que os urbanistas chamam de escala humana, de "centralidade" ao discutir os espaços urbanos, está desligado dessas formas elétrico-eletrônicas. Tudo o que eles discutem atualmente em termos de urbanismo, desenho urbano, para mim já não faz muito sentido. Os conceitos de tempo-espaço e deslocamento foram irremediavelmente alterados. As extensões simplesmente contornam o espaço e o tempo, criando problemas e soluções sem precedentes na organização espacial humana. O meio tradicional está desaparecendo.
Nossa conhecida cidade especializada, fragmentada, baseada na estrutura centro-margem, está subitamente experimentando uma reunião instantânea de todas as suas partes dispersas num todo orgânico virtual. Ela está se recolando num outro espaço imaginário.
A cidade fantasma.
Este é o mundo novo da Aldeia Global.
Sob todos os aspectos, a arte é sempre reveladora e anunciatória. Depois da teoria do schock, ao longo do século XX, vieram a apatia e o entorpecimento, a cegueira e a surdez do mundo. Na era da comunicação, não é de se estranhar que o mundo resolva silenciar.
notas
1
Artigo publicado originalmente na Revista do PROPAR, n. 01, Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
2
FLUSSER, Vilém. Phantom City. La ciutat espectre. Barcelona: Fundación Joan Miró, 1985. Veja do mesmo autor: Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
3
As relações entre fotografia e arquitetura foram desenvolvidas em minha tese de doutorado: Arquitectura como collage. Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona. Universitat Politécnica de Catalunya, durante os anos de 1987-92.
4
Tratei do tema do papel da fotografia de arquitetura nas revistas no ensaio “Folhas da arquitetura”, publicado na Revista Projeto, n. 176, jul. 1994, p. 84-85.
5
Flusser, op. cit., p. 13
6
Nesse sentido as fotografias obtidas através da Pin-Hole (câmara escura) utilizadas pelo Prof. Dr. Jochen Dietrich e o Clube da Lata (Adriana Boff, Bárbara Nunes, Betina Frichmann, Claiton Dornellles, Juliana Angeli, Ricardo Jaeger e Tiago Rivaldo), são uma profunda crítica ao espaço-tempo na fotografia.
7
VIRILIO. Paul. Estética de la desaparición. Barcelona: Anagrama, 1988.
8
Flusser, op. cit., p. 9
9
Sobre as relações entre suportes de representação e arquitetura veja-se FUÃO, F. (org.) "Fantástico na arquitetura" em Arquiteturas fantásticas, Porto Alegre, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Faculdades Integradas Ritter dos Reis, 1999. Veja também, do mesmo autor: 1. Arquitectura como collage. Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona. Universitat Politécnica de Catalunya. 1992. (Tese de Doutorado); 2. Folhas da arquitetura. Revista Projeto, n. 176, jul. 1994. p. 84-85.
10
Mc LUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem- Understanding Media. São Paulo: Editora Cultrix, 1974.11
Mc LUHAN, op.cit., p. 88
12
EPSTEIN, Jean. Fadiga del hombre espectador, em " La esencia del cine". Buenos Aires: Nueva Visión, 1957.
13
EPSTEIN, op.cit., p. 63.
14
FLUSSER, op. cit., p. 10.
15
Mc Luhan, op. cit., p. 160.
16
Mc Luhan, op. cit., p. 248.
sobre o autor
Fernando Freitas Fuão é arquiteto, doutor pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona com a tese “Arquitectura como Collage”, 1992. Atualmente é professor na Faculdade de Arquitetura e no Programa de Pesquisa e Pós- Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e autor dos livros “Arquiteturas Fantásticas” (org.) (Editora da UFRGS- Faculdade Ritter dos Reis, 1999), e “ Canyons – Avenida Borges de Medeiros e o Itaimbezinho” (Edição do autor, 2001) e de ensaios como “Folhas de Arquitetura”, “A Órbita da Collage”, “Brutalismo: a última trincheira do movimento moderno”, “Michele Finger: A persistência da memória”