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JÁUREGUI, Jorge Mario. O intangível em psicanálise e arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 025.03, Vitruvius, jun. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.025/772>.

Arquitetura e psicanálise pertencem a campos diferentes de saber e também de práticas. O que não impede que possam ser pensados pontos de interseção. Mas isto não comporta uma “interdisciplinariedade”, que implicaria a ilusão de uma complementariedade do conhecimento como tentativa de produzir um “todo” do saber.

Estes pontos de interseção possíveis se produzem a partir da escuta do que cada campo tem a dizer. E o que tem a dizer a psicanálise, que possa produzir uma interseção com a arquitetura?

O campo freudiano é o campo de desejo. Freud designa o desejo como “wunsch” e “lust”. No primeiro sentido é voto, aspiração, desejo, e no segundo, prazer, vontade. Mas este conceito de desejo em Freud não se corresponde simplesmente com o que a palavra desejo nos indica no dicionário. O “wunsch” é o desejo recalcado inconsciente que comporta um saber não sabido. Não se confunde com a necessidade. Sabemos que no plano das necessidades – fome, sede, etc – no ser falante podem ser conduzidas a respostas que não se restringem necessariamente às necessidades quando se trata do desejo. Esse “desejo” que Freud nomeia, é enigmático. Se bem a necessidade pode se satisfazer num objeto adequado, o desejo é de outro registro. Ele se realiza nos sonhos e nas fantasias, que são signos de percepção pelos quais uma experiência de prazer ou desprazer tem sido memorizada no aparelho psíquico sob a forma dos traços mnémicos. Quando se procura o objeto na realidade, a procura é a partir desses traços mnémicos, objeto que remete a algo perdido desde o início e que deixa uma inscrição. Isto determina a dimensão do impossível para a psicanálise; um impossível lógico.

Podemos entender assim a definição que Freud dá na Interpretação dos Sonhos: “desejo é o impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação”. Esta primeira experiência de satisfação é de ordem mítica, indicando esse lugar de perda como fundamento, ou como causa, da fala no homem, marcando assim a relação de este ser vivo homem, com a estrutura da linguagem. O desejo comporta um lugar de perda que determina um campo de tensão. Nesse sentido não é adaptativo, não é simplesmente homeostático e por isso não corresponde só ao principio do prazer. Seu correlato é uma ruptura desse principio que se chama na psicanálise, pulsão. Freud a nomeia pulsão de morte, como além do principio do prazer. Isto é diferente da morte biológica. Desejo e pulsão são as duas vertentes do sujeito que determinam sua realidade psíquica como diferente da homeostase orgânica. Produz-se uma fragmentação que, paradoxalmente, sustenta a função da vida. “A vida é o conjunto de forças onde se significa a morte, que será para a vida, o seu carril”, Sigmund Freud.

O desejo se manifesta a partir da demanda, nos diz Lacan. A demanda é a articulação significante na qual devemos escutar o desejo, como um aquém ou além da demanda. A psicanálise nos alerta para o fato de que nesta escuta não se trata de “responder” e sim de aportar algo a mais. Que no vínculo que se estabelece, há algo a mais em jogo que não é simplesmente questão de “necessidades”.  No campo da Arquitetura e do Urbanismo, do que se trata é de ver como se coloca em jogo esse além, referido ao desejo que intervém no ato projetual onde age um saber não sabido, algo do próprio ato da criação do objeto (arquitetônico ou urbanístico) e que é nesse lugar onde o arquiteto está implicado.

O objeto arquitetônico vai do pequeno objeto (a casa por ex.) ao grande objeto (a cidade), tendo uma ampla escala de abrangência (S, M, L, XL).

Projetar implica construir, costurar e representar “idéias”; idéias capazes de traduzir o “espírito” de uma época, a sua “zeitgeist”, representadas na maneira de viver, nos valores, que devem corresponder sempre à máxima expressão da época. Por isso um projeto deve avançar para além das demandas.

Intencionalidade estética e criação de um ambiente favorável à vida são os caracteres estáveis da arquitetura, onde a conformação da matéria e a transformação do mundo físico se fazem de acordo com uma “vontade ordenadora”. Ao mesmo tempo em que objeto físico, o objeto arquitetônico é sustento de significações, matéria portadora de sentido, matéria significante. Desde este ponto de vista, a arquitetura é uma linguagem, e a psicanálise contribui para esclarecer as relações entre essa vontade ordenadora e a funcionalidade (sempre um limitador no caso da arquitetura, o fato de ter que “servir para”, sem falar na pouco adequada expressão “arte utilitária”, pois como sabemos com a psicanálise, a arte “não serve para nada”).

Lacan diz, “se este edifício nos solicita é pois, porque, por metafórico que for, ele está bem feito para nos lembrar o que diferencia a arquitetura do edifício : seja uma potência lógica que ordena (a arquitetura) além do que o edifício suporta de possível utilização. Assim, nenhum edifício, salvo que se reduza “a la baraque” (a um casebre)  poderá prescindir desta ordem que o faz parente do discurso. Esta lógica não se harmoniza com a eficácia senão para dominá-la e sua discórdia não é, na arte da construção, um fato somente eventual.” O que vem colocar uma distinção clara entre  aquilo que é funcional, e aquilo que possui uma elaboração formal-espacial consistente (potência lógica ordenadora), que no campo da arquitetura é um ato de caráter estruturante que pressupõe uma pulsão estética.

Assim, não se trata somente de impor uma ordem, de “organizar”, de dispor as coisas segundo uma certa lógica funcional e depois lhe dar um “tratamento estetizante”. No contexto em que estamos falando, a elaboração arquitetônica consiste na configuração do vazio. Configuração do vazio pelas suas bordas, numa montagem, numa construção, que significa se ocupar de modelar alguma coisa que não é, necessariamente, nem interior nem exterior, senão tão somente, e precisamente, uma borda; comandados pela intencionalidade estética (articulada ao desejo), que deve se sobrepor à demanda, isto é, à funcionalidade. A arquitetura constrói esta separação e trata da luz. O corte tem sido sempre um dos mecanismos tradicionais para a determinação da relação sólido-vazio na arquitetura. Se a planta é o lugar onde tradicionalmente se determina a ordem da composição (mediante a disposição das funções), o corte é o mecanismo pelo qual se canaliza o desejo, mediante o tratamento do espaço e sua qualificação através do manejo da luz, possibilitando distintas formas de sermos afetados.

A psicanálise nos indica que o significante não guarda uma correspondência com a coisa representada, nem mantém uma relação referencial. O “das ding” - que Freud indica em “Projeto de uma psicologia para neurólogos”, de 1895, e Lacan retoma no Seminário VII, na “Ètica da Psicanálise”, em 1959-60 -, a coisa, paradoxalmente, é o que não se articula ao significante, é o vazio fundamental, condição de possibilidade de toda produção significante.

A arquitetura  então tem a ver com a constituição desse vazio, tal vez emparentado a esse das ding. E Lacan nos diz também que “a arquitetura primitiva pode ser definida como algo estruturado ao redor do vazio. Reencontrar o vazio sagrado está na base de toda arquitetura”.

A casa é um exemplo da corporização desse vazio e está ligada ao desejo. É o vazio que estrutura todos os espaços (na arquitetura primitiva, do que se tratava era de traçar a fronteira entre um interior e um exterior; é o caso do monumento, a pirâmide, por exemplo). Depois, na modernidade, há uma permeabilidade dessa fronteira através da transparência. Hoje, buscamos incorporar, além disso, a continuidade topológica, uma diluição da condição interior-exterior.

Vazio dos espaços públicos na cidade, vazio dos interiores, dos pátios (“pátio, cielo encauzado, el pátio es el declive por el cual se derrama el cielo en la casa”, diz Jorge Luis Borges.).

Assim, do que se trata é de construir esse vazio, como o oleiro que o modela configurando-o com o vaso; o vazio pulsa. È a alma da arquitetura. O vazio é essa região separada do cheio por uma fronteira que não cessa de perfurar.

Hoje, a materialização do vazio põe em jogo outras geometrias.  Em particular, a geometria topológica pode nos permitir passar do espaço euclidiano para um espaço topológico, onde as relações de continuidade interior-exterior se colocam de uma outra forma, possibilitando alternativas mais nuançadas de articulação das relações, objeto-cidade, intimidade-exposição, transparência-opacidade, etc. De acordo com Jean-Michel Vapperau, é necessário diferenciar entre o vazio e o efeito de espaço, no sentido da necessidade da introdução de um vazio que não é euclidiano senão topológico (como lugar); um vazio que não se mede. De acordo com ele, topologicamente existem duas formas de estruturação espacial: o enlaçamento e o nó. O laço opera sobre a base da oposição cheio-vazio, exterior-interior, figura-fundo, centro-periferia, etc. O nó tende a fazer desaparecer estas oposições permitindo espaços policêntricos,  a-hierárquicos, dobrados, redes ou rizomas, possibilitando composições de coerência diferenciada e variação nas intensidades, estruturadas segundo uma topologia conectiva dentro de um campo coerente.

No domínio da arquitetura, o advento dos sistemas de desenho assistidos por computador tornou a distinção entre geometrias simples e complexas, insustentável. Geometrias simples, retilíneas e topologias curvas são agora vistas como pontos de uma escala corrediça de complexidades, mais do que como tipos fundamentalmente diferentes de formas. Em muitos designs contemporâneos, novas geometrias e outras mais familiares, são fusionadas dentro de uma continuidade espacial. Isto tudo determina uma nova condição onde predominam deformações e heterogeneidades que questionam a espacialidade estática, a homogeneidade de magnitudes e a constância da forma no tempo, que no seu momento caracterizaram os métodos de composição tradicionais.

Assim, toda vez que o arquiteto se aventura no projeto, o desejo inconsciente se apropria do mesmo. Por isso a função do arquiteto excede a de uma profissão para se constituir em intérprete do desejo do outro (semelhante). Aqui se diferencia do psicanalista enquanto intérprete do desejo do Outro (todo o campo significante, lugar da estrutura da linguagem), que é o próprio da experiência analítica.

O arquiteto, projetando desde o lugar do desejo, tem a sua função emparelhada com a arte, e neste sentido o projetar implica uma aventura que o coloca perante o insondável do desejo. Esse abismo próprio do desejo transparece de múltiplas formas ligadas a uma tensão interna, seja na angústia deslocada aos detalhes de ordem técnica, seja numa certa impossibilidade de concluir, seja numa forma de insatisfação (nunca o projeto corresponde “totalmente” ao desejado ou imaginado).

A psicanálise nos alerta também quanto à ética, quando, frente às determinações de todo tipo (econômicas, políticas, sociais, culturais), o ato projetual deve implicar numa posição ética que em termos gerais podemos resumi-la assim: “é necessário fazer o que deve ser feito”. Mas este “dever” não é da ordem da moral ou do direito. È um dever no qual se coloca permanentemente em jogo esse “além da demanda”, isto é, o desejo no ato projetual. Por isso, do que se trata num projeto não é de agradar como maneira de sedução ou harmonia; em todo caso, não é essa a questão fundamental.

A estética é o que se constitui sempre em desafio, o desafio da estética, que está ligado à produção do novo. “Estese”, palavra grega que significa sensação, de onde se origina o vocábulo estética, se refere ao que produz laço, ao que permite, juntos, sentirmos alguma coisa (emoção estética).

Podemos dizer que a ética de um arquiteto está intimamente relacionada com a sua estética e tem a ver com esse intangível que é o que transparece da articulação que faz entre projeto (dessin) e as intenções (dessein) para as quais aponta.

notas

1
Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Psicanálise e Interseções-Arquitetura:”Luz e Metáfora: Um Olhar Sobre o Espaço e Significados”, Porto Alegre, 23  de Maio de 2002.

sobre autor

Jorge Mario Jáuregui é arquiteto-urbanista, ganhador do Sixth Veronica Rudge Green Prize em Desenho Urbano da Universidade de Harvard, Graduate School of Design, do ano 2000, colaborador da Escola Letra Freudiana, Rio de Janeiro

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