Após um período de total desvalorização do planejamento na década de 1980, quando muitos projetos urbanos foram concebidos de forma isolada e conduzidos pelo setor privado, ressurge nessa última década o reconhecimento da relevância do poder público no controle do desenvolvimento urbano. São vários os modelos de planejamento urbano que reivindicam o lugar antes ocupado pelo desacreditado Plano Diretor. Entre eles, o Planejamento Estratégico se destaca como um dos mais difundidos.
Assim como os planos urbanos desenvolvidos no período pós-guerra, o Planejamento Estratégico também enfatiza a importância dos projetos urbanos. Entretanto, dois fatores referentes ao projeto urbano parecem diferenciar entre si esses modelos: o relacionamento entre as escalas do planejamento e do projeto e o referencial teórico utilizado pelos arquitetos na ação projetual.
O primeiro fator diz respeito à relação dialética entre o plano e o projeto urbano presente no Planejamento Estratégico, rejeitando formalmente a hierarquia do planejamento convencional. O projeto não é mais visto apenas como um produto derivado do planejamento onde os seus impactos supostamente obedecem uma lógica pré-estabelecida nos objetivos do plano. No Planejamento Estratégico, portanto, o projeto abandona a posição passiva diante do plano urbano podendo até mesmo redirecioná-lo.
O segundo, se refere ao instrumental teórico baseado nos conceitos do Desenho Urbano que têm sido aplicados na elaboração dos projetos urbanos contemporâneos. Enquanto os projetos desenvolvidos após a segunda guerra mundial baseavam-se nos paradigmas modernistas estabelecidos pelo CIAM (1), os projetos urbanos mais recentes seguem os princípios desenvolvidos pelo Desenho Urbano.
O presente artigo pretende discutir o relacionamento plano-projeto e a importância do Desenho Urbano como instrumento teórico no Planejamento Estratégico. Pretende ainda examinar, sob o ponto de vista do arquiteto projetista, a conexão entre essas duas escalas urbanas e até que ponto a qualidade do projeto urbano pode influenciar no sucesso ou fracasso do Plano Estratégico.
Finalmente, como contribuição mais geral ao debate urbano contemporâneo, o artigo apresenta algumas reflexões sobre o papel do arquiteto e da qualidade do projeto urbano na construção das cidades.
Planejamento Estratégico (PE): as relações entre o plano e o projeto
Baseado na premissa que o processo de globalização no qual as grandes cidades se encontram tem mudado radicalmente os seus papeis e as relações entre elas, o PE se propõe a adaptá-las a este novo contexto. Se por um lado esta realidade tem transformado as cidades em protagonistas nas relações internacionais do mundo contemporâneo, por outro, tem induzido o desenvolvimento de um profundo senso de competitividade na disputa acirrada pelo seu espaço próprio nessa rede urbana internacional (2).
Tendo como paradigma o inegável sucesso de Barcelona e como principais representantes um grupo de planejadores catalães, este modelo de planejamento sugere a elaboração de um “projeto de cidade” que teria como objetivo leva-la à conquista de sua posição global. Segundo Borja e Forn (3), o maior desafio do planejamento urbano contemporâneo é aumentar o potencial competitivo das cidades no sentido de responder às demandas globais e atrair recursos humanos e financeiros internacionais.
Em termos conceituais, existe uma grande diferença entre o tradicional Plano Diretor e o PE. O primeiro, se apresenta fundamentalmente como um plano normativo, mais preocupado com a regulamentação de futuras e eventuais intervenções urbanas. O segundo, se propõe a ser um plano de ações visando soluções de problemas atuais e concentrando-se nas possíveis articulações de agentes urbanos com o objetivo de explorar as reais possibilidades da cidade.
Segundo Nuno Portas (4), o fato da maioria das grandes cidades ter parado de crescer em ritmo acelerado, permitiu que o urbanismo deixasse de ser um urbanismo de antecipação e previsão para assumir uma postura mais imediatista diante dos problemas já existentes. Além disto, consciente da grande limitação dos recursos financeiros do Estado, o PE valoriza a sua capacidade promotora e propõe que o urbanismo contemporâneo seja baseado na negociação, objetivando aproveitar ou até mesmo criar oportunidades para o desenvolvimento local (5).
Entretanto, a mais relevante característica do PE, no que diz respeito à este artigo, é o retorno à ênfase conferida ao projeto urbano e a sua nova relação com o plano. Além de desempenhar um importante papel no PE, os projetos urbanos não se apresentam como produtos derivados de um plano já concluído como no planejamento convencional. Neste modelo de planejamento, os projetos urbanos nascem e se desenvolvem numa relação aberta, flexível e, sobretudo, desprovida de qualquer sentido hierárquico com o plano (6).
A relação dialética entre essas duas escalas urbanas proposta no PE, possibilita que o desenvolvimento do plano defina os projetos urbanos e as prioridades entre eles, ao mesmo tempo em que estes mesmos projetos, ao serem desenhados e implementados, ajudam a estabelecer os objetivos gerais do plano, muitas vezes até redefinindo as suas estratégias básicas. Assim sendo, da mesma maneira que o PE pode legitimar um grupo de projetos urbanos articulados, o contrário também pode ocorrer e projetos urbanos, algumas vezes já elaborados antes mesmo do início do plano, podem também ser incorporados ao plano para ajudá-lo na sua viabilização (7).
Borja e Castells (8) acreditam que se os projetos urbanos estiverem comprometidos com competitividade econômica, integração social e sustentabilidade ambiental, eles devem ser incorporados ao plano para que lhes sejam asseguradas unidade e coerência. O PE, por se propor a ter um forte componente participativo no sentido de estabelecer consensos sociais, automaticamente transfere esta qualidade aos projetos urbanos, que muitas vezes são acusados de acentuarem as desigualdades sociais e a fragmentação do tecido urbano, dando-lhes mais legitimação e visibilidade. Por outro lado, o oposto também pode ocorrer e projetos urbanos bem sucedidos podem dar ao PE credibilidade e senso de eficácia.
Em termos estratégicos esse modelo de planejamento sugere a articulação de projetos urbanos pontuais, cuidadosamente localizados de forma que os seus efeitos transcendam as áreas de intervenções. O potencial estratégico destas intervenções urbanas depende da coerência dos projetos com outras intervenções articuladas por um plano mais abrangente e o poder de gerar benefícios sobre os seus entornos imediatos, tanto no que diz respeito aos aspectos sócio-econômicos como físico-espaciais. É exatamente esta capacidade de ampliar os benefícios às áreas vizinhas das intervenções que legitima a intensidade do capital público investido em poucos e restritos pontos da cidade.
Desenho Urbano (DU): o embasamento teórico na ação projetual
A urgente demanda de reconstruir as cidades européias parcialmente destruídas na segunda guerra mundial trouxe à tona uma série de espaços urbanos projetados segundo princípios modernistas. Apesar da maioria desses projetos ter tido o nobre objetivo de criar espaços urbanos confortáveis e socialmente mais justos, um significativo número deles não respondeu plenamente às necessidades humanas básicas diante do ambiente construído.
Com isto, uma gradual e constante insatisfação entre os profissionais e usuários sobre a qualidade espacial desses ambientes urbanos começou a tomar corpo. Através da sistematização dessas críticas se desenvolveu a estrutura teórica do DU, que aos poucos vem se estabelecendo como atividade profissional relacionada à ação projetual e enquanto disciplina acadêmica, fundamentada sobretudo em pesquisas referentes à relação direta entre o ambiente construído e o comportamento social (9).
Um grande número de estudos direcionados ao entendimento dessa relação vem sendo realizado desde os anos 1960 e um razoável conhecimento tem sido extraído dessas pesquisas. Apesar da compreensão absoluta deste tema estar ainda longe de ser atingida, e inegável que informações relevantes e com aplicação imediata no processo projetual foram produzidas.
Entretanto, essa área de estudo se apresenta mais desenvolvida nas disciplinas referentes às ciências comportamentais como a antropologia, psicologia, sociologia e mais recentemente a geografia. De fato, esta abordagem contemporânea do DU tem provocado uma certa reação por parte de alguns arquitetos que resistem em incorporá-la nas suas ações projetuais.
Esse conhecimento de base quase-científica extraído das pesquisas parece confundir a auto-imagem desses arquitetos enquanto artistas expressando percepções pessoais e intuitivas da sociedade através da projetação do ambiente urbano. O paradigma comportamental parece não interessar a esses arquitetos que preferem projetar com base estilística seguindo as tendências do mundo artístico (10).
O foco deste artigo, no que diz respeito ao debate do DU, se concentra no tópico referente à natureza intelectual dessa disciplina. Desenvolve-se a partir da dicotomia existente na prática do DU enquanto atividade artística de base intuitiva e\ou atividade quase-científica de base comportamental. Aborda a diferença entre a atitude projetual centrada na arte pura, que prioriza a qualidade visual do espaço urbano através da utilização de princípios estéticos e a atitude projetual comprometida com ações direcionadas ao melhoramento da qualidade de vida das pessoas que utilizam o ambiente construído (11).
Projetos urbanos e o perfil personalista de seus autores
Essa nova geração de projetos urbanos, concebida sob os princípios do DU e comprometida com o PE que também é conhecida como urbanismo de “terceira geração”, tem sido vista de forma distinta das gerações anteriores. Muitos teóricos urbanos afirmam que os arquitetos projetistas contemporâneos têm uma visão mais ampla e comprometida com a dimensão socioeconômica do desenvolvimento urbano e não abordam mais a intervenção urbana como projetos arquitetônicos de grande escala e isolados (12).
Neste contexto, o projeto urbano contemporâneo se propõe a ter um significado estratégico, que ao ser articulado a outros projetos pontuais inseridos num plano provoque efeitos benéficos que transcendam os limites da área de intervenção. Para tal, esses projetos devem superar o perfil personalista de seus autores com plena autonomia projetual, para serem incorporadas a uma rede de intervenções pontuais articuladas com o objetivo maior de requalificar áreas mais vastas (13).
A questão proposta neste artigo é que um grande número desses projetos urbanos parece não ter ainda superado o perfil personalista de seus autores. Apesar desses projetos não serem mais baseados na ideologia modernista, mas sim seguirem uma agenda urbana pós-moderna, eles ainda parecem ser concebidos como grandes e isolados projetos arquitetônicos.
São muitos os arquitetos urbanistas que se mostram mais preocupados com a originalidade dos seus próprios projetos (14) do que com as supostas articulações das suas propostas com os projetos dos seus colegas e em última instância, com a integração do seu projeto ao plano urbano.
A hipótese levantada é a existência de uma contradição inerente à esse modelo de planejamento referente ao papel do projeto urbano. Ao mesmo tempo em que esses projetos deveriam ser menos personalizados para facilitar a articulação entre eles sugerida pelo PE, eles têm sido usados como poderosos instrumentos de marketing urbano.
A grande maioria desses projetos apresenta um forte apelo visual com o claro objetivo de atrair a atenção do público. Além do fato desses projetos serem freqüentemente desenhados por celebridades da arquitetura internacional, que normalmente produzem um trabalho extremamente personalizado, com o objetivo de dar mais visibilidade para a cidade.
Considerações finais
É inegável que com o PE o arquiteto projetista voltou a ser o protagonista na dinâmica do planejamento urbano, sobretudo se considerarmos a relação hierarquicamente independente entre o projeto e o plano presente neste modelo de planejamento. Cresce com isso o poder do arquiteto de influenciar, através de seus projetos, decisões que transcendam o âmbito da escala projetual, aumentando assim a sua responsabilidade. A compreensão de todo o processo, principalmente no que se refere às articulações dos projetos urbanos entre si e com o plano, passou a ser essencial para o bom desempenho dos projetistas.
O desconhecimento por parte do arquiteto das complexas relações entre plano e projeto no planejamento contemporâneo pode ter sérias conseqüências com graves repercussões sociais. A mais óbvia seria favorecer a manipulação do PE para legitimar uma série de intervenções pontuais desarticuladas, que tenham como objetivo beneficiar grupos privilegiados através da valorização imobiliária de nichos urbanos (15). O consentimento formal do poder público através da má utilização desse modelo de planejamento tornaria essas intervenções ainda mais danosas do que os projetos urbanos gerenciados pelo mercado realizados na década de 80.
Seria ingênuo acreditar que a postura do arquiteto diante do seu projeto é suficiente para determinar ou impedir o sentido deformador do PE. Outros atores urbanos envolvidos nesse processo, como as instituições públicas, os empreendedores e a própria comunidade também desempenham papéis de fundamental importância nesse contexto. Por outro lado, a participação do arquiteto urbanista através da sua ação projetual deve ser considerada um importante componente dessa equação.
É fato que em toda ação projetual sempre está, e provavelmente sempre estará, presente a dimensão artística de fundamentação predominantemente intuitiva. Afinal, todo projeto arquitetônico ou urbano, além de servir ao seu uso, expressa através de sua estética um estilo que nada mais é do que a materialização do pensamento de um povo numa determinada época. A história tem estabelecido relações nítidas entre os espaços urbanos, o tempo e as sociedades nas quais foram construídos. Enfim, o espaço urbano é também uma obra de arte na qual um momento específico da cultura humana é retratado.
Assim, como em qualquer outra atividade artística, faz-se imprescindível um certo grau de personalismo na projetação dos espaços urbanos. Entretanto, parece indiscutível que o excesso desse componente pode dificultar ou mesmo comprometer o entrosamento funcional e estético entre espaços projetados por diferentes arquitetos. É neste particular que se apresenta a grande complexidade do relacionamento entre as intervenções pontuais propostas pelo PE. Como garantir a individualização da ação projetual e a articulação coletiva dos projetos resultantes desta ação?
Neste sentido, as relações estabelecidas entre o comportamento social e o espaço urbano, assim como outras áreas de concentração do DU, podem desempenhar um papel de extrema importância, funcionando como um elo de ligação conceitual entre as propostas. O embasamento teórico inserido no processo projetual que, ao ser somado à criatividade intuitiva do arquiteto, ajude na realização de espaços urbanos de qualidade funcional e estética. Assim, o DU deve ser visto como uma disciplina híbrida, composta por elementos de base quase-científica somados à dimensão artística de natureza intuitiva.
Parece ser fundamental que o arquiteto contemporâneo assuma essa ambigüidade contida na concepção dos projetos urbanos, sem receio de que a utilização do conhecimento adquirido através das pesquisas acadêmicas limite o seu potencial criativo. Afinal, e essa mesma ambigüidade que impede o desenvolvimento de teorias precisas que, ao serem aplicadas corretamente, garantam a realização de um espaço urbano de qualidade. O misterioso componente denominado “criatividade”, que insiste em permanecer indecifrável, é o principal fator diferencial entre o resultado mediano e o genial.
Para finalizar, é sempre bom lembrar que a falência dos projetos urbanos modernistas em atender às necessidades dos seus usuários contribuiu de forma imperativa para o descrédito do projeto urbano. Com isto, a imagem do arquiteto também foi comprometida e o projetista urbano passou a ser visto durante um longo período como uma peça de importância secundária, convocado apenas no final do processo para materializar graficamente propostas já concebidas.
No PE, a revalorização do projeto urbano se apresenta como uma oportunidade para o arquiteto reconquistar o legítimo papel de protagonista na dinâmica do planejamento urbano. Para tal, é preciso que a postura do arquiteto na elaboração da sua proposta, demonstre coerência com o novo papel do projeto urbano no processo de planejamento. Caso contrário, corremos o risco de voltarmos a ser considerados simples maquiadores dos espaços urbanos.
notas
1
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna: fórum realizado nos anos 1920 para debater o desenvolvimento do Movimento Moderno nas escalas arquitetônica e urbana.
2
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local and global: the management of cities in the information age. Earthscan Publications Limited, London, 1997.
3
BORJA, Jordi; FORN, Manuel. Politicas da Europa e dos Estados para as Cidades, Espaço e Debates, São Paulo, n. 39, p. 32-47, 1996.
4
PORTAS, Nuno. Un nuevo urbanism. CASTELLS, Manuel(org.). Las grandes ciudades en la decada de los noventa. Barcelona, p. 273-281, 1993.
5
Em algumas cidades a mobilização para a elaboração e implantação do PE tem sido facilitada através da promoção de grandes eventos internacionais.
6
PORTAS, Nuno. Os impasses do planejamento. Urbs, São Paulo, 1998.
7
Este foi o caso de Barcelona, que incorporou uma série de projetos que já estavam em andamento antes da elaboração do PE.
8
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel, op. cit.
9
BARNETT, Jonathan. An introduction to urban design, Harper and Row, New York, 1982.
10
FRANCESCATO, Guido. Paradigm lost: exploring possibilities in environmental design research and practice. HARDIE, Graeme; MOORE, Robin; SANOFF, Henry (eds). Changing paradigmas: proceedings of EDRA20 / 1989. Environmental Design Research Association.
11
LANG, Jon. Urban design: the american experience, Van Nostrand Reinhold, New York, 1994.
12
O termo em inglês para definir esse tipo de projeto é “big architecture” e tem sido freqüentemente empregado de forma pejorativa no debate do DU para se referir aos projetos urbanos concebidos sob forte influência da tradição artística da arquitetura.
13
MADEIRA, Luis. Projeto urbano e planejamento: o caso do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1999.
14
MCGLYNN, Sue. Reviewing the rhetoric. MCGLYNN, Sue; HAYWARD, R. Making better places: urban design now, Butterworth, Oxford, 1993. Sue McGlynn observa que na tradição arquitetônica a originalidade do projeto é um dos fatores de maior importância na reputação do arquiteto.
15
ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Vozes, 2000.
sobre o autor
Zeca Brandão é arquiteto e Professor Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – e doutorando pela Architectural Association School of London – AASchool na condição de bolsista da CAPES