Pode parecer um contra-senso um debate entre scholars norte-americanos e cubanos sobre o ensino do urbanismo para o século XXI a ser implementado em Cuba, realizado nos dias 12-14 de abril em Windsor, um sofisticado povoado para milionários, em Vero Beach, Flórida. Na realidade hoje os milionários não são como os representava Maiacovsky no início do século, sempre vestidos com smoking, chapéu de copa e grossas e pesadas correntes de ouro sobre uma imensa barriga. Como agora os paradigmas de milionário não são apenas Morgan, Rockefeller ou Rothschild (citados nos textos de Lênin) mas também os novos espalhados pelo mundo, inclusive socialistas ou ex como os russos e chineses – os cubanos estão somente em Miami –, a imagem deles ficou mais amável e cotidiana – como é á de Bill Gates –, até aceita pelos revolucionários. Além disso, os que decidiram construir a sua casa de férias (ou uma delas) em Windsor, assumiram uma atitude comunitária (de forma nenhuma socialista porque até ali ainda não chegaram), aceitando morar em um povoado construído sob certas regras urbanísticas e normas arquitetônicas; decisão pouco comum, se compararmos este conjunto com a vulgaridade e o kitsch generalizados nos bairros de luxo de Miami ou Fort Laudardale.
Windsor foi desenhada em 1989 por Andrés Duany & Elisabeth Plater-Zyberk como uma versão sofisticada e de alto padrão econômico e social, assumida a partir dos exemplos urbanos precedentes para a classe média de Seaside, Middleton Hills e Cornell, e também inspirado no povoado experimental de Poundbury em Dorset, Inglaterra, promovido pelo Príncipe de Wales. Seguindo os princípios do New Urbanism, é um resort privado e exclusivo com 350 residências – com valores variando entre dois e quatro milhões de dólares –, organizado sobre três atividades básicas de lazer: golfe, praia e hipismo. Entre a praia e um campo de golfe, as casas se agrupam dentro de uma malha reticular, com um sistema viário diversificado, cujas principais vias de acesso e circulação se encontram em um centro comunitário, com uma praça e alguns prédios de administração e serviços. As distâncias entre as casas e as atividades sociais (o centro administrativo e o clube) estão na escala do pedestre; acontece uma mínima circulação de carros, e caso seja necessário os moradores se movimentam com os carrinhos elétricos do golfe. O princípio básico é manter a compacidade dos quarteirões – em contraposição ao esquema tradicional da casa isolada com o grande jardim e a piscina externa –, com as mansões voltadas diretamente para as ruas com uma estrutura interna baseada no modelo do pátio e galerias perimetrais. Este modelo romano-colonial, permite a continuidade formal das ruas e a privacidade interna, com o jardim e a piscina delimitados pelas habitações e colunatas. As tipologias arquitetônicas provém dos elementos assumidos do vernáculo americano, das mansões rurais do sul de Estados Unidos e de estilo “colonial-caribe”, baseado no uso dos materiais tradicionais – basicamente construção em tijolos e madeira, com telhados inclinados –, e enfatizando as grades, filtros, muxarabis e galerias para controlar o calor e o forte sol desta região da Flórida. As normas estabelecidas não limitam a diversidade dos desenhos elaborados por diferentes arquitetos – entre os mais conhecidos, citemos Hugh Newell Jacobsen e Clemens Bruns Schaub, Jim Gibson e a igreja de Leon Krier –, que obtiveram alguns exemplos interessantes na articulação entre o vernáculo e o moderno, em vários casos identificados com a decoração interna e o mobiliário.
O seminário – Windsor Forum on Design Education – foi organizado por Andrés M. Duany, Stephanie Bothwell, Steven Hurtt e Dhiru A. Thadani, com o apoio de várias fundações americanas – The Robert Wood Johnson Foundation; The J.M. Kaplan Fund – e a Escola de Arquitetura da Universidade de Miami. A idéia básica foi reunir 40 arquitetos, urbanistas e professores universitários para discutir a situação atual do ensino do urbanismo (principalmente nos Estados Unidos) e propor novas alternativas para o século XXI, que permitam enfrentar a crise atual, não só das cidades no mundo mas também a certa desorientação existente nas metodologias de ensino nas escolas de arquitetura. O fato de basear as soluções numa possível aplicação em Cuba está relacionado com a disponibilidade de mudanças que poderiam se concretizar nos centros de ensino da ilha, e a preocupação sobre as intervenções dos promotores imobiliários e dos investidores estrangeiros que estão construindo conjuntos habitacionais, centros administrativos e hotéis nas praias cubanas, sem um controle sério da qualidade ambiental dos conjuntos urbanísticos e do desenho dos prédios. Em várias ocasiões, Andrés Duany, nas suas visitas à Havana, e Mario Coyula, o mais prestigioso urbanista cubano que está dando palestras em Harvard neste semestre (janeiro-junho 2002), alertaram sobre a deformação das identidades ambientais dos bairros tradicionais onde ficam inseridas as novas edificações, como é o caso de Vedado e Miramar. Além dos erros irreparáveis cometidos em Varadero, uma das praias mais belas das Antilhas, hoje em parte deformada por hotéis inapropriados e ambientalmente agressivos – baseados no luxo kitsch definido como necessário para atrair o turismo de massas pelas grandes empresas internacionais –, trazidos do exterior por empresas européias e latino-americanas.
O seminário se baseou sobre três documentos essenciais:
um importante e aprofundado relatório sobre a situação do ensino da arquitetura nos Estados Unidos – Ernest L. Boyer & Lee D. Mitgang, Building Community. A New Future for Architecture Educaton and Practice, The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, Princeton, New Jersey, 1996 –, mostrando as dificuldades de estabelecer sistemas pedagógicos “abertos”, de múltipla escolha para os alunos e orientados para os problemas reais da comunidade;
um trabalho de interpretação deste estudo elaborado por Stephanie E. Bothwell – “Raising the Profile of Life-Long Health and Design Issues in Architectural Education, Licensure and Practice” –, resumindo os princípios básicos do ensino da arquitetura e do urbanismo para assegurar uma vida melhor nas cidades: a procura da saúde como princípio geral da vida urbana; a segurança e o bem-estar dos habitantes, reduzindo os conflitos sociais e incrementando as oportunidades de trabalho;
a palestra inaugural do encontro, ministrada por Steve Hurtt diretor da escola de arquitetura da Universidade de Maryland, que estabeleceu as limitações da tradição modernista e dos esquemas do ensino “científicos”, propondo a identificação de uma cultura pluralista e diversificada como base de uma visão complexa, histórica e simbólica da cidade, oposta às interpretações tecnocráticas, econômico-financeiras e funcionalistas.
Os professores americanos participantes desenvolveram os diferentes modelos de ensino aplicados nas suas escolas, enfatizando os conteúdos culturais, formais e espaciais da metodologia. Daí a classificação das intervenções em paradigmas: clássico, Beaux-Arts, modernista, Arts and Crafts, europeu, tecnológico, vernáculo, etc. As considerações eram mais voltadas para a experiência histórica e cultural dos ateliês do que um relacionamento mais objetivo com os problemas da comunidade e com as suas necessidades reais, especialmente dos grupos economicamente menos favorecidos. Mas o ponto principal de debate foi sobre quais caminhos procurar para que os estudantes percebam a significação estética, cultural e social da cidade tradicional, com a sua multiplicidade de formas e espaços significativos para a comunidade. Esta compreensão da qualidade da forma urbana seria fundamental para contrapor a formação do profissional com as exigências econômico-financeiras do mercado e dos promotores urbanos, sempre dispostos a comercializar os valores simbólicos da cidade. Neste sentido, a breve intervenção dos participantes latino-americanos foi voltada para evidenciar o relacionamento histórico que as escolas de arquitetura tiveram nos diferentes países do Continente e no Caribe como as iniciativas das Prefeituras e dos grupos comunitários, para atingir objetivos concretos de transformações urbanas em sítios específicos e com qualidade formal e espacial. Ou seja, que o conhecimento da história da cidade, da cultura e das tradições e dos diferentes grupos sociais, foi sempre um componente básico dos trabalhos teóricos e práticos desenvolvidos no ensino do urbanismo nestas últimas décadas.
No último dia de trabalho todos os participantes se organizaram em comissões que elaboraram as diferentes proposta para um hipotético plano de estudo do urbanismo, estabelecendo os princípios conceituais básicos e o peso e distribuição das principais disciplinas. Considerando o caráter heterogêneo dos participantes, as propostas de cada grupo foram bastante diversificadas, e os organizadores do evento vão trabalhar sobre a consolidação das diferentes alternativas para atingir uma proposta única integral. Ao longo deste ano será elaborado um documento final com o currículo, para sua publicação no final do 2002. Vamos aguardar as propostas para verificar a sua aplicabilidade, não só em Cuba mas também no Brasil. A saída de Windsor foi triste e dolorosa porque a nossa capacidade de adaptação aos padrões de vida dos milionários foi muito rápida. Por outro lado, foi mais lento e dilacerante o processo de assimilação de volta à nossa dura realidade cotidiana.
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é atual coordenador do PROURB