Vivemos hoje, possivelmente, num período que poderá ser conhecido como os estertores dos tempos modernos. O mesmo misto de angústia e esperança diante da cidade moderna maquínica – que acabou gerando as grandes linhagens culturais do romantismo e do positivismo dos quais o Movimento Moderno é o filho mais dileto –, que inaugurou essa era, está presente nos dias atuais, cheios de receios, mas também de esperanças. Atravessamos um século de promessas e de barbárie, que se mostrou incapaz de resolver os problemas que herdou e os que criou. Um quadro amedrontador se apresenta diante de nossos olhos: megalópoles medonhas espalhadas pelo globo, meio ambiente mostrando sinais de esgotamento, mobilidade em várias regiões do globo de enormes contingentes de rejeitados pelo sistema econômico hegemônico, concentração exponencial das riquezas, fome, desespero.
No campo específico que nos diz respeito, o pensamento urbanístico foi incapaz até o momento de conceber mecanismos de atuação realmente inovadores para lidar sequer com os graves problemas crônicos, muito menos com os que estão em gestação. Certamente tal perplexidade espelha a sociedade atual, que não tem uma percepção aprofundada da conturbada e mutante realidade em curso, levando os urbanistas atuantes a buscar de empréstimo no conhecimento disponível, produzido ao longo do século 20, o arsenal de conceitos e modalidades de intervenção.
A percepção de que a velocidade dos meios de transporte de massa e das mídias eletrônicas impõe o paroxismo da anulação do espaço foram herdados dos estudos do arquiteto-filósofo francês Paul Virilio levados a curso durante a década de 70, visão de mundo que chegou a ser muito discutida no Brasil nos anos 80. A visão abstrata e estrutural do plano estratégico é tributária das discussões realizadas pelos planejadores urbanos nas décadas de 60 e 70, mesmo que tenham ocorrido diversos deslizamentos conceituais. A infra-estrutura como suporte da vida metropolitana foi tematizada na pauta utópica por Constant e sua Nova Babilônia e por Peter Cook e suas cidades que andam, e na pauta realista pelos arquitetos metabolistas japoneses. O primado dos espaços públicos contínuos é uma retomada da figuração moderna, em especial Le Corbusier, que por sua vez refletia a visão higienista do século anterior. A retomada da noção de lugar aconteceu no contexto italiano do segundo pós-guerra, num ambiente intelectual certamente cheio de nostalgia, mas foi rapidamente assimilada e tratada como uma retomada de “valores tradicionais” – a rua, a praça, o pátio –, ou seja, não exatamente a iconografia arquitetônica mas sim a tipologia urbanística que poderia recuperar qualidades perdidas pelas cidades. Tal fusão de teorias e valores muitas vezes contraditórios busca conciliar a dimensão abstrata dos fluxos controlados pela infra-estrutura e o campo da subjetividade, da vivência cotidiana.
Não cabe aqui pressupor falta de criatividade ou conservadorismo arraigado no pensamento urbanístico atual. O momento histórico no qual vivemos se assemelha àqueles que antecederam grandes transformações sociais da humanidade, onde o conjunto de valores coletivos tornam-se anacrônicos, incapazes de dar conta das novas demandas nas várias instâncias culturais e civilizacionais. Nesse sentido, pensamentos inovadores não são frutos de escolhas ou preferências individuais, mas forjados no entrechoque de visões de mundo que surgem no calor das transformações históricas. O paradigma vigente, pensado como o conjunto de valores mentais e psíquicos que dão sentido ao mundo atual, está cada vez mais corroído por questões emergentes subversivas, das quais as mais importantes são a genética, a informática e a ecologia. Na primeira, a genética, impera ainda o debate ético e as implicações na vida coletiva e na cena urbana ainda fazem parte da ficção científica. Contudo, são cada vez mais evidentes as pressões transformadoras das quais as outras duas estão prenhes.
A informática, de certa forma, coloca-se na série de inovações tecnólogicas e científicas que sempre marcou a era moderna, mas suas características distintas nos colocam diante de situações diferenciadas. Tal como a máquina na passagem do século 19 para o século 20, a nova tecnologia transcende sua dimensão técnica e cada vez mais faz parte do cotidiano, transformando corações e mentes. A mudança da percepção do mundo ocorrida nas últimas duas décadas, onde o simulacro eletrônico substitui o registro mecânico da realidade, coloca-nos diante de novos sonhos e novas exigências. Cada vez mais a relação presencial torna-se desnecessária para a eficácia da produção e circulação de bens materiais. Contudo, inesperadamente, nunca na história da humanidade se presenciou tanta ânsia de contatos humanos coroando afinidades descobertas na virtualidade do mundo digital. Fenômenos de desurbanização – impulsionados pelo trabalho à distância – e a multiplicação de eventos diversos – congressos, simpósios, convenções, etc. – são as duas faces da mesma moeda.
A ecologia, pensamento voltado para a relação equilibrada homem e meio-ambiente, tem sua origem datada pelos historiadores ao remoto século XVI. Contudo, vai ser no século que terminou que ganhará uma significativa e crescente importância na agenda política mundial. Certamente o pesadelo das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki que colocou a humanidade pela primeira vez diante de uma real auto-extinção, e a consciência da finitude de matérias primas e recursos energéticos, forçaram a humanidade a considerar as necessidades da preservação da natureza, da utilização de recursos recicláveis e da busca de fontes de energia não poluentes e renováveis. As instalações humanas no território, das mais aglomeradas às mais esparsas, sofrerão profundas transformações, tendo como pauta a tensão entre a crescente artificialização da vida e as necessidades espirituais e éticas de reencontro e respeito à natureza.
A genética, a ecologia e a informática são as forças propulsoras de um novo paradigma da existência humana que se aproxima, que pressentimos, mas que desconhecemos ainda por completo sua figuração. O papel que caberá à arquitetura e ao urbanismo nesse novo mundo que se avizinha é uma incógnita e sua relevância será consagrada por circunstâncias variadas, muitas delas fora de nosso alcance intelectual ou institucional. Mas seria muito bom que nos preparássemos para o desafio, olhando de frente para o futuro e nos preparando para os desafios que nos aguardam.
* * *
Vitruvius está fazendo dois anos de vida. As imensas dificuldades enfrentadas até aqui só não maiores do que o imenso prazer pelo reconhecimento que temos merecido por parte de colegas espalhados pelo mundo. Nosso agradecimento sincero aos leitores e, em especial, aos colaboradores com os quais temos tido o prazer de compartilhar idéias, projetos e realizações.
[Abilio Guerra e Silvana Romano]
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da FAU PUC-Campinas e editor de Vitruvius