Um Plano urbanístico – tanto em seu traçado, seu aspecto físico, quanto em seu conjunto de ordenanças – ao constituir-se a partir de uma idéia de cidade, funciona como guia, aponta para uma direção segundo a qual a produção da cidade deve seguir. É um modelo ou ordenamento ideal que aporta sempre uma ordem para a construção e transformação urbanas e que, finalmente, expressa um acordo consensual para a ação (1).
Os componentes da cidade estão representados no plano e constituem classes de espaços formalmente caracterizados: a rua, a praça, o parque, os espaços privados e os espaços públicos. As tipologias edilícias – que sempre estão implícitas em um traçado – são fundamentais na conformação desses componentes. Estão presentes na origem da cidade porque levam consigo uma informação cultural de como construir, como produzir o espaço habitável. Dessa forma, o plano condiciona as tipologias futuras, dando maior ou menor grau de liberdade para seu desenvolvimento.
As tipologias edilícias são fundamentais também na divisão territorial ou no parcelamento do solo: nas antigas cidades a repartição cadastral está definitivamente ligada à tipologia dos edifícios de cada período – casa gótica-mercantil, casa pátio; na cidade jardim, pensada a partir dos novos conceitos de cidade surgidos no final do século XIX, o parcelamento é gerado a partir da idéia de edificação isolada no lote; as tipologias arquitetônicas idealizadas pelos arquitetos modernos levam ao anseio de uma cidade sem divisão do solo, uma cidade de superquadras.
Pelotas – cidade localizada ao sul do Rio Grande do Sul – divide-se em duas zonas básicas. A primeira seria a zona fundacional, do século XIX, com quatro “loteamentos” sucessivos configurando um traçado em tabuleiro ou retícula (2). Os quarteirões são divididos em lotes estreitos e profundos cuja tipologia edilícia geradora é a casa também estreita e profunda localizada na divisa frontal com raízes gótico-medievais européias (3). A segunda zona seria a conformada pelas áreas de expansão desenhadas na periferia do tabuleiro desde o começo do século XX, a partir de loteamentos com traçados menos rígidos onde a idéia de cidade-jardim com casas isoladas é a referência constante.
A retícula da zona de fundação se mantém intacta até hoje. Mas o plano é sempre um tempo da cidade como nos lembra insistentemente Aldo Rossi em sua mais famosa obra escrita. Apesar da contundência desse traçado ortogonal inicial, variações de soluções espaciais foram possíveis, permitidas e incentivadas. Contrariando de alguma forma a direção apontada pelo plano original, o Plano Diretor de 1968 – ratificado nesse sentido depois pelo 2o Plano Diretor, de 1981 – estabelece, em parte, os mesmos preceitos da cidade-jardim – e da Carta de Atenas (4) – já ensaiados nos novos loteamentos das áreas de expansão, para essa zona mais antiga. Dá-se, então, dentro do tabuleiro duas situações diferenciadas.
Na área adjacente ao miolo central, mesmo sem propor alterações no traçado existente nem nas divisões dos quarteirões, começa a ser aplicado um código que altera a estrutura do espaço urbano. Através da aplicação de uma série de normas postulativas (5) como a obrigatoriedade de recuos de ajardinamento que separam a casa da rua e incentivo de recuos laterais, a tipologia edilícia moderna é potencializada. A tradicional interdependência entre arquitetura e morfologia urbana tende a desaparecer e a presença do edifício isolado que antes era uma exceção vai-se tornando, senão norma, ao menos muito recorrente. Assim, nessas áreas, a busca de um espaço “mais aberto”, moderno, de densidades baixas procedentes da cidade-jardim, tem como conseqüência uma perda de parte da identidade do espaço público a partir de sua perda de unidade.
Por outro lado, no centro propriamente dito – delimitado pelos dois Planos como Zona de Comércio Central –, as mudanças, quando ocorrem, se dão de maneira diferente da área adjacente. A arquitetura moderna, apesar da nova idéia de cidade que levava intrínseca, teve uma troca mais qualitativa com a cidade tradicional nas situações em que não houve uma ruptura radical, onde os parâmetros básicos – principalmente a relação edifício/lote – incluídos no traçado original foram mantidos.
Nesse setor central, não havendo exigência de recuos, ocorre apenas um incremento da altura com edifícios essencialmente multifamiliares e comerciais. Há uma alteração do espaço urbano no que diz respeito ao volume de caixa de rua, mas, com as edificações construídas sobre os limites do lote, a idéia de rua como um espaço fechado e formalmente definido permanece.
Nesse caso, o tratamento dos acessos e do pavimento térreo – essencialmente nos edifícios mais nobres – em geral recebe atenção especial por parte dos “arquitetos modernos”. Já que o lote exíguo não permite a real concretização do objeto isento, dá-se certa modificação do espaço fechado da rua-corredor através de reentrâncias e vazios ao nível da calçada e rupturas das esquinas, possibilitando uma atitude moderna que não descaracteriza o “espaço contido” característico dessa área. Tais gestos modernos, nesses edifícios localizados no centro comercial e histórico, enriquecem o espaço urbano tradicional ampliando as visuais e criando, por exemplo, perspectivas mais abertas em relação aos principais monumentos da cidade.
Nas cidades em geral, o espaço aberto e o espaço contido deveriam sustentar-se mutuamente – embora sejam opostos, o espaço aberto é um conceito necessário para a leitura do espaço contido. Para um – caracterizado por edificações isoladas –, o contínuo é o espaço e o descontínuo o construído, para o outro – com construções implantadas “em fita” – o contínuo é o construído e o descontínuo o espaço. No espaço aberto se tem a experiência do espaço como âmbito continuo e ininterrupto, edifícios são figuras, o espaço que os rodeia fundo. No espaço contido ocorre a experiência do espaço como interioridade, com limites precisos, o espaço é a figura (6).
A aplicação dos ideais modernos à cidade tende a eliminar o equilíbrio entre esses dois tipos de espaços. A neutralidade própria de um estilo de formas essencialmente abstratas somada ao predomínio quase absoluto do espaço aberto conformado pelo conjunto de edificações isoladas, tem levado a conseqüências nefastas no que diz respeito à qualidade do espaço urbano.
Em Pelotas, em algumas áreas, o tecido urbano totalmente consolidado, levou a transformações tipológicas lentas, sem uma ruptura brusca e geral e sem o desaparecimento total dos elementos estruturadores espaciais originais – cuja ausência é um dos principais problemas no espaço aberto. A contundência do traçado original não permitiu uma adoção generalizada de novas tipologias e o parcelamento tradicional com seu correspondente e natural tipo arquitetônico ainda hoje atua como contraponto de uma paisagem urbana caracterizada pela tendência de “abertura” do espaço.
Porém nos setores da zona em estudo mais afastados do centro, a exigência de recuos e a fusão de lotes vão alterando a “imagem” do quarteirão . O grau de indefinição formal e psicológica dos espaços públicos é crescente. Por outro lado, os recuos – que na concepção moderna deveriam se fundir com o espaço da rua conformando um espaço unitário – transformam-se em espaços residuais, não há uso efetivo, social. Servem somente como elemento de privacidade, afastando o habitante da rua e a rua do habitante – afastamento agravado ultimamente pela proliferação de grades. Se o espaço urbano é o espaço coletivo e das relações humanas por excelência, o espaço da vida da cidade, a mudança do caráter formal desse “lugar” necessariamente influenciará nos comportamentos ali ocorridos.
Em um momento em que se está repensando o planejamento em muitas cidades, a situação de Pelotas nos serve de referência para reflexão sobre temas fundamentais no devir das urbes contemporâneas: a conciliação de termos aparentemente antagônicos como desenvolvimento e conservação, o aporte de uma arquitetura contemporânea em estruturas urbanas tradicionais e, essencialmente, a produção de um espaço a partir do qual o homem possa efetivamente habitar sua cidade.
É evidente que a “forma” do espaço não determina as relações sociais, mas com certeza influi na qualidade das interações humanas (7). Como demonstram depoimentos da época, em Pelotas em um primeiro momento houve uma resistência da população em ter suas casas recuadas: “ninguém queria se encerrar” (8), deixando evidente esse importante valor sócio-cultural ligado ao contato físico com a rua, com o lugar do coletivo.
Porém, passado algum tempo, as grandes casas implantadas em meio a extensos terrenos, popularizadas principalmente a partir do subúrbio americano, transformaram-se na expressão de status e riqueza baseada na individualidade e na separação em relação aos vizinhos – uma maior proximidade entre as casas representa um menor poder aquisitivo – e, por isso, ainda hoje, sonho de bem-viver da maioria da população. A atenuação dos limites entre campo e cidade e a subversão de conceitos como cultura e natureza que estabelece uma relação ambígua dentro do território urbano entre o isolamento do campo e as relações sociais estreitas da cidade, próprias da mentalidade moderna, aqui se fazem claramente representadas.
Essa mudança da maneira de “estar” no mundo urbano reflete-se no processo das relações sociais. Na tipologia tradicional, está a rua, a casa e o quintal. O quintal é o “fora” privado, o lugar aberto, mas de intimidade e invisibilidade, extensão da casa. É também o lugar da natureza – natureza aculturada, mas manifesta. A rua – lugar aberto –, como domínio oposto ao da casa é o lugar do público, do social, do visível. O espaço do habitante se desenvolve de maneira gradativa – desde o público/visível/rua, o semipúblico/mais ou menos visível/sala, ao privado/invisível/outras dependências e quintal (9).
As tipologias modernas acabam com essa gradação e evidenciam os dois ideais que se mostram contraditórios nessa arquitetura: primeiro, a importância de um espaço para cada função e da privacidade como condição dos lugares de permanência – representada pelo afastamento da calçada e das divisas do lote; e segundo, a continuidade espacial como imagem da modernidade por meio da transparência ou da unificação de todos os ambientes que se estendem sobre o espaço exterior.
Teoricamente o recuo faria o papel unificador e de intermediário entre público e privado. Mas na prática não é o que acontece. É território neutro, lugar da natureza que agora se exterioriza, vazio de relações humanas. Temos a rua, o vazio, lugar do natural e a casa, isolada, privada, “livre dos olhares”. Existe uma lacuna e por isso uma indefinição entre os limites do público e do privado, do coletivo e do individual. O que se vê na maioria dos casos são ruas vazias e inseguras, sem qualquer controle social e cujo usuário mais efetivo é o “segurança” ou o “vigia”.
Hoje, como continuidade do processo crítico a respeito dos parâmetros da cidade moderna – surgido nos anos 60 – novos métodos são propostos para avaliar as relações entre tipologia e morfologia urbana a fim de resgatar alguns valores da cidade tradicional que de alguma maneira transformem a cidade em um lugar verdadeiramente habitável e habitado. Nesse processo, a reflexão sobre a cidade existente, viva, é fundamental. Não somente nos sítios históricos, mas naqueles pedaços de cidade que se vão transformando sobre antigos traçados cujas potencialidades precisam ser permanentemente desvelados e, por isso, constantemente interpretadas e traduzidas.
“Um tradutor que não melhora o texto ou que o destrói pode até se converter em um excelente escritor, que invente e crie novos textos, mas como tradutor terá desaparecido... Uma tradução pode ser, como tradução, cem por cento criativa; não é uma tarefa inferior à do criador do texto, é simplesmente uma tarefa diferente” (10).
notas
1
O presente artigo é fruto de pesquisa desenvolvida com o auxílio da FAPERGS - Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul. A segunda parte deste artigo pode ser vista em: GONSALES, Célia Helena Castro. “Cidade moderna sobre cidade tradicional: movimento e expansão”, Arquitextos, Texto Especial n. 292. São Paulo, Portal Vitruvius, mar. 2005 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp292.asp>.
2
Ver importante reflexão sobre esse tema em DIEZ, Fernando E. Buenos Aires y algunas constantes en las transformaciones urbanas. Cópia s/d.
3
Modelo idealizado pelos espanhóis no século XVI para traçar as novas cidades da América Central e Meridional e largamente aplicado posteriormente na zona fronteiriça do Rio Grande do Sul.
4
As primeiras manifestações completas desse tipo são produzidas na época gótica: casa unifamiliar, em geral de um só vão, implantada em fileira, sobre lote estreito e profundo, com pátio posterior. O essencial desse tipo é sua relação com a rua a partir do fato de que a rua é pensada como lugar de intercâmbio e de trabalho. V. MARTÍ ARIS, Carlos.Las variaciones de la identidad: ensayo sobre el tipo en arquitectura. Barcelona: Colegio de Arquitectos, 1993, p. 20.
5
Claro que a aplicação dos conceitos do urbanismo moderno estavam muito limitados pelo traçado e divisão territorial dessa parte da cidade. Assim, embora fosse obrigatório o recuo de ajardinamento – com exceção do centro comercial –, os recuos laterais eram optativos – no 2o Plano, eram optativos somente para residências unifamiliares.
6
As normas postulativas, ao contrário das restritivas onde se deseja evitar algo, são regulamentos para conseguir algo. Nasce da idéia de gerar uma forma, um modelo de edifício ou espaço urbano.
7
DIEZ, Fernando E. Op. Cit., capítulo “Morfologia Urbana”.
8
O abandono dos espaços semipúblicos dos Conjuntos habitacionais de décadas passadas é evidencia desse fato. Os espaços não apresentam qualidade arquitetônica suficiente para despertar o sentimento de pertencimento.
9
Ver depoimentos em MOURA, Rosa Maria Garcia Rolim. Modernidade pelotense, a cidade e a arquitetura possível: 1940-1960. Dissertação de Mestrado – Curso de Pós-graduação em História do Brasil, Porto Alegre, 1998. p. 92.
10
SANTOS, Carlos Nelson F. dos (coord.); VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; MOLLICA, Orlando. Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto, 1985.MUNTAÑOLA, Josep Thornberg (ed.); POMÉS, Josep Lafont; SOLER, Alfred Linares, DURÀ, Beth Tayà. L’architectura com a patrimoni cultural a Catalunya i a Europa. Estratègies d’innovació projetual. Barcelona: Edicions UPC, 1995. p. 53.
sobre autor
Célia Helena Castro Gonsales é arquiteta, Doutora pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, com a tese "Racionalidade e contingência na arquitetura de Rino Levi". Atualmente professora da Universidade Católica de Pelotas e Professora convidada do Propar – Programa de pesquisa e pos-graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul