Este ano de 2002 será prolífico em comemorações e em homenagens aos centenários de diversos brasileiros ilustres que, durante o século XX, contribuíram de maneira fundamental em diversos campos da cultura brasileira. Na política; o Presidente Juscelino Kubitschek, na história e na crítica; Sérgio Buarque de Holanda, na literatura; o editor José Olympio e o poeta Carlos Drummond de Andrade – que será oficialmente homenageado ao longo de todo o ano em decorrência de uma importante iniciativa do Governo Federal. Na área de arquitetura e urbanismo as celebrações ocorrem em decorrência dos cem anos de nascimento do Professor Lúcio Costa.
A despeito da importância de todos os citados, é fundamental relembrarmos o grande legado que nos deixou Lúcio Costa, falecido recentemente – aos 96 anos – em junho de 1998. Homem de cultura vasta e de conhecimento enciclopédico nasceu, por conta das viagens do pai, na França em 1902. Fixou-se definitivamente no Brasil em 1916 e em 1924, recém-formado arquiteto pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), já possuía alguma experiência em projetos de arquitetura e urbanismo, adquirida em virtude dos trabalhos desenvolvidos sob o comando de Archimedes Memória, o arquiteto responsável por alguns dos mais significativos edifícios construídos para a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil em 1922.
Naquele tempo, como qualquer outro jovem egresso da ENBA, Costa ainda era, por formação, um profissional muito comprometido com a arquitetura acadêmica de inspiração francesa. Todavia, como um intelectual sintonizado com o espírito de seu tempo, não tardou a sentir-se incomodado, em pleno século XX, em seguir os cânones daquela arquitetura oitocentista.
Nesse contexto, após travar contato com José Mariano Filho, um dos professores da ENBA, defensor ferrenho da arquitetura colonial brasileira e espécie de “avô” – sendo Costa o próprio “pai” – da idéia de criação de uma nova arquitetura que representasse e/ou afirmasse a nossa nacionalidade, Lúcio Costa começa a procurar novos caminhos para a arquitetura brasileira.
Os anos 20, tanto na Europa quanto no Brasil, foram palco de grandes rupturas conceituais e teóricas que, no campo das artes e da arquitetura, revolucionaram a cultura ocidental. Destarte, ocorre o início da guinada estética de Costa rumo ao modernismo. Assim, observa atentamente algumas novidades como as idéias pré-modernas de inspiração Art Déco que o urbanista Alfred Agache quis implantar, em 1927, na mesma esplanada do Castelo na qual o próprio Costa, outrora, também ajudara a projetar o Pavilhão das Grandes Indústrias.
Com efeito, não há como não mencionar que em 1929, – também o ano de inauguração do Edifício “A Noite”, o nosso primeiro arranha-céu, na Praça Mauá – chega ao Rio de Janeiro o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, cuja importância Costa ainda desprezava na ocasião. Entrementes, dois acontecimentos também foram decisivos nestes anos de formação do arquiteto: a viagem de estudos que fez às cidades históricas de Minas Gerais em 1927 e, posteriormente, a tomada de conhecimento da casa modernista de Warchavchik.
Ao fim e ao cabo da década de 20 , embora ainda muito jovem, pode-se arriscar que Lúcio Costa já estava intelectualmente preparado para realizar as grandes e originais contribuições que deixou para a arquitetura, para o urbanismo e para a cultura no Brasil ao longo de todo o século XX. Logo em 1930 assume a direção da ENBA, com o intuito de empreender uma mudança diametral nos rumos acadêmicos da Escola. Estava sacramentado, portanto, o rompimento definitivo de Costa com a arquitetura de orientação acadêmica. Após a sua curta, porém profícua, passagem pela direção da ENBA, Costa tornou-se sócio de Warchavchik com quem idealizou os seus primeiros projetos modernos, entre os quais o da Vila Operária da Gamboa, ainda de pé mas, como de costume por aqui, em péssimo estado de conservação.
Daí por diante a sua trajetória como intelectual e arquiteto é, certamente, mais conhecida, embora também de grande importância para nortear os rumos do Brasil Moderno, em diversos aspectos da nossa cultura.
Em 1935, o velho professor Archimedes Memória vence o concurso de idéias para a nova sede do então Ministério da Educação e Saúde Pública, mas o Ministro Capanema discorda do “estilo marajoara” do edifício idealizado por Memória e encomenda a Lúcio Costa a realização de um novo projeto de inspiração moderna. O resultado final do trabalho e as conversas de bastidores dos jovens arquitetos – inclusive o auxílio luxuoso e oficial de Le Corbusier – durante a concepção do edifício, são fatos já amplamente divulgados em várias publicações.
Em 1937, Lúcio Costa torna-se Diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos do recém-criado SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional – e a partir de então começa a se dedicar com mais rigor a uma série de definições e estudos sistemáticos a respeito do patrimônio arquitetônico e urbano brasileiro. Também tratou de estudar e de conceber uma série de normativas para intervenções em centros urbanos históricos.
A partir do final dos anos 40, sua trajetória de intelectual e de professor comprometido com o desenvolvimento autônomo do Brasil foi também muito marcada pelas circunstâncias políticas pelas quais passava o país. E Lúcio Costa não se furtou a participar – ainda que de última hora e com um esboço muito incipiente – do concurso para a construção da nova capital do país, conforme o desejo de Juscelino Kubitschek. E das teorias defendidas por Costa e da imaginação sem limites de Oscar Niemeyer, nasceu Brasília; uma espécie de coroamento prático de toda esta trajetória árdua de estudos incansáveis sobre a nossa arquitetura e sobre as nossas cidades.
Por fim cabe mencionar que, a despeito das críticas que – aos olhos de hoje – possamos fazer à sua produção arquitetônica e urbana e às suas escolhas estéticas, o que não podemos negar e nem esquecer é a fundamental importância de Lúcio Costa para a cultura brasileira ao longo de um século que ele – por muito pouco tempo – não viveu integralmente. E aos que o acusavam de ter projetado uma cidade que não deu certo, respondia dizendo: “não foi Brasília que não deu certo, foi a cidade brasileira e o Brasil, como um todo, que não evoluiu como eu pensava e como eu queria”.
notas
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Publicado originalmente com o título “Relembrando o professor Lúcio Costa. 27/02/2002 – Cem anos de Lúcio Costa” no Jornal Folha Dirigida (Caderno EDUCAÇÃO), Edição nº 1001, fev 2002, e em www.vivercidades.org.br.
sobre autor
Antônio Agenor de Melo Barbosa é arquiteto, mestre em Urbanismo pela PROURB-FAU-UFRJ e professor de Urbanismo da FAU-UFRJ e do Centro Universitário Plínio Leite – UNIPLI