1. Origens do Modernismo em Belém
Em Belém, com a criação do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Pará em 1964, a produção arquitetônica passou a aprofundar os esforços dos primeiros projetistas, engenheiros civis e mestres de obras, que buscavam inspiração nas formas construtivas importadas dos Estados Unidos e da Europa para introduzir o Modernismo em nossa Arquitetura. Os primeiros arquitetos formados no Pará eram engenheiros civis que ocupavam funções públicas de destaque, ao mesmo tempo em que se dedicavam às atividades liberais, nos melhores escritórios de projeto e construção da cidade. Havia na época a preocupação em trazer para Belém as novidades da arquitetura moderna que se divulgava no Sudeste do Brasil, principalmente nas cidades do Rio e São Paulo, onde os exemplares pioneiros da arquitetura moderna serviam de vitrine: obras de arquitetos como Flávio de Carvalho, Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Reidy.
O modelo modernista era, para nós, uma fachada, um símbolo de status, de pertencermos ao mesmo país em desenvolvimento, apesar das marcantes diferenças.
A dinamização do processo construtivo na cidade devido à ligação inter-regional e ao crescimento populacional de Belém, (que na década de 70 já constava na lista das áreas metropolitanas brasileiras) tornaram possível a utilização dos modelos de padronização e racionalização modernistas na construção de prédios institucionais, comerciais e residenciais, nos quais os arquitetos inseriam alguns detalhes construtivos que se adequassem às nossas características ambientais.
A preocupação em adequar a arquitetura ao lugar também esteve presente no pensamento dos arquitetos que vieram do Rio Grande do Sul para integrar o corpo docente do Curso de Arquitetura do Pará, em função do contraste climático proporcionado pela Região Norte. Esta adaptação ao ambiente “natural”, presente nas residências que construíram, aponta a concepção que tinham em relação à arquitetura: adaptar o edifício à natureza, mais do que ao homem.
Na concepção do Arquiteto Paulo Chaves Fernandes, formando pela Escola de Arquitetura no início da década de 70, sua formação mais tecnológica voltada para o projeto de arquitetura foi fortemente influenciada pela Bauhaus, Escola de Arquitetura e de Desenho Industrial alemã do início do século XX, de concepção pragmática e funcionalista.
Enquadra sua formação de 'arquiteto de prancheta' com as tendências racionalistas de projetar, desvinculadas de preocupações estéticas ou históricas.
Barcessat, em trabalho sobre a Arquitetura de Belém de 40 a 80 do século XX, formula uma analogia lingüística entre a formação de uma palavra e a “formação de nossa arquitetura moderna (com suas particularidades), sujeita à alteração de sentido pela influência dos estilos precedentes” (3). Os estilos precedentes que interferiram na arquitetura belemense - o Art Nouveau, o Raio que o parta, o Art Déco - seriam os prefixos da Arquitetura Moderna local, tendo esta como radical os princípios modernistas assimilados ao contexto de Belém, sendo as terminações definidas pela vivência pessoal de seu produtor, que define a especificidade de sua obra. Assim, a Arquitetura do século XX até a década de 80 fez-se pela fusão de suas origens, dos princípios modernistas externos e do próprio contexto específico de Belém e de seus projetistas.
Os estilos da Arquitetura belemense seguiam, nas primeiras décadas do século XX, as tendências evidenciadas nas demais metrópoles brasileiras - estas agitadas pela industrialização tardia - como o Art Nouveau e o Art Decò, que foram empregados nos primeiros edifícios residenciais e comerciais verticalizados e nas vilas operárias.
O Art Nouveau serviu às composições mais requintadas, prestando-se às mais criativas combinações de motivos e curvas, utilizados em balcões e portões em ferro e ornatos em massa. Nosso melhor exemplo é a Loja Paris N’América, com suas escadarias curvas em ferro desenhado que se harmoniza com a fachada eclética (Figura 1). O Art Decò surgiu como modelo fugaz, incorporado pelas burguesias, que se presta aos edifícios funcionais das décadas de 40 e 50, como o prédio dos Correios e Telégrafos, na Avenida Presidente Vargas. Foi o estilo que melhor se adaptou às construções espontâneas, pela geometria dos motivos e facilidade construtiva. Nota-se que o Art Decò representou uma evolução das formas no sentido da racionalidade modernista, e prestou-se com sucesso às construções padronizadas como as vilas.
Quanto às tipologias residenciais, o chalé, modelo literalmente importado (eram escolhidos inicialmente em catálogos de firmas estrangeiras), reformulou o modo de morar da população, que vivia até então em casas de planta colonial de origem portuguesa (Figura 2). O partido arquitetônico do chalé veio introduzir uma série de compartimentos na residência como a sala de música, de jantar, de jogos, além de separar os dormitórios no piso superior. A liberação dos limites do lote, volumetria arrojada e adaptabilidade climática contribuíram às tendências modernas futuras. Ao conotar o status de modernidade, foi amplamente difundido nas edificações das nossas elites e classes médias, ansiosas por atingir os novos padrões das metrópoles européias.
Posteriormente, na década de 20, o chalé foi adaptado e surgiu o bangalô que, já projetado por construtores locais, tinha dimensões mais reduzidas, mas permanecia isolado no lote, com varandas no térreo e/ou no pavimento superior (Figura 3). Esse modelo serviu de base às construções modernas de Belém, sendo aproveitado até hoje com algumas variações. A partir da década de 60, foram bastante utilizadas, em especial nos setores da cidade que contavam com amplos terrenos, as construções térreas com grandes platibandas e garagem coberta, copiadas das revistas americanas e italianas da época.
As tipologias tradicionais de moradia foram se modificando, os quartos passaram a ter a exigência de banheiros internos, requisitos básicos à privacidade moderna, modelo advindo dos norte-americanos. O modelo da casa térrea com jardim frontal foi bastante aplicado no Bairro do Marco, onde os terrenos eram mais largos e a classe-média formada por empresários e profissionais liberais adotou este como símbolo de ascensão social.
2. O Modernismo dos Engenheiros
O crescimento da cidade requisitou cada vez mais o trabalho dos projetistas; como eram poucos os arquitetos, formados fora do estado até 66, a demanda era suprida por engenheiros civis, mestres de obras e desenhistas.
Nas décadas de 30 a 50, a Arquitetura de Belém convivia com o Ecletismo Historicista tardio, Neocolonial, bem como as primeiras tentativas de Arquitetura racionalizada.
Aos engenheiros como Camillo Porto de Oliveira e Judah Levy deve-se a introdução das novas tecnologias construtivas: uso do concreto armado, panos de vidro, telhas de cimento-amianto, tijolos vazados, escadas e rampas (Figuras 4 e 5). A formação dos primeiros arquitetos paraenses seguiu a linha mais prática que teórica, sendo a primeira turma destinada à adaptação profissional dos engenheiros projetistas, concluída em 1966. A influência trazida pelos arquitetos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que vieram compor o Corpo Docente do Curso de Arquitetura era a do modernismo carioca, bem como de Frank Lloyd Wright e de Richard Neutra.
Na tentativa de firmar uma identidade regional, os engenheiros das décadas de 30 a 50 tiravam modelos de Revistas como “Sugestões de Arquitetura” e dos Suplementos de Arquitetura do Jornal do Brasil e da Folha de São Paulo, adaptando-os ao gosto da clientela local, às condições climáticas e aos materiais disponíveis.
O engenheiro Judah Levy foi pioneiro na construção de edifícios com mais de 10 andares. Durante estada no Rio de Janeiro entre 42 e 45 pode conhecer as obras dos Arquitetos modernos, trazendo de lá experiência em construção de arranha-céus, criando sua empresa de incorporação imobiliária. Os edifícios Piedade (1947) e Renascença (1948), projetados por Levy, possuíam 10 andares com elevador, possuíam quarto de casal com lavabo, inédito na época.
Já na década de 70, Belém expandiu-se metropolitanamente, mas a Arquitetura Moderna, essencialmente voltada às classes que tinham o poder de escolha, destacou-se na Primeira Légua Patrimonial (4). Percebe-se que, embora se encontrem influências modernistas muito fortes nas obras de alguns engenheiros-arquitetos como Camillo Porto de Oliveira, Milton Monte, Alcyr Meira, a maioria procurou adaptar aos padrões locais as “novidades” modernas. A tipologia do bangalô foi largamente utilizada, algumas vezes com platibanda encobrindo o telhado (o que não era novidade, existia desde a arquitetura do século XIX), jardins utilizando plantas regionais, azulejos, vidros. As esquadrias eram em sua maioria em madeira, por causa dos costumes locais, da adaptação climática e das dificuldades de importação de esquadrias metálicas produzidas em série no Sudeste do país.
As formas mais ousadas podem ser vistas nos clubes desportivos, escolas e edifícios, além de algumas residências de alto padrão. Os que podiam construir em amplos terrenos optavam pela casa isolada no lote, em oposição aos apartamentos que eram considerados por alguns como “favelas em altura”. Entre 50 e 70, os edifícios dividiam-se em comerciais e mistos construídos no bairro do Comércio, tais como os edifícios Palácio do Rádio e Importadora, com térreo e 1º pavimento comercial e apartamentos residenciais ou de serviços (Figura 6). Nos bairros de Nazaré e Batista Campos foram construídos edifícios com amplos apartamentos cujos interiores lembram casas, os quais, apesar de utilizarem tecnologias modernas, apresentam a decoração das entradas e áreas comuns em Art Nouveau ou Déco. (5)
Na década de 80, porém, a construção residencial expandiu-se, com a implantação de edifícios em vários bairros e a dinamização de novas áreas comerciais. A busca de arquitetos locais por conceber a Arquitetura adaptada à realidade climática e sócio-cultural da população de Belém propiciou edifícios com sacadas, revestimento em lajotas cerâmicas, e a substituição da telha de fibrocimento por telha de barro em grande escala.
3. O modernismo fachadista nas décadas de 50 e 60
No Bairro do Reduto,caracterizado pela função industrial no início do século XX, foi comum a construção de Vilas Operárias em estilo Decò, nas décadas de 40 a 50. As casas rés-ao-chão empregavam elementos simplificados, sendo construídas por comerciantes que delas auferiam rendas de aluguel. Com paredes geminadas, seguindo o padrão porta e janela, ou porta e duas janelas do colonial brasileiro, ocupavam o terreno até o alinhamento (Figura 7).
Durante o século XIX, o gosto Neoclássico se expressou na Arquitetura de Belém através do revestimento das fachadas em azulejos portugueses, ingleses e holandeses. Foram construídas vilas de casas com platibandas encobrindo os telhados e paredes adornadas com padrões cerâmicos decorativos (Figura 8). O emprego dos azulejos foi rejeitado nas primeiras décadas do século XX, sendo considerado ultrapassado, e as reformas modernizantes os aboliram, como podemos observar em exemplares do bairro mais antigo de Belém, a Cidade Velha (6). O padrão escolhido entre as décadas de 40 e 50 foi o Decò, com linhas retas e decoração discreta.
O modismo modernista em Belém manifestou-se através de elementos decorativos como: mosaicos em forma de raios coloridos preenchendo as empenas; molduras de janelas com laterais inclinadas; pestanas protegendo portas e janelas; telhado inclinado para dentro do terreno, com parte do telhado aparente, compondo um pequeno beiral em ângulo obtuso com a parede da fachada (telhado mariposa); painéis em combongós cimentados rústicos ou esmaltados em cores fortes; colunas finas arranjadas em “V” como apoio de marquises e coberturas (Figura 9).
O uso do telhado em cimento-amianto só ocorreu em Belém a partir da década de 60, porém a maioria das construções residenciais até o final dessa década empregava predominantemente as telhas de barro. Com o intuito de não jogar as águas do telhado para a rua, foi empregada uma forma de cobertura com a calha no sentido transversal, em outro posicionamento, não mais atrás das platibandas, visto que a largura dos terrenos impedia a solução com calhas nas laterais. Como a maioria dos lotes do centro da cidade é estreita (em média 6 metros), não havia outra alternativa de cobertura que a de duas águas no sentido longitudinal, surgindo uma nova versão do telhado mariposa, invisível externamente, e que resultava na empena exageradamente alta em função da inclinação necessária à telha de barro. Da decoração dessa empena surgiu a linguagem jocosamente apelidada de “Raio que o parta” (7), que tinha como característica a decoração em mosaicos de azulejos em formas inclinadas, semelhantes a raios (Figura 10). Os desenhos eram elaborados por engenheiros ou desenhistas, aplicando composições de formas geométricas que lembram as experimentações estéticas de grupos de artistas como os neoconcretistas cariocas.
A atuação dos engenheiros construtores passou a ser vista com descrédito pelos arquitetos que atuaram como professores na implantação do Curso de Arquitetura em Belém, classificados como “engenheiros que faziam uma espécie de arquitetura que nós lá do Sul chamávamos ‘Arquitetura do Raio que o parta’, porque eles usavam um símbolo de raios, acho que umas casas ainda têm.” (8). Essa manifestação era atribuída a um modismo e à falta de informação dos engenheiros quanto ao contexto geral da Arquitetura.
As adaptações formais também ocorriam em casas de estilo Eclético, cujos proprietários queriam “modernizar” substituindo a decoração original das fachadas por uma adaptação muitas vezes grosseira aos elementos estéticos associados ao modernismo (Figura 11). Nos bairros centrais de Belém, como o Reduto e o Umarizal, é comum encontrar-se vilas de casas construídas com elementos de linguagem modernista, porém sem empregar as técnicas construtivas e os materiais novos, como as telhas industrializadas de cimento-amianto e a tecnologia de estrutura em concreto independente dos fechamentos (Figura 12).
Na década de 60, as vilas construídas no Umarizal possuem pátios fronteiros e pequenos telhados de barro protegendo portas e janelas. Os novos bangalôs também possuem um pátio no térreo e uma varanda no 1º pavimento, que ocupa toda a fachada. Surgem em seguida pequenos prédios de 3 ou 4 pavimentos, com amplas varandas fronteiras, que tiram partido de paredes inclinadas, molduras revestidas de azulejos, tubos de ferro cilíndricos que compõem detalhes compositivos com pequenas prateleiras. Painéis coloridos com aberturas circulares, guarda-corpos em alvenaria compondo formas geométricas são acessórios na composição da fachada modernista.
Os modelos construtivos formadores da concepção moderna na Arquitetura tornam-se tipos ornamentais que viriam a dotar de modernidade as residências das décadas de 50 a 60 em Belém, segundo o gosto de engenheiros, desenhistas e dos proprietários.
4. Vestígios modernistas
A leitura do Modernismo em suas versões regionais precisa do estudo das pequenas assimilações vernaculares das linguagens formais, como modo de aquisição de prestígio social e demonstração de progresso econômico da classe média urbana. Se entendidos não como superficialidade ou vulgaridade (kitsch), mas como manifestação autêntica de um interesse em assimilar padrões exógenos adaptando-os ao gosto local, podemos ver nessas intervenções por vezes desajeitadas um caminho que levará ao regionalismo da década de 80, em que o telhado de barro entra em cena, não mais como uma ponta de beiral, mas em toda a sua expressão plástica, e as varandas assumem papel fundamental na construção dos bangalôs e dos edifícios residenciais, revestidos por lajotas cerâmicas e buscando criar painéis coloridos e que repercutam no arrefecimento térmico das paredes (Figura 13).
Em “Complexidade e Contradição em Arquitetura”, escrito na década de 60, Robert Venturi ressalta a impossibilidade de reduzir o fenômeno arquitetônico a um só sistema lógico e estético. A experiência da paisagem urbana formada caoticamente por superposição de elementos carregados de simbolismo e a comprovação de que os ideais de simplicidade e ordem são diariamente contrariados pelos cidadãos o levou a pensar a Arquitetura como pluralidade de funções e ambigüidade de significados.
Ressaltando a necessidade do indivíduo de manifestar sua personalidade através da construção do habitat, Venturi se inspira na Pop Art para valorizar as manifestações da Arquitetura não acadêmica como soluções plausíveis para as cidades contemporâneas. As formas, cores e padrões decorativos que permeiam o imaginário popular, apreendidas através do processo de difusão das idéias eruditas, são mesclados e utilizados com o objetivo de significar status social, identidade cultural, modernidade, progresso econômico.
Entender os “desvios” modernistas pode ser um caminho para pensar a produção arquitetônica contemporânea, destacando a experiência do usuário como fator necessário à concepção projetual, incorporando conceitos e elementos sígnicos pertencentes ao repertório não-erudito.
notas
1
Trabalho publicado originalmente nos Anais do II Seminário DOCOMOMO NO/NE, Salvador, junho/2008.
2
Entrevista concedida à Cybelle Miranda pelo arquiteto Paulo Chaves Fernandes em 05 de março de 2004.
3
BARCESSAT, Márcia et ali. Arquitetura de Belém de 40 a 80.1993.90 f.Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Pará, Belém,1993. p.57-58.
4
Primeira Légua Patrimonial refere-se à ocupação de Belém desde o Forte do Presépio até o limite do Bairro do Marco, onde existe um marco de pedra situado na Avenida Almirante Barroso, às proximidades do Bosque Rodrigues Alves.
5
DERENJI, Jussara. Modernismo na Amazônia - Arquitetura em Belém do Pará entre 1940 e 1970. Revista Projeto. São Paulo, v1, n. 192, dez. 1995.
6
Ver MIRANDA, Cybelle Salvador. Cidade Velha e Feliz Lusitânia: cenários do Patrimônio Cultural em Belém. 262 f. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Pará. Belém, 2006.
7
O termo não possui origem determinada, sendo aplicado por professores da Escola de Arquitetura da UFPA para designar o estilo decorativo com azulejos utilizado para decorar fachadas na década de 60.
8
Entrevista concedida à Cybelle Miranda pelo arquiteto Alberto Emaús do Santos, em 4 de julho de 2008.
sobre os autores
Cybele Miranda é Arquiteta e Urbanista, Doutora em Antropologia / UFPA e Profª da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFPA
Ronaldo Marques de Carvalho é Arquiteto e Urbanista, Mestre em Arquitetura/UFRJ e Prof. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFPA