O intuito deste texto não é relatar passo a passo da casa situada na freguesia de Vila Marim, nos subúrbios da cidade de Vila Real (Norte de Portugal), projetada e construída entre 2002 e 2005 pelo arquiteto Jorge Figueira (2), nem o poderia ser, porque a descrição total, dos espaços e seus mistérios, é uma pretensão inatingível em arquitetura. Mesmo quando o texto se aproxima da narração dos seus espaços e articulações, o leitor sabe que se trata de uma forma particular e parcial de os apreender, que surge somente na medida em que revela e sustenta um olhar. Esta dificuldade não deve ser entendida como «imperfeição», uma vez que conhecer e conhecer no campo da arquitetura incorpora uma dimensão pessoal, entendida como parte vital da construção do conhecimento (3). Recomendo assim ao leitor que inicie, desde já, a sua visita à casa, percorrendo plantas, cortes, alçados e imagens confrontando esta com outras publicações (4) ou, preferencial e seguramente com outro resultado, que visite a casa.
Também a intenção deste texto não é manifestar gosto ou desgosto por esta obra, mas clarificar a sua semântica, ou seja, o significado dos dispositivos espaciais aqui manipulados e enquadrar a sua utilização na produção arquitetônica portuguesa do último século. A casa em Vila Marim oferece essa possibilidade.
Esta obra de arquitetura é também reflexo do trabalho simultâneo de Jorge Figueira como arquiteto, docente e crítico de arquitetura. Pode dizer-se que não é possível dissociar o trabalho do crítico e docente da sua atividade criadora como arquiteto, condição que não deve ser entendida como diminuição ou subalternização de uma dimensão sobre outra. As atividades distinguem-se por si próprias e não meramente pelo brilho (incômodo) que uma possa lançar sobre outra. Esta obra não é uma produção especulativa, e por isso falhada, incapaz de agarrar a manualidade da arte de projetar. Contudo não serve a presente observação para ignorar a importância da elaboração teórica como parte indissociável do processo de projeto. A alegação da teoria como motor do projeto, de Martí Arís, tem nesta obra um sentido palpável. (5)
1
Porquê estudar a casa em Vila Marim?
Começamos por verificar que esta obra mantém sinais que estiveram presentes no processo da arquitetura portuguesa ao longo século XX. E, no campo da arquitetura doméstica, pode ser entendida como um elenco ou índice, indicando-nos permanências e interrupções, cruzamentos e sonhos que, percorrendo o século do habitar moderno, se precipitam hoje na arquitetura contemporânea. Esta obra, ao transportar estes aspectos da história e ao atualizá-los pela interpretação do presente, disponibiliza-se como proposta válida. Sem renunciar ao passado é marcada pelo hibridismo; a sua maturidade arquitetônica e o seu entusiasmo inventivo advêm da manutenção de um equilíbrio entre tradição, em sentido amplo, e originalidade.
O jardim formal onde esta obra se situa implica maturidade. E a maturidade de uma obra é produto individual do seu autor mas também reflexo de um coletivo (social, formativo e disciplinar), que lhe conferem compreensibilidade. Mas maturidade exige também o conhecimento da história e a consciência da história. Tal como T. S. Eliot salienta, essa consciência não pode estar completamente despertada exceto onde há outra história, que não a sua própria história: precisamos disto para ver o nosso próprio lugar na história (6). Somos levados, assim, a ir mais além da nossa história achando entendimentos em outras. A casa de Vila Marim tem a capacidade de incorporar não só da nossa história, mas igualmente de outras que conhece, usa e adapta, assegurando continuidades de hábitos e soluções transmitidas na cultura ocidental, hoje no tempo da universalidade. Ou seja, de conhecer e de escolhermos enraizados num lugar, numa localidade, numa história concreta, em suma, numa identidade ativa e compósita, porque cerzida por identidades múltiplas e simultâneas, mas cuja partilha de sentido com outras — que são diferenças — supõe a adesão a valores transversais (7). Este aspecto é crucial no projeto de Jorge Figueira. A hibridização é total, já não é só local ou só global, mas local e global simultaneamente; não é só disponível à troca de técnicas, mas também ao enriquecimento multicultural de sentidos. O composto resultante, o seu projeto, é culturalmente pop, português e universal. (8)
A clarificação da sua condição híbrida sem perda da identidade é um dos aspectos mais originais da obra em Vila Marim. Qual identidade? Portuguesa, o que não é sinônimo de limitada a um território, sendo tanto integração como diferenciação da nossa condição e do seu tempo, perante a circunstância de uma sociedade em rede na era da informação. O hibridismo é inclusivo, enriquecedor, mas também compromisso como aquele que marcou o processo histórico da arquitetura portuguesa e ainda hoje prosseguido, tal como é mostrado nesta obra e na generalidade da arquitetura portuguesa recente.
Alguma produção contemporânea, sustentada por uma crítica que opera num mercado global de arquiteturas, numa lógica de procura de novos produtos para satisfazer a voracidade editorial, inscreve-se numa mudança da articulação entre forma construtiva e forma arquitetônica. Este aspecto, já assinalado desde os anos oitenta por Rafael Moneo e ainda hoje decisivo para a produção arquitetônica, configura uma fissura num conhecimento edificado e estável durante séculos (9). Esta arquitetura, exemplarmente ilustrada pela exposição/catálogo de Zaha Hadid no Guggenheim Museum (10). sustenta a sua concepção na dissociação do par forma construtiva/forma arquitetônica, pode caracterizar-se por exibir não só monotonia, mas também excentricidade (11). Monotonia porque os recursos espaciais usados não são explorados num contexto arquitetônico, aproximando-se, talvez, de outra linguagem própria do design, ou mesmo da escultura. Perde-se o contacto com o mundo da arquitetura. Podem assim ignorar-se aspectos (aos quais a arquitetura dá resposta) como habitabilidade, programa, naturalidade construtiva e a todas as ações humanas daqui decorrentes. Excentricidade porque a manifestação formal, ao abandonar a articulação entre forma construtiva e forma arquitetônica, abandona a possibilidade de ultrapassar a arbitrariedade própria de todo o gesto inicial de criação. A arbitrariedade em arquitetura manifesta-se na exacerbação do estilo individual, ou seja, no abandono do aprofundamento da origem de cada decisão arquitetônica, quer pela consciência da sua tradição, quer pelo seu entendimento na sociedade em que é gerada. Este último aspecto é vital. A produção arquitetônica reflete a sociedade em que é gerada. Isto implica compreensibilidade da obra produzida. Uma obra possui, para além da sua relação com o mundo disciplinar, igual relação com uma comunidade de gosto. Para clarificar este último aspecto socorro-me da definição de estilo médio de T. S. Eliot: Um estilo médio é um estilo que nos faz exclamar não «este é um homem de gênio a usar a língua», mas «isto realiza o gênio da língua» (12). A obra em Vila Marim ilumina esta articulação entre o «eu» e o coletivo, entre ser singular e plural, não pela genialidade, mas pela aproximação ao caráter da linguagem seu tempo. Trata-se de uma obra erudita, mas que não teria sido possível sem que o seu autor tivesse um conhecimento agudo da sua escola e da arquitetura ocidental, e cujo saber se tornou relevante para exprimir, pela produção arquitetônica, os anseios (e a sua crítica) da sociedade onde trabalha, da família para quem projeta, do local onde se situa e das circunstâncias do seu tempo.
A casa em Vila Marim, ao recusar a excentricidade, assinala o equilíbrio e harmonia entre construção e arquitetura, continuando a reinscrever a arquitetura contemporânea na tradição arquitetônica do moderno. A sua afirmação de um estilo médio, pelo vínculo que estabelece a um gosto identificável e aceite no meio onde constrói, permite observar esta arquitetura como uma produção corrente que interpreta a tradição de novecentos no abrir do século XXI.
A noção de produção corrente foi identificada, no início do século XX, na construção de casas para a pequena burguesia que se contrapunham aos grandes palacetes burgueses, realizados na mesma época e pelos mesmos arquitetos. Esta «outra casa» dispunha-se a re-elaborar a experiência espacial dos mestres na edificação da grande habitação burguesa, estando sujeita a critérios inéditos de serialização dos processos de projeto no atelier e de construção na obra. Com esta «outra casa» designada por produção corrente inaugurava-se uma distinta racionalidade do espaço e dos modos de habitar. O seu projeto registrava novas regras e adequava os dispositivos espaciais extensos e complexos a programas mais reduzidos e econômicos. A sua realização iria possibilitar à pequena burguesia uma alternativa ao grande palacete que, contudo, sem ter uma intenção substitutiva de um pelo outro, foi sinal indelével do seu tempo, acompanhando a alteração do estilo de vida dos seus habitantes. (13)
Hoje a casa em Vila Marim dá continuidade a estes aspectos, não pelas mesmas práticas que caracterizaram a passagem do século XIX para o século XX, mas pela possibilidade da configuração espacial continuar a reportar-se ao sonho do habitar burguês. A casa em Vila Marim, sem recusar as suas condições e limitações, oferece não só o acesso à melhor qualidade material e técnica da construção contemporânea, mas também torna disponíveis imagens representativas de um estilo de vida moderno, consonante com a figuração hoje presente nas revistas de arquitetura e de decoração de interiores, na publicidade e no cinema. Também a sua organização espacial, para além de adotar princípios centrais da organização doméstica burguesa, reelabora-os na consideração de outras formas de vida quotidiana. A organização da casa, ao ser flexível e informal traduz expectativas genéricas próprias a uma burguesia esclarecida e cosmopolita, do que é habitar no início do século XXI. Mas responde igualmente às expectativas de uma família que impelem, neste caso, a concepção arquitetônica. Nesta perspectiva, é uma casa corrente na medida em que reflete uma identidade genérica e é fruto de uma sociedade global, sem por isso deixar de adequar dispositivos espaciais complexos e sofisticados, representativos de um estilo de vida… tal como sucedia nas construções correntes de 1900 relativamente aos grandes palacetes.
2
A casa em Vila Marim localiza-se num loteamento na periferia de Vila Real, de onde se vê a encosta e a cidade. A implantação da habitação no terreno ocupa praticamente a totalidade da área disponível do pequeno lote (±22x29 m) deixando uma faixa de terreno (5 a 7 m) entre a edificação e os limites murados. A reduzida área de terreno envolvente à edificação vai proporcionar a procura de diferentes meios de relacionar a casa com o exterior. Esta circunstância é importante. O interior doméstico e a sua exterioridade são assim balanceados entre o compromisso de encerrar a casa ao exterior e a sua abertura calculada.
A casa nada tem a dizer ao exterior. Esta estratégia loosiana é decisiva no alçado principal, onde se localiza a entrada, com o encerramento da fachada sobre o arruamento de acesso. Esta fachada sem janelas, virada a norte, ao marcar um relacionamento austero com a sua vizinhança, constrói o que se pode chamar uma não-fachada. A casa não tem fachada, não existe, foi desconstruída, prosseguindo soluções encontradas em arquiteturas desde o início do século XX. Esta observação confirma-se pela análise da parede desta fachada e pelo que ela separa. A idéia de não-fachada afirma-se, também, em oposição às outras fachadas da casa, onde são abertos diversos tipos de vão. Se a fachada principal é cega (sendo a única sem aberturas), a fachada oposta rasga-se numa fenêtre en longueur, estabelecendo assim uma oposição formal forte, mutuamente reforçada. Esta idéia de não-fachada é ainda prosseguida na construção da própria parede. A sua superfície divide-se em dois planos retangulares, um superior ao nível do primeiro andar, outro inferior pousado no chão. O primeiro é opaco, o outro é translúcido. Um é denso, constituído de alvenaria (ou sugerindo-a), material pesado e relacionado com a idéia tradicional de parede. O outro é cristalino, constituído por chapas de vidro fosco, matéria sugestiva de leveza e de fina película de revestimento relacionada com a idéia de pele. O composto construtivo assim alcançado opõe, na mesma parede, a idéia de parede à de pele — paradigmas da arquitetura na transição do século XX para o XXI —, (14) conformando duas superfícies geometricamente regulares, abstratas e silenciosas (15). Mas este silêncio não é ausência; pelo contrário, é instrumental para uma percepção clara da estrutura da obra, lugar de movimento e de cruzamentos em incessante recomeço. (16)
Este confronto pode ser registrado não só entre parede e pele, mas igualmente em outras seqüências polares, como movimento vertical e horizontal, encerrar e abrir, separar e afastar, baixo e alto, claro e escuro, etc. (17) Este tipo de relações, entre outras, esboça a estrutura do projeto, contribuindo para que cada parte, cada dispositivo espacial, seja incluído num mesmo sentido. Este é um dos aspectos mais significativos do projeto. A manipulação calculada do fragmento, da citação, do acaso e da perplexidade surgem na montagem do programa e dos dispositivos espaciais, conduzidos até à sua saturação e limite. Trata-se de requerer a complexidade espacial como hipótese de uma leitura crítica da arquitetura moderna. Esta atitude nunca é arrogante face ao programa, face à necessidade de habitar ou face à sua vizinhança e lugar. A complexidade permite ao projeto de Jorge Figueira interrogar. Interrogar um século de habitação moderna, de arquitetura e os estilos de vida, sem deixar de produzir arquitetura do seu tempo. Nesta iniciativa, a obra singulariza-se face a alguma arquitetura doméstica contemporânea de desenho impositivo, afirmando sempre a integridade do seu projeto.
Por detrás da fachada cega encontra-se a casa. A função protetora desta parede é revelada na passagem para o interior através da porta principal. Depois da porta, o átrio. Aqui a casa, como dispositivo espacial para habitar, é descoberta. O átrio, com pé-direito duplo, oferece um conjunto de perspectivas que cruzam horizontal, vertical e obliquamente o espaço doméstico.
Ao habitante é assim permitido um olhar horizontal que cruza a casa, de fachada a fachada, do átrio à sala comum que se abre para o terraço exterior confinado pela piscina. A este olhar horizontal associa-se o movimento do habitante que ao percorrer a casa organiza o programa do piso térreo. Em primeiro plano, surge um pequeno pátio cor de laranja aberto para o exterior, originado por um corte vertical do volume edificado que (18), ao iluminar o centro da casa, define planos de transparências entre o átrio e a sala, entre o átrio e o terraço exterior, sugerindo a nossa deslocação. Podemos dizer que este percurso acaba num mergulho na piscina encostada à casa.
Mas este movimento horizontal é iniciado com a verticalidade do espaço do átrio. É um espaço desproporcional, mas vital. De acordo com a tradição oitocentista, o átrio é a casa. O átrio é o centro (aqui lateralizado) da organização doméstica, elemento-chave na definição de um cromatismo da vida doméstica. Na casa em Vila Marim não é exceção. O átrio é o centro espacial da casa associado não só ao cruzamento do piso térreo, mas também à escada para o piso superior onde se situam os quartos. O espaço de pé-direito duplo do átrio é totalmente revestido em madeira e coberto por um lanternim. O seu espaço é inundado por uma luz quente que desce, provocada pela madeira, contrastando com a luminosidade fria que chega através da parede de vidro fosco junto ao chão da fachada principal.
O átrio é, na arquitetura doméstica, um espaço representativo. Diz-me como é o átrio, dir-te-ei que casa tens. O átrio na casa de Vila Marim sintetiza o grande vazio do hall da casa burguesa oitocentista, com o hall onde se desenrola a promenade architecturale da casa moderna. Aliás, estes dois aspectos – escala e movimento – estão sempre presentes nas casas de Ventura Terra (19) a Álvaro Siza, da casa J. J. da Silva Graça (Lisboa, 1905-1907) à casa Avelino Duarte (Ovar, 1981-1985).(20) Contudo, o uso separa-os. Se todas as escadas são um dispositivo para uma cenografia doméstica, só na casa J. J. da Silva Graça a escada é também um dispositivo de segregação da circulação no interior da casa e de regulação da privacidade. Na casa Avelino Duarte e na casa em Vila Marim a escada expõe a vida doméstica. A escada é o único acesso ao piso dos quartos, ao contrário das casas oitocentistas com escadas de serviço e circulações paralelas. Na casa em Vila Marim os quartos no piso superior abrem as portas para a varanda interior da escada e daqui para o espaço do átrio. Mas a intimidade dos três quartos é preservada, as suas portas são protegidas do olhar direto de quem está no rés-do-chão.
O átrio em Vila Marim é o centro do projeto, um dispositivo complexo, que congrega situações diversas: entrada principal, perspectiva transversal até ao terraço, pátio laranja, parede translúcida em vidro, lanternim superior do átrio, revestimento interior em madeira, janela na varanda interior da escada para o pátio… e ainda acesso a um escritório. Este escritório, espaço de trabalho ou de receber, embora lateral à dinâmica do projeto, toma a sua posição tradicional na organização segregada da casa. Nos cânones oitocentistas, perpetuados na arquitetura burguesa do século XX, o escritório ou a sala de visitas situava-se junto da entrada, antes do átrio, ou na passagem para a casa de dentro. Assim definia-se um nível segregador intermédio entre público e privado, que aqui é justamente mantido.
O que significa o uso da cor de laranja presente no revestimento exterior dos dois alçados laterais (topos) da casa? Estas duas superfícies assinalam momentos singulares na articulação dos espaços e das funções na casa.
Um topo laranja corresponde à existência de um corte no volume da casa, até ao seu centro, originando um pequeno pátio com a mesma cor (e de que já falamos). O outro topo laranja identifica o volume saliente onde se situa a cozinha e um espaço anexo (junto da piscina). Mas é com uma janela situada neste espaço, orientada para o topo, que se assinala o significado deste dispositivo na organização da casa. O espaço interior (e a janela) correspondente a este topo está associado a um sistema de passagens entre sala e cozinha que permite diferentes combinações, sendo gerador de flexibilidade no uso e de complexidade enriquecedora do programa. (21)
Estes dois topos, cor de laranja, assinalam uma lógica de contraponto na composição da casa. O movimento transversal do habitante (anteriormente referido), ao percorrer a casa do átrio ao terraço exterior, é interrompido sincopadamente por acontecimentos de ordem espacial, funcional ou estética. Esta marcação é obtida no projeto pela ordenação de séries com diversas leituras conforme o momento, o utilizador ou o uso. Alguns destes acontecimentos podem ser identificados nas suas componentes espaciais como: o átrio, a escada, o corte vertical no volume que origina o pátio laranja no topo, o espaço anexo à cozinha e a janela aberta no outro topo laranja, a articulação da sala com a cozinha, ou a abertura da sala sobre o terraço e a piscina. A arquitetura prepara o acontecimento (22). Também em A Bigger Splash, de David Hockney, ou na fotografia da Villa Dall'Ava, de Peter Aron, o registro dos mergulhos – já decorrido ou na eminência de se realizar – surgem como acontecimentos intrinsecamente ligados á percepção de formas de vida que decorrem nestes espaços; vida e espaço estão ligados.
Os dois espaços interiores associados aos topos, marcados exteriormente pela cor laranja, organizam a fuga para o exterior do olhar do habitante em movimento e definem, igualmente, o seu olhar na direção contrária ao percurso transversal que cruza a casa. Assim, realiza-se um jogo enriquecedor do movimento, marcando o seu espaço/tempo com estes acontecimentos. A complexidade é mais uma vez oportunidade para interrogar a Casa.
O espaço anexo à cozinha na passagem para a sala, onde se situa uma janela (ambos já referidos), é um dos espaços mais enigmáticos do projeto. Trata-se de um espaço que, pela sua situação na casa, não corresponde a uma organização ortodoxa do programa nem a uma disposição comum para seu potencial de uso. Este espaço é usado para desenvolver um conjunto de novas relações entre cozinha e sala comum, o que também lhe permite deixar em aberto diversas possibilidades de uso, tal como é reforçado pelo sistema de portas/painéis de correr aqui utilizados. A ambigüidade do tratamento do espaço anexo à cozinha, com uma estante divisória em material negro (de costas para a cozinha) e com portas/painéis de correr brancas, permite explorar, funcional e espacialmente, diferentes possibilidades de abrir, de fechar ou de abrir e fechar estes três espaços. Se a ligação sala/cozinha já é normalmente aceite na organização da casa, a introdução de um terceiro espaço surge como uma exploração válida do programa e das suas circunstâncias. O que é este espaço? A que domínio pertence: ao da cozinha ou ao da sala? Para estas perguntas não há respostas claras, nem tem de haver. Este terceiro espaço, onde se situa a estante divisória, explora a sua própria ambigüidade, oferecendo à vida doméstica possibilidade de inovação. A sua afetação não é só local, é também estrutural, interfere com a casa. Como já referimos, nele se localiza a janela para o topo cor laranja, que permite um olhar que cruza toda a casa, de topo a topo, para quem está na sala; ou um olhar estranhamente obliquo para quem observa em simultâneo o pátio laranja e esta janela. A profusão de pontos de fuga não é errática, pelo contrário, orienta os habitantes em movimento e identifica os espaços no seu uso. Ou seja, os espaços são articulados com uma noção de perspetiva sugestiva de movimento, descritos e apreendidos como um speech-act, como se lhe refere Michel de Certeau (23), revelando as possibilidades complexas que oferecem ao uso e à ocupação quotidiana. O projeto estabelece caminhos e passagens de um uso a outro, de um lugar a outro, construindo uma coreografia dentro da habitação com o movimento dos seus habitantes.
Esta observação permite entender o projeto como um mapeamento do espaço habitável, baseado na narrativa do quotidiano como ações de organização espacial. A descrição de um mapa entre compartimentos, ou a enunciação de uma série de informações para a definição de um percurso para se alcançar um compartimento/espaço, é efetiva e plenamente eficaz, permitido ao habitante a identificação da sua posição relativa e precisa no lugar habitável. (24)
3
Com esta obra constata-se que na arquitetura portuguesa recente se verifica a permanência da influência moderna (formativa e disciplinar), o hibridismo da linguagem, a manutenção de padrões de organização espacial e a diferenciação formal como fator distintivo sociocultural. Isto é, capacidade de observar a contemporaneidade sem renunciar à sua tradição, mas também de a interpretar com originalidade.
A casa de Vila Marim deixa-nos marcas de múltiplas articulações e sentidos de leitura, que só o tempo poderá concluir, que caracterizam o seu dispositivo arquitetônico. Apesar dos novos e coloridos materiais, que expõe nas fachadas, se afirmarem como produção corrente, também atenta ao banal que constrói o nosso território. Esta arquitetura, ao jogar na ambivalência da forma e do sentido, inscreve-se (sem recusar a crítica) no que podemos chamar situação portuguesa da arquitetura ao longo do século XX: o hibridismo
O hibridismo da casa de Vila Marim pode ser entendido como composto de elementos formais de origem diversa, reunidos num exercício pessoal e crítico. E com isto reproduz um modo de fazer da arquitetura portuguesa. Trata-se de um jogo complexo, onde são confrontados ou substituídos os sinais de anteriores estilos (que percorrem o século XX) por outros da modernidade pós-industrial (da transição para o século XXI), numa colagem, agora não figurativa, que continua a assegurar a diferenciação vital do espaço doméstico burguês. O mesmo sentido pode ser observado na arquitetura eclética, revivalista, rústica ou pitoresca, na generalidade da arquitetura doméstica portuguesa, onde se destaca a plurissecular Casa Portuguesa como a mais popular e reconhecida forma construída em Portugal. Na casa de Vila Marim o hibridismo assegura uma típica ambivalência da arquitetura portuguesa, que é simultaneamente gadget moderno e a sua crítica.
Nesta perspectiva podem ser identificadas algumas arquiteturas do mundo que parecem contaminar esta obra, constituindo uma espécie de coleção formal de referência. Sabendo que uma influência não é razão ou justificação de uma obra e sem detalharmos este aspecto, podemos sublinhar a presença de arquiteturas como da casa "au bord du lac" (1925, Le Corbusier), da Villa Dall'Ava (1990-1993, Rem Koolhaas) ou da Galeria Goetz (1987, Herzog e de Meuron). Os materiais, os contrastes, as proporções, os dispositivos arquitetônicos e a decomposição do programa são usados, em processos complexos de passagem e de colagem, como instrumentos de projeto.
O stick style da casa de Jorge Figueira pode incluir-se na tradição eclética da casa portuguesa ao longo de todo o século XX (25). Esta lenta construção, para lá dos falhanços e sucessos, dos compromissos e das provocações, é uma linha significante que não conhece interrupção. A mesma tradição permite o pragmatismo que faz conciliar na mesma obra vetores de continuidade do modo de fazer, com outros de transição. A arquitetura portuguesa contemporânea continua a evocar esta naturalidade da sua construção assente numa eficaz e pragmática noção dos materiais e dos meios disponíveis, sustentada numa poética da construção e na capacidade, para além do estilo, de ser tradicional.
A arbitrariedade é ultrapassada.
notas
1
O presente texto foi publicado originalmente com o título "Elenco para uma arquitectura doméstica: casa em Vila Marim" no Opúsculo, nº5, Dafne, Porto, 2007; http://www.dafne.com.pt/catalogo_baixo3.php?id=5 [2007]. Na presente edição texto e imagens foram revistos e aumentados.
2
Jorge Figueira é licenciado em Arquitetura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e docente do Departamento de Arquitectura, na Universidade de Coimbra. É responsável pelo projeto do Novo Campus de Angra do Heroísmo, na Terceira, Açores (em construção). Foi comissário da exposição "Álvaro Siza. Modern Redux", no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2008. Tem textos publicados em diversas publicações periódicas, livros e catálogos em Portugal, Brasil, Espanha, Itália e Japão.
3
POLANYI, Michael, Personal knowledge: towards a post-critical philosophy, London, Routledge, 1998. [1.ª ed. 1958]
4
GARCÍA-HERRERA, Adela, MILHEIRO, Ana Vaz (eds.), 2G Dossier Portugal 2000-2005, 25 edifícios do século XXI, Barcelona, 2005, pp.74-77.
José Manuel NEVES (ed.), Casas Contemporâneas, Caleidoscópio, Lisboa, 2005, pp. 112-119.
FISCHER, Joachim, UFFELEN, Chris van (eds.), 1000 x European Architecture, Berlin, Verlagshaus Braun, 2006. «Casa em Vila Real» in Arquitectura & Construção, n.º 41, Março 2007, p.64-71.
5
MARTÍ ARÍS, Carlos, «El concepto de transformacíon como motor del proyecto» in La cimbra y el arco, Fundación caja de arquitectos, Barcelona, 2005, p.38-51. [1.ª ed. 1997]
6
ELIOT, T. S., «O que é um clássico?» in Maria Adelaide Ramos (ed.), Ensaios Escolhidos, Lisboa, Cotovia, 1992, p. 137. [1.ª ed. 1945].
7
CATROGA, Fernando, Entre Deuses e Césares. Secularização, laicidade e religião civil: Uma perspectiva histórica, Coimbra, Almedina, 2006, p.498-501.
Para Fernando Catroga «a mundialização (ou globalização) remete para a difusão espacial de um produto, (…) a universalidade assenta numa «partilha de sentido», algo que aquela, com a sua multiplicação de trocas e com a sua produção de «não-lugares» (…), nunca poderá alcançar.»
8
A diferença entre composto e mistura em arquitetura foi desenvolvida por Távora em 1957 quando apresentou a casa de Ofir como resultado da circunstância do seu autor e de onde foi produzida.
TÁVORA, Fernando, «Casa em Ofir» in Arquitectura, 3.ª série, n.º 59, Lisboa, 1957.
9
MONEO, Rafael, «La Soledad de los Edifícios» in Rafael Moneo 1967-2004: antologia de urgencia, El Croquis, 2004, p. 608-615. [1.ª ed.1985]
10
HADID, Zaha, Zaha Hadid, New York, Guggenheim Museum Publications, 2006.
11
Monotonia e excentricidade são termos "roubados" a T. S. Eliot. Cf. ELIOT, Op.cit.
12
ELIOT, Op.cit.]
13
RAMOS, Rui J. G., «"Produções correntes" em arquitectura: a porta para uma diferente gramática do projecto do início do século XX» in NW noroeste. Revista de História, n.º 1, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, 2005, p.53-80.
14
MONEO, Rafael, «Paradigmas fin de siglo: Los noventa, entre fragmentación y la compacidad» in Arquitectura Viva, n.º 66, 1999, p. 17-24.
15
Mesmo na introdução da porta principal na superfície de vidro é reconhecida a necessidade do seu apagamento, pelo seu tratamento e pormenorização construtiva. A porta não está presente na composição.
16
MARTÍ ARÍS, Carlos, «Rothko y el caracter sacramental del arte» in Silencios elocuentes, Edicions UPC, Barcelona, 1999, p. 42-47.
17
Convêm salientar que «polar» refere-se a categorias opostas que são entendidas numa unidade complementar e «dual» implica categorias de relação incompatíveis.
EGENTER, Nold, «L'ici domestique et l'au-delà imaginaire: Une typologie anthroplogique des conceptions de l'espace» in Pierre PELLEGRINO, Figures architecturales, Formes urbaines, Genève, Anthropos, 1994, p. 308.
18
Na verdade não é um pátio, não é local de estar ou de passagem. É um corte na edificação que produz um vazio que permite entrada de luz e ver através dele o interior e exterior. Por facilidade designa-se por "pátio laranja" devido ao facto de ser pintado exteriormente com esta cor.]
19
Ventura Terra (1866-1919) é um dos principais arquitetos na passagem do século XIX para o século XX português. Em 1886, como pensionista do estado português, ingressa na École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts em Paris, onde freqüenta o atelier de Vítor Laloux (1850-1937), autor da Gare d'Orsay inaugurada em 1900. Na sua produção destacam-se, não só as grandes casas burguesas mas, sobretudo, as casas de menor dimensão e os edifícios de habitação coletiva que realiza para a pequena burguesia; é também autor de diversos equipamentos públicos, onde se distingue a Assembléia da República, que respondem à modernização da vida em curso.
20
A arquitetura da casa J. J. da Silva Graça, de ventura Terra, é capaz de incluir sob a sua expressão eclética finissecular, de influência francesa, a sofisticação e o conforto, com todos os recursos e equipamentos, para uma vida moderna. Trata-se de uma grande máquina de habitar que manifesta a crença no progresso e uma profunda disponibilidade moderna.
A casa Avelino Duarte, de Álvaro Siza, é um sofisticado dispositivo espacial onde se pode ler influencia Adolf Loss (1870-1933). Esta construção, ao assinalar uma importante mudança no percurso de Siza, encerra uma condição anterior da arquitetura portuguesa, já denunciada em obras anteriores na década de setenta, e abre o capítulo da nossa contemporaneidade.
Estas duas obras representam a permanência ao longo do século XX o ideal burguês de habitação.
RIBEIRO, Ana Isabel (Coord.), Miguel Ventura Terra, arquitectura enquanto projecto de vida, Esposende, Câmara Municipal de Esposende, 2006, p. 278-281.
WANG, Wilfried, «Casa Duarte» in 9H, nº 7, Londres, 1985, p.53-59
21
VENTURI, Robert, Complejidad y contradicción en la arquitectura, Barcelona, Gustavo Gili, 1978. [1.ª ed. 1966]
22
ROSSI, Aldo, Autobiografía científica, Barcelona, Gustavo Gili, 1984. [1.ª ed. 1981]
23
CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce, MAYOL, Pierre, L'invention du quotidien, Paris, Gallimard, 1990. [1.ª ed. 1980]
24
Idem.
25
SCULLY, Vincent, The Shingle Style & the Stick Style, Yale University Press, 1971. [1.ª ed. 1955]
casa em Vila Marim – Ficha técnica
Localização: Vila Marim, Vila Real, Portugal
Data do Projeto: 2002 – 2003
Data da Obra: 2004 – 2005
Arquitetura: Jorge Figueira
Colaboradores: Carla Dias e João Pedro Fonseca
Estruturas e Fundações: Ricardo Fonseca
Instalações de Águas e Esgotos: Pedro Vieira da Costa (Gatengel)
Instalações e Equipamentos Elétricos: Nuno Pinheiro (Gatengel)
Telecomunicações: Fernando Ferreira (Gatengel)
Instalações de Aquecimento Central: Odete Almeida (PQF)
Projeto Acústica: Sónia Soares Medeiros
Construtor: José Nunes Pereira.
sobre o autor
Rui J. G. Ramos é arquiteto licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP, 1986) e doutorado em Arquitectura pela mesma universidade com investigação, na área dos cultural studies, sobre arquitetura e projeto doméstico na primeira metade do século XX português (2005). Atualmente é professor auxiliar da FAUP, onde leciona as disciplinas de Projecto 3, no Mestrado Integrado, e de Teoria no Programa de Doutoramento em Arquitectura, integrando igualmente a sua Comissão Científica