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architexts ISSN 1809-6298


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português
O artigo aborda o papel do espaço no pensamento do filósofo francês Jean-Paul Sartre em dois de seus livros, "Esboço para uma teoria das emoções", publicado pela primeira vez em 1939, e "O ser e o nada", de 1943

english
Adson Lima analyses the role of space within Jean-Paul Sartre's philosophy in two of his books: "Sketch for a Theory of Emotions" and "Being and Nothingness"

español
Adson Lima analisa el rol del espacio del pensamiento del filósofo Jean-Paul Sartre en dos libros "Bosquejo de una teoría de las emociones" y "El ser y la nada"


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LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Oscilando entre o ser e o nada: a questão do espaço hodológico no pensamento de Sartre. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 112.03, Vitruvius, set. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/24>.

1. Introdução

Já foi tantas vezes escrito e re-escrito que Sartre era um contumaz viajante e que nutria especial afeição pelo urbano (1); e esta questão levou-nos a uma tarefa suplementar: refletir se o espaço, pensado como categoria filosófica, possuía nos escritos sartrianos alguma importância, ou se, ao contrário, seria um conceito completamente marginal a sua obra. Esta questão é importante se pensarmos que o nosso autor escreveu alguns textos que possuíam como tema principal, justamente, o espaço urbano. E ao afirmamos isto, estamo-nos referindo aos três ensaios que ele publicou na coletânea Situações III, intitulados Nova York cidade colonial, Cidades americanas e Individualismo e conformismo nos Estados Unidos. Os dois primeiros textos, vale a pena salientar, foram reformulações de reportagens publicadas em jornais franceses em 1945, ano da sua primeira viagem aos Estados Unidos da América. No entanto, não caberia neste artigo refletir o espaço em toda a produção bibliográfica de Sartre, que, como sabemos, era extensa, e nem analisar todas as conseqüências e possibilidades teóricas; neste sentido, o nosso objetivo é preciso: estudaremos a influência da Hodologia, conceito capital de um ramo da psicologia criado pelo alemão Kurt Lewin, em dois livros do nosso autor, a saber, Esboços de uma teoria das emoções e O ser e o nada. Este recorte indica que o nosso estudo abrangerá um lapso temporal de quatro anos, de 1939, ano da publicação do primeiro livro que será estudado por nós, a 1943, data da publicação do influente O ser e o nada.

E iniciaremos a nossa exposição, justamente, pelo Esboços de uma teoria das emoções, uma vez que, neste texto,encontra-se pela primeira vez uma referência de Sartre ao já aludido conceito que tem a sua origem na psicologia alemã, a hodologia: “Assim pode-se compreender todas as exigências e as tensões do mundo que nos cerca, assim pode-se traçar um mapa ‘hodológico’ de nosso Umwelt, mapa que varia em função de nossos atos e de nossas necessidades.” (2). A emergência deste conceito no texto ocorre mais uma vez: “Só que os meios para realizá-la, os caminhos que sulcam o nosso ‘espaço hodológico’ mudaram.” (3). Voltaremos a estas frases em tempo, posto que, neste momento devemos, por uma lógica interna a nossa exposição, discorrer sobre a história deste conceito, para que possamos compreender o seu emprego por Sartre.

A hodologia é um dos conceitos capitais de uma disciplina chamada de “Psicologia Topológica” –; e esta, por sua vez, pode ser compreendida como uma derivação da Psicologia da Gestalt –;, tendo sido elaborada, como já foi dito, pelo psicólogo alemão Kurt Lewin, nos anos 1920-30 (4). A expressão “topologia” foi tomada de empréstimo à matemática e postula uma nova compreensão para o espaço, que, a este título, seria distinto do espaço euclidiano, cujas propriedades, como sabemos, são a homogeneidade, a isotropia e a uniformidade. Trata-se, então, de um espaço psicológico e que dependeria do indivíduo, e no interior do qual ele realiza os seus desejos e as suas necessidades. Neste sentido, está-se diante de um conceito que se realiza a partir de termos que têm uma significação tanto material quanto simbólica: caminhos (o “caminho privilegiado” que conduzirá o homem, de maneira mais simples, aos objetos do mundo e cuja posse significará a realização dos desejos e das necessidades) e obstáculos (os obstáculos que tornam o mundo, segundo Sartre, “difícil”). Os caminhos –; e as inevitáveis barreiras –; são a própria essência da hodologia: o termo hodos pode ser traduzido, justamente, por caminho.

Os trechos por nós citados sobre a hodologia nem são os mais significativos do Esboços: há uma longa citação de Paul Guillaume que ocupa cerca duas páginas nas quais a “Psicologia Topológica” é explicada ao leitor, e Lewin e os seus discípulos são devidamente nomeados a partir do termo “a Escola de Lewin”. Este tratamento, em um livro que é, na realidade, tão curto –; e é o próprio autor que o reconhece como um esboço –; demonstra a importância que, naquele momento, o espaço tinha no seu pensamento. Sartre chegou mesmo a reproduzir o esquema gráfico do campo hodológico, com as suas barreiras e os seus possíveis caminhos, fato que, se não é definitivo para a exposição, ao menos indica a importância que Sartre emprestava à “Psicologia Topológica”.

Realizadas estas considerações iniciais, discorreremos no próximo capítulo sobre os desdobramentos deste conceito no pensamento de Sartre e abordaremos, finalmente, como o nosso autor serviu-se desta psicologia para elaborar uma teoria sobre o espaço.

2. O espaço hodológico em Sartre

A breve descrição realizada acima tem o mérito, ao menos, de elucidar duas questões: o emprego por Sartre da hodologia indica que o espaço tem certa importância no seu pensamento no lapso temporal aludido por nós, e que a “Psicologia Topológica” e o seu conceito capital não compareceram no texto de 1939 de maneira arbitrária. Ora, o mundo que nos cerca, segundo a exposição do filósofo francês, com seus objetos –; o Umwelt –;, é um mundo de caminhos e de barreiras, e é justamente a partir deste fato que agimos. O professor francês Jean-Marc Besse explica assim esta relação entre existência e espaço no pensamento do nosso autor: “Sartre sublinha, sobretudo, o aspecto espacial da situação humana, a minha relação com o mundo é inicialmente de proximidade e de distância: os objetos se descobrem e se definem como estando a uma certa distância de mim.” (5). A existência humana, na medida mesmo em que é uma sucessão temporal, é a descoberta paulatina deste campo hodológico. As frases de Sartre citadas no-lo atesta: os caminhos que trilhamos e que variam de acordo com as nossas decisões e ações sobre o mundo.

No entanto, o leitor poderá argüir com a constatação segundo a qual um único livro –; e filosoficamente “secundário” –; em uma obra tão extensa não representaria muito, além de a referência à “Psicologia Topológica” poder ser interpretada como meramente circunstancial, ou, ainda, como um capricho ocasional do nosso autor. É necessário, então, que prossigamos com as nossas argumentações para que esta questão seja devidamente esclarecida.

Segundo o professor norte-americano Joseph Halpern as obras de ficção de Sartre foram escritas desde uma perspectiva muito particular, que é aquela do espaço: “Nada é mais consistente na ficção de Sartre que o uso do décor como um ativo e significativo elemento de composição.” (6). Por décor Halpern entende o espaço ficcionalmente representado, e tem em mente Paris, onde se passa boa parte da trilogia romanesca Os caminhos da liberdade, e a cidade ficcional de Bouville, espaço da novela A náusea. Esta última cidade já tem um nome significativo, cuja tradução, em Português, poderia ser “Cidade da Lama”, ou ainda, “Lamópolis” –; o que, ao menos em parte, demonstraria o sentimento do filósofo francês em relação à cidade de Havre, onde ele lecionou e que teria inspirado Bouville. De qualquer sorte, o mais importante é salientar o fato de o professor norte-americano usar o “espaço hodológico” como uma ferramenta conceitual que permitiria a compreensão das obras de ficção de Sartre, enfatizando que se trata de um espaço qualitativo que, a este título, não seria mensurável. É neste sentido que é possível se referir à paisagem como um elemento que definirá e caracterizará as personagens sartrianas. Mas este tratamento privilegiado do espaço não é prerrogativa unicamente de Sartre, tendo sido realizado por muitos escritores –; e, inclusive, por muitos romancistas franceses: Proust, Duras etc –; ao longo do século passado, mais interessante na nossa exposição seria demonstrar as especificidades do espaço na obra filosófica de Sartre, uma vez que isto ajudaria a elucidar a nossa questão.

E é justamente na sua obra filosófica maior –; maior em todos os sentidos –;, O ser e o nada, que encontraremos um número bastante significativo de referências ao espaço, e sob múltiplos pontos de vista, inclusive àquela da “Psicologia Topológica”. Sob este aspecto, é importante perceber como as referências a esta corrente psicológica não apenas não diminuíram como se tornaram mais numerosas em um livro que é, certamente, mais múltiplo e denso que os Esboços. Assim, cabe-nos, agora, demonstrar como o espaço comparece no O ser e o nada.

Iniciaremos a nossa exposição por uma citação que confirma, de maneira, esperamos, clara, o que afirmamos no parágrafo anterior:

Meu lugar se define pela ordem espacial e a natureza singular dos “istos” que a mim se revelam sobre o fundo de mundo. É, naturalmente, o lugar que “habito” (meu “país”, com seu solo, seu clima, suas riquezas, sua configuração hidrográfica e orográfica), mas também, mais simplesmente, a disposição e a ordem dos objetos que presentemente me aparecem (a mesa, do outro lado da mesa uma janela, à esquerda da janela uma estante, à direita uma cadeira, e, atrás da janela, a rua e o mar) e que indicam como sendo a razão própria de sua ordem. (7)

Trata-se das frases introdutórias do capítulo intitulado “Meu lugar”, responsável, no longo texto de Sartre, por matizar alguns dos seus conceitos capitais: a liberdade, a facticidade e a situação. Neste sub-capítulo torna-se evidente que o homem é livre ou se nega a liberdade justamente a partir de um “lugar”, isto é, em um espaço determinado: “Sou-aí: não aqui, mas aí” (8). Este trecho transcrito inicia-se com conceitos caros à geografia física, como “solo”, “clima”, “hidrografia” e “orografia”, passando, em seguir, para um espaço mais cotidiano, e, por que não dizê-lo, mais “doméstico”, fazendo referência aos objetos que, normalmente, estão presentes nos espaços humanos: “cadeiras”, “mesas”, “estantes”; finalmente, há uma referência àquilo que poderíamos nomear, ainda que de maneira um tanto genérica, de paisagem: a “rua” e o “mar”. Não se pode esquecer, igualmente, a referência ao “meu país”, uma vez que este conceito é, no pensamento de Sartre no período por nós tratado, definido como o “lugar” específico que faz parte da condição de pertencimento ao humano, com todas as inelutáveis conseqüências: posturas, hábitos, gestos, uma língua etc. Além disto, Sartre define o “país no qual se nasceu” como o espaço da “pura contingência”, uma vez que não se trata da escolha, pela liberdade, de um determinado local, mas já é o local que nos é destinado pelo nascimento.

Pensando estas questões desde o trecho citado e desde a nossa glosa, parece não haver dúvidas de que o espaço é uma categoria filosófica nada desprezível no pensamento de Sartre; mas parece, igualmente, que ao considerarmos esta categoria no O ser e o nada não foi possível observar a emergência das noções da “Psicologia Topológica”. O nosso autor teria, então, mantido o topos e posto de lado a Topologia? Neste momento de nossa exposição seria pertinente prosseguir com a investigação do seu tratado filosófico:

É impossível que eu não tenha um lugar, caso contrário eu estaria, em relação ao mundo, em estado de sobrevôo, e o mundo, como vimos anteriormente, não iria manifestar-se de forma alguma. Além disto, embora este lugar atual possa me ter sido destinado pela minha liberdade (eu “vim” a ele), só posso ocupá-lo em função daquele que ocupava anteriormente e seguindo caminhos traçados pelos próprios objetos. (9)

Além de enfatizar a importância do espaço como uma relação com o mundo, neste trecho o nosso autor faz uma clara referência aos tais “caminhos”. O lugar, não se deve esquecer, é formado por caminhos, na medida mesmo em que estes são a condição da sua acessibilidade – e se se vai de lugar em lugar, ocupando-os sucessivamente, isto somente é possível porque, justamente, há caminhos. Todavia, como seria de se esperar, se há caminhos também há os –; inevitáveis, hélas –; obstáculos: “É somente no ato pelo qual a liberdade descobriu a facticidade e captou-a como lugar que este lugar assim definido manifesta-se como entrave aos meus desejos, como obstáculos.” (10). Como ilustração, Sartre discorre sobre um possível revolucionário francês que, tendo visto ser frustrado o seu projeto político em seu próprio país, resolve emigrar; e o país de eleição, neste exemplo, é a Argentina. No entanto, ao ser indagado sobre a infinita distância que deve percorrer até o fim visado, o hipotético revolucionário responderia que, face ao seu projeto, a Argentina é tão longínqua quanto a França... Neste caso com em tantos outros, o que define a distância não é a geometria, mas a liberdade e o projeto de cada homem: “Assim, a própria liberdade cria os obstáculos de que padecemos.” (11). Como podemos observar, para o filósofo francês, a própria distância pode ser um entrave, além das mil vicissitudes possíveis que há nos caminhos que os homens percorrem, de lugar em lugar. Ora, é o próprio conceito capital da “Psicologia Topológica”, a “hodologia”, que faz a sua rentrée, quatro anos após o seu début na filosofia sartriana.  

Acima afirmamos, brevemente, que à “Psicologia Topológica” não interessava o espaço postulado pela geometria euclidiana, e, mais uma vez, encontramos um ponto de convergência entre esta disciplina e o “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre: “O espaço geométrico, ou seja, a pura reciprocidade das relações espaciais, é puro nada, como vimos.” (12). O espaço, em O ser e o nada –; que não é “geométrico” –;, é um lugar definido pelo homem e escolhido pela liberdade, mas é, igualmente, um campo pensado à maneira de Lewin e dos seus discípulos. Neste sentido, é significativo observar que o puro espaço, isto é, o espaço abstrato, não tem lugar na filosofia de Sartre, e nem sequer, aliás, recebe o pelo menos honroso estatuto de conceito: “(...) –; assim como não podemos captar o espaço salvo através dos corpos que nos informam a seu respeito, ainda que o espaço seja uma realidade singular e não um conceito –; (...)” (13). Ou seja, se o “meu lugar” é um conceito, o mesmo não pode ser dito a respeito do espaço abstrato ou geométrico.

Mas este tema não se encerra aqui, posto que há outras páginas que, como o sub-capítulo “Meu lugar”, são extremamente profícuas para a abordagem que, ora, realizamos: estamos nos referindo ao sub-capítulo intitulado “Meus arredores”. Aqui, mais uma vez, pode-se perceber como a filosofia sartriana de O ser e o nada é, no que concerne à espacialidade, tributária da “Psicologia Topológica”: “Os arredores são as coisas-utensílios que me circundam, com os seus coeficientes próprios de adversidade e utensilidade.” (14). Se Lewin utiliza os termos “repulsa” e “atração”, o filósofo francês serve-se dos conceitos de “adversidade” e utensilidade”, e que não são intrínsecos ao objetos, mas que dependeriam de cada projeto pessoal. O exemplo que nos dá o filósofo francês é bastante esclarecedor em relação ao conceito de “meus arredores” e a sua ligação com o conceito anterior, o “meu lugar”. Alguém (na realidade, neste exemplo Sartre usa a primeira pessoa do singular) precisa realizar um percurso até uma cidade vizinha e serve-se de uma bicicleta, uma escolha entre tantas outras: ir a pé, usar um veículo etc. Porém, no meio do trajeto a bicicleta tem o seu pneu furado, e isto impede, ou melhor, dificulta, a fatura do projeto. E isto não pode ser previsto, assim como o sol inclemente, os ventos contrários ou as más condições da estrada. São estes pequenos acidentes –; ou obstáculos –; que o filósofo francês subsume com o conceito de “meus arredores”. Este conceito, é importante salientar, é derivado do termo que Sartre usou em 1939 e que ele tomou de empréstimo aos alemães: o Umvelt. Cito, a este propósito, o nosso autor: “A organização sintética destes perpétuos ‘acidentes’ constitui a unidade daquilo que os alemães denominavam o meu Umvelt, e este ‘Umvelt’ só pode se revelar nos limites de um projeto livre, da escolha dos fins que sou.” (15). Ora, não são poucos os entraves e os obstáculos nos caminhos da liberdade...

Para além destes dois sub-capítulos, há toda uma literatura dos espaços a permear a escritura de O ser e o nada Por exemplo, estar em situação, isto é, estabelecer uma relação entre o real e a liberdade, é ocupar um determinado espaço. Neste caso, Sartre enfatiza que quando se deseja uma mulher deseja-a “de pé junto a uma mesa, nua em um leito ou sentada ao meu lado.” (16). Assim, impossível seria desejar uma mulher em pontos, linhas e épuras. Como podemos perceber, estamos muito longe das frias considerações de Kant a respeito do espaço como uma categoria da sensibilidade...

Mas este não é o único exemplo que poderemos fornecer ao nosso leitor e nem sequer é o mais elucidativo. No sub-capítulo intitulado “Meu próximo”, no qual Sartre explica, justamente, a relação do Para-si com o Outro, encontramos toda uma referência ao urbano: “Pensemos, por exemplo, na inumerável quantidade de significações independentes de minha escolha e que descubro se vivo em uma cidade: ruas, casas, lojas, bondes e ônibus, sinais de direção, ruídos de aviso, música de rádio, etc.” (17). Ora, quem vive em uma cidade sabe muito bem o múltiplo e a diversidade que o “etc” escrito por nosso autor pode significar... De qualquer sorte, o interessante neste trecho é a afirmação das profundas conseqüências da vida urbana, um mundo, segundo Sartre, “infestado pelo meu próximo” (18); neste caso, em cada esquina esconde-se o outro, em cada rua esgueira-se um acidente, um encontro fortuito, a visão do casual. A cidade é um mundo, ainda segundo o filósofo francês, dotado de significações que não conferimos e que, paradoxalmente, são nossas: sabemos diferenciar uma casa de uma loja, um prédio de apartamentos de um outro comercial (claro, desde que não tenham sido projetados por Mies van der Rhoe), como sabemos, ainda, o que os sinais que regulamentam o tráfico de veículos e pedestres significam (porém, é impossível não escrever sobre a ironia de que Barthes, grande semiólogo, tenha morrido atropelado em uma rua de Paris). Nas cidades estamos todo o tempo conscientes destas significações e a estas, de bom ou mau grado, nos submetemos: atravessamos a rua na faixa de pedestres, paramos o veículo quando no semáforo a luz vermelha acende etc. Para Sartre, isto indica um “coeficiente propriamente humano de adversidade”; não se trata mais do sol e do vento, e nem de um pneu furado, mas do mundo –; urbano –; que nós próprios criamos.

3. Últimas considerações

Para concluir o nosso artigo um pequeno adendo, cuja explicitação permitirá uma melhor compreensão do nosso tema, e este adendo apresenta a questão posta por Sartre sobre a fragilidade em geral, e, especificamente, sobre a fragilidade das cidades:

Que é a fragilidade senão certa probabilidade de não-ser para um ser em circunstâncias determinadas? Um ser é frágil se traz em seu ser uma possibilidade definida de não-ser. (...) É assim o homem que torna as cidades destrutíveis, precisamente porque as coloca como frágeis e preciosas e toma um conjunto de medidas de proteção quanto a elas. (19)

Este trecho, da maneira como foi por nós transcrito, parece estranhamente ambíguo, afinal, as medidas de proteção não seriam, justamente, para tornar as cidades indestrutíveis? No entanto, esta outra afirmação do nosso autor dirime as eventuais dúvidas: “Um ser é frágil se traz em seu ser uma possibilidade de não ser.” (20). Assim, percebe-se com clareza que as medidas de proteção inscrevem em todo o objeto a sua possibilidade de destruição, isto é, de não ser. Uma cidade romana em ruínas, seja Ostia ou Pompéia, tem a sua condição de fragilidade inscrita, e medidas de proteção, contra atos de vandalismo ou desmoronamento, são tomadas. No entanto, estas cidades são ruínas e devem ser protegidas desde o momento em que são escavadas e ganham o estatuto de monumentos; apenas a partir da compreensão coletiva da sua importância histórica é que estas ruínas são frágeis, antes, nada eram, e, a este título, não poderiam não ser. Dito de outra maneira, é pelo ser que o nada vem ao mundo.

Esta questão é importante porque um dos ensaios de Sartre aludido por nós no capítulo introdutório tem o título, como já escrevemos, de New York cidade colonial, e com este título o nosso autor estava se referindo, justamente, ao caráter de fragilidade desta cidade, isto é, a sua permanente possibilidade de não ser. Não devemos esquecer, igualmente, que Sartre escreveu este ensaio durante a Segunda Guerra Mundial, e a possibilidade da destruição de cidades era já um fato, e ele alude a isto: “E o sentido primeiro e a razão da guerra acham-se contidos mesmo na menor das construções humanas.” (21)

Como conclusão, seria importante responder, ainda que brevemente, a questão posta no capítulo introdutório, isto é, a importância do espaço –; doméstico, urbano etc –; no pensamento de Sartre. Ora, o nosso estudo permite concluir que, se o espaço não é um conceito fundamental no seu pensamento, como o são a liberdade, o ser e o nada, ainda assim tem um papel importante, como atestam as citações de dois dos seus livros aqui elencadas.

notas

1
A este respeito ver: LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. “Imago Mundi: a escritura do mundo –; as cidades norte-americanas sob o olhar de Jean-Paul Sartre” em Risco. Revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo. nº. 7, primeiro semestre de 2008.

2
SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Trad.: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 62.

3
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 68.

4
A este respeito, ver: BESSE, Jean-Marc. “Quatre notes conjointes sur l’introduction de l’hodologie dans la pensée contemporaine” em Les carnets du paysage, nº 11, 2004, p. 26-33.

5
BESSE, Jean-Marc. Op. Cit., p. 3. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Sartre souligne surtout l’aspect spaciale de la situation humaine. Ma relation au monde est d’abord de proximité etde distance: les choses se découvrent et se définissent pour moi comme étant à une certe distance de moi.”

6
HALPERN, Joseph. “Sartre’s enclosed space” em Yale French Studies. nº. 57, Locus: Sapace, Landscape, Décor in Modern French Fiction, 1979, p. 58. Tradução nossa do Inglês para o Português. No original lê-se: “Nothing is more consistent in Sartre’s fiction than use of decor as an active signifying element of composition.”

7
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 602. Consultamos, igualmente, a seguinte edição francesa: L’être et le néant. Paris: Gallimard, 2008.

8
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 604.

9
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 602.

10
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 608.

11
Idem

12
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 604.

13
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 694.

14
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 619.

15
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 620.

16
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 490 – destaques do autor.

17
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 627.

18
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 626.

19
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 49.

20
Idem

21
Idem

referências

BESSE, Jean-Marc. “Quatre notes conjointes sur l’introduction de l’hodologie dans la pensée contemporaine” em Les carnets du paysage, nº 11, 2004.

HALPERN, Joseph. “Sartre’s enclosed space” em Yale French Studies. nº. 57, Locus: Space, Landscape, Décor in Modern French Fiction, 1979.

LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. “Imago Mundi: a escritura do mundo –; as cidades norte-americanas sob o olhar de Jean-Paul Sartre” em Risco. Revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo. nº. 7, primeiro semestre de 2008.

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Trad.: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997.

SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amérique – New York, ville coloniale – Venise de ma fenêtre. Paris: Editions du patrimoine, 2002.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. Professor Assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá

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