“Como responsável pelo projeto do Museu e pelo projeto do cavalete de cristal (porque é um cavalete e um quadro nasce no ar, num cavalete) com painel didático, para a exposição dos quadros, quero esclarecer que no projeto do Museu foi minha intenção destruir a aura que sempre circunda um museu, apresentar a obra de arte como trabalho, como profecia de um trabalho ao alcance de todos.” (Lina Bo Bardi) (1) (2)
O Museu de Arte de São Paulo (Masp) foi concebido e implantado como um museu transparente, visualmente aberto para a cidade através das faces de vidro de seu prisma suspenso. Tanto a museografia, os suportes de vidro temperado, quanto o bloco superior do edifício, vedado com fachadas de vidro inteiramente transparente, foram criados pela mesma autora, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (3) dentro de uma concepção de dessacralização da obra de arte. Este texto discute o papel desse museu transparente para a cultura brasileira na segunda metade do Séc. XX e a atualidade de sua concepção.
O museu como centro de renovação cultural
O atual edifício conhecido internacionalmente pelo seu enorme vão em concreto armado é a segunda sede do museu criado por Pietro Maria Bardi (4) e Lina Bo Bardi em 1947 sob os auspícios de Assis Chateaubriand, empresário do ramo de comunicações (jornal, rádio e televisão). A primeira sede foi instalada nos dois primeiros andares do edifício do jornal Diários Associados, situado na região central de São Paulo, à rua 7 de Abril. Lina Bo adaptou os andares para receber além da pinacoteca e das salas de exposições temporárias, auditórios e salas de aula.
A intenção dos promotores foi que ele se constituísse em um centro cultural catalisador das várias correntes engajadas na promoção da arquitetura e da arte moderna em São Paulo.
Naqueles anos, o museu constituiu-se em pólo de um audacioso projeto cultural moderno em uma cidade ainda provinciana, mas que rapidamente se tornava o maior e mais poderoso centro industrial da América do Sul: museu de arte – o Masp – revista de arte, arquitetura e cultura (Habitat), escola de arte e desenho industrial (Instituto de Arte Contemporânea - IAC), presença contundente na mídia (o jornal Diários Associados e a primeira televisão brasileira – TV Tupi) e projetos arquitetônicos provocadores – a começar pelo museu e pela transparência da sua própria residência no Morumbi – compunham a estratégia do casal Bardi para ultrapassar os limites conservadores da época.
A história da década de 1950 demonstra que esse plano teve sucesso em atrair uma parte dos principais agentes de modernização paulistanos. Lecionaram no IAC e freqüentavam o Masp os arquitetos Rino Levi, Oswaldo Bratke, Eduardo Kneese de Melo, Jacob Ruchti, artistas como Lasar Segall, Elizabeth Nobling e o paisagista Roberto Burle Marx entre outros personagens que já apresentavam anos de combate pela arte e arquitetura moderna em São Paulo. Outro pólo equivalente se formaria a partir do industrial Cecílio Matarazzo, opositor político de Chateaubriand (patrono dos Bardi), que fomentaria o Museu de Arte Moderna e a Bienal Internacional de São Paulo. Com esses dois pólos conflitantes, São Paulo conquista um lugar entre os centros internacionais de debate, circulação e produção cultural do período.
A estratégia do casal Bardi envolvia uma avaliação cuidadosa sobre o impacto que o acervo do Masp teria na cultura brasileira. A principal preocupação estava em que a grande quantidade de quadros e esculturas dos mais variados períodos históricos reforçasse o conservadorismo cultural paulista no embate com as novas gerações modernas. Indo além, vislumbram a possibilidade que o repentino contato com vários séculos de arte européia, apresentada no Brasil pela primeira vez em grande escala, gerasse um outro olhar e contribuísse para o florescimento de uma nova cultura. A concepção das exposições tinha importância tática para esse objetivo. Pretendia-se oferecer ao “espectador a observação pura e desprevenida”, sem preconceitos que destaquem esta ou aquela obra de arte, evitando a reprodução automática dos valores sedimentados na Europa ao longo de séculos (5).
Afastam-se as ordens cronológicas e a hierarquia entre obras de maior e menor valor, em algumas situações chegou-se a ocultar as etiquetas de identificação para permitir um julgamento espontâneo de um olho inculto, sem vícios. Sem distanciar-se da cultura erudita, Lina Bo Bardi manifesta seu interesse pelo primitivo e popular, entendido como fonte pura de um novo começo.
“O fim do museu é o de formar uma atmosfera, uma conduta apta a criar no visitante a forma mental adaptada à compreensão da obra de arte, e nesse sentido não se faz distinção entre a obra antiga e uma obra de arte moderna. No mesmo objetivo a obra de arte não é localizada segundo um critério cronológico mas apresentada quase propositadamente no sentido de produzir um choque que desperte reações de curiosidade e de investigação” (6).
É a aposta nesse tipo de formação cultural de amplos setores sociais que anima o projeto museológico do Masp. Procurava-se evitar que as pessoas que visitassem um acervo com aquela densidade reproduzissem aqui um simulacro de cultura européia. Pelo contrário, embalados no florescimento da cultura moderna brasileira, os Bardi pretendem que essa fosse uma oportunidade de apropriação daquele patrimônio, gerando uma cultura própria, com novas possibilidades de hierarquia de valores. O Masp se implanta, portanto, como um museu de caráter formativo, onde a explicação didática não significa uma doutrinação, mas sim uma formação de sujeitos capazes de elaborar um juízo de valor estético e cultural.
A exposição era assim concebida de acordo com a estratégia de chocar (no sentido moderno) o visitante, impedindo uma fruição passiva das obras e impelindo-o a estranhar, a criar seu próprio julgamento estético, mesmo que incompatível com os valores culturais europeus. Mas a fruição não seria somente intelectiva e racional. Esperava-se criar uma “atmosfera”, ou seja, um ambiente no qual o visitante experimentaria, sem a necessidade de intelecção, um espaço arquitetônico moderno repleto de obras de arte. Dois níveis distintos de formação, sendo o segundo de maior abrangência e menor profundidade que o primeiro. Essa duplicidade pode ser melhor entendida se acompanharmos o desenvolvimento das formas expositivas na Itália do entre-guerras.
A museografia transparente
A forma expositiva escolhida para a pinacoteca e para as exposições temporárias do primeiro Masp era diretamente derivada do allestimento (7), campo experimental dos arquitetos e artistas italianos iniciado com as exposições industriais, comerciais, políticas e temáticas. Disputando um maior espaço de ação com os arquitetos acadêmicos, os arquitetos racionalistas italianos encontraram nas exposições um meio de introduzir o público leigo às qualidades estéticas dos espaços e formas modernas (8).
As grelhas tubulares usadas por Edoardo Persico em uma exposição de propaganda política na Galeria Vittorio Emanuelle em Milão (1934) inauguravam uma forma de expor na qual os planos com imagens ficavam suspensos no espaço. A leveza e a transparência dos suportes proporcionavam uma percepção simultânea e sobreposta entre os planos da figura e do fundo arquitetônico mais distanciado, gerando uma convivência possível entre testemunhos de tempos diferentes – imagens do séc. XX e a ornamentação eclética da galeria oitocentista.
Apesar da intensa utilização dessa forma expositiva nos anos seguintes, apenas em 1941 ela seria aplicada por Franco Albini em uma mostra de arte contemporânea. Em meio ao velho edifício da Academia de Brera, Albini solta os quadros no espaço das salas, estruturando-os em delgados perfis metálicos apoiados com a extremidade inferior no chão e a superior em uma grelha de cabos de aço, impedindo que eles encostassem no teto.
Ao defender a mostra nas páginas da revista Lo Stile (9), o curador Guglielmo Pacchioni ataca os defensores do “ambiente neutro” museográfico como aqueles que renunciaram a contragosto à imitação e à cópia dos estilos históricos e consideram apenas ser impossível outra homenagem “à nossa grande arte passada que não a isolar de contatos contemporâneos, como múmia em um sarcófago”. Pacchioni sublinha a necessidade de “dar sentido de atualidade” tanto à obra de um artista moderno (Il Scipione), falecido alguns anos antes, quanto ao ambiente acadêmico da Galeria de Brera. Expor uma obra de arte significa dar um valor que a leva, “seja antiga ou moderna, para um plano de atualidade” tornando-a facilmente acessível ao maior número de observadores. Argumento que aprofunda ao defender que “o modo de se aproximar à compreensão de uma sempre maior parte do público, de difundir até no povo mais humilde uma sempre maior sensibilidade pelas coisas da nossa arte não está em dar às expressões artísticas um caráter popularesco e ilustrativo da biblia pauperum, mas no abrir ao povo o caminho para saber se aproximar da obra de arte, para entender e mais, acolher com segura confidência a palavra emotiva”.
Após o final da guerra em 1945, os museus se tornam um espaço experimental para a arquitetura italiana na busca de uma nova relação entre a memória e o novo (10). A opção de instalar seus museus em edifícios de valor histórico leva, na Itália, à sobreposição do debate museográfico com o da intervenção em pré-existências. A construção de um novo olhar sobre os objetos artísticos de outros tempos acaba por se mesclar com as técnicas de restauro e reciclagem de uso. Surge assim aquilo que Vittorio Gregotti denominou de “museu interno”, que define eficientemente a experiência italiana na área de museus (11).
A museografia desenvolvida por Lina Bo Bardi na primeira sede do Masp insere-se claramente nessa linha de museu interno. Seria apenas com o projeto da segunda sede que ela ultrapassaria esses limites ao criar seu museu transparente.
O museu transparente
A segunda sede do Masp ocupa o alto do principal divisor de águas da cidade, a Avenida Paulista. Tem por um lado um remanescente de mata atlântica, o belo Parque Siqueira Campos, e por outro o início de um talvegue onde se implantou uma das principais vias radiais do Plano de Avenidas, projetado pelo engenheiro Prestes Maia em 1930, e que atravessa o espigão por um túnel em direção à sudoeste.
Essa situação especial conduz as decisões de projeto de Lina Bo Bardi ao longo dos dez anos que separam o início do projeto e sua inauguração em 1968. Por condições do termo de doação do terreno, qualquer construção deveria garantir a preservação da continuidade entre o parque e a paisagem do vale.
Surge assim o partido do edifício dividido em dois conjuntos. O primeiro assume a forma de um paralelepípedo elevado do solo e o segundo se amolda à encosta, constituindo um piso para a extensão do nível da avenida em forma de terraço. Ao longo das várias versões do projeto, as fachadas inicialmente opacas se tornam transparentes e os pórticos transversais se transformam em um sistema estrutural longitudinal, com seu enorme e característico vão livre (12).
O Masp não apresenta nenhuma reminiscência dos museus em espiral de Le Corbusier ou de Frank Loyd Wright. A transparência vem claramente pela via de Mies Van Der Rohe, com seu “Museu para uma Cidade Pequena” (1942). Em seus estudos para o “Museu à Beira do Oceano” (1951) (13), Lina Bo Bardi concebe um paralelepípedo elevado do solo por pórticos transversais, com a face voltada para o mar inteiramente transparente.
Nas perspectivas internas a autora utiliza da mesma técnica de foto-colagem de Mies para apresentar a transparência do recinto expositivo em relação à paisagem. Entretanto o desenho de Lina Bo Bardi se mantém fiel à sua formação italiana reproduzindo algumas características da pintura de De Chirico e de Sironi. Comparado ao desenho de Mies, o plano de piso assume uma proporção muito maior em relação às obras expostas e apresenta uma continuidade em perspectiva com o plano horizontal da paisagem. Ao acentuar o vazio, o espaço entre os objetos expostos, Lina recria a suspensão temporal da pintura metafísica. Na exposição representada encontram-se obras antigas e modernas, entre elas a mesma Guernica de Picasso reproduzida com destaque no desenho de Mies. Já comparece um objeto da cultura popular brasileira – uma carranca de barcos do Rio São Francisco, tema que viria a dominar suas preocupações no final daquela década.
Como o Museu à Beira do Oceano não foi construído, a arquiteta teria a oportunidade de experimentar a transparência total no projeto da sua residência, a Casa de Vidro.
Projetado e construído no mesmo ano de 1951, o salão da Casa de Vidro é concebido como um prisma elevado em relação ao terreno, vedado em três dos seus lados por painéis de vidro de laje a laje. Sem guarda-corpo ou outra proteção, o plano elevado da laje de piso oferece uma plataforma em meio à paisagem desse subúrbio rico e montanhoso de São Paulo. Para a divulgação e promoção de seu primeiro projeto edificado, a autora se faz fotografar em ângulos escolhidos para acentuar os poucos remanescentes de vegetação circundante existentes na época (14). Na disposição do mobiliário, objetos e obras de arte no salão Lina Bo Bardi experimenta as potencialidades da transparência. A justaposição entre objetos de tipo e tempos tão díspares tem ao fundo a paisagem natural. Característica que seria acentuada com o crescimento da vegetação circundante nos anos seguintes.
O projeto do segundo Masp partiu dessa situação, com duas diferenças em relação aos projetos do Museu à Beira do Oceano e da Casa de Vidro. A primeira é a maior intensidade de ocupação da pinacoteca do Masp pelas obras dispostas nos suportes de vidro que a afasta do vazio metafísico sugerido no Museu à Beira do Oceano. A segunda é que o Masp assumiu a continuidade visual e espacial com a cidade, disfarçada na Casa de Vidro pelo enfoque na vegetação.
A divisão do museu ao nível da Avenida Paulista foi radicalizada pela estrutura, resultando em uma continuidade literal do espaço do Parque Siqueira Campos e o vale através do terraço oferecido pela cobertura do bloco inferior. Este, por sua vez, se apresenta como chão, solo construído, pela sua materialidade: paredes de concreto rústico feito com formas de tábuas, piso interno de pedra goiás irregular com paginação ritmada, revestimento de peitoris externos com seixo rolado, enormes floreiras com vegetação tropical exuberante e uma sucessão de espelhos d’água em vários níveis, formando uma cascata para as águas pluviais.
A transparência dos espaços expositivos se resume à pinacoteca no segundo piso do bloco superior. No primeiro piso a área administrativa circunda uma sala para exposições temporárias, totalmente isolada do exterior. Já os espaços expositivos do bloco inferior, abertos em três faces de vidro para a cidade, eram originalmente destinados a outros usos.
O que nos interessa, portanto, para o desenvolvimento de nossos argumentos, é a concepção da pinacoteca transparente.
A radicalidade dessa proposta necessita ser analisada sob outro aspecto da trajetória de Lina Bo Bardi: seu projeto do moderno como transformação da cultura popular e não a sua destruição. É nesse projeto que poderemos encontrar o sentido pleno da sua atitude de querer destruir a aura da obra de arte para mostrá-la como “trabalho, altamente qualificado, mas trabalho; apresentado de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados” (15).
Para a arquiteta, o popular é uma fonte de autenticidade para a construção de uma cultura moderna sem frivolidades ou formalismos. A arte e a arquitetura devem estar aderidas à vida cotidiana. Ela parte da posição de Giuseppe Pagano, que em 1936 procura no povo longe das metrópoles uma reserva ética exemplar para a cultura moderna (16).
Lina Bo Bardi inicia sua procura no Brasil por São Paulo experimenta materiais, técnicas e figuratividades populares no desenho industrial realizado no Studio de Arte Palma e publica artigos em Habitat (17). Em 1958 quando o primeiro Masp entra em declínio e Pietro Bardi estabelece convênio com a Fundação Armando Álvares Penteado para transferir para lá sua pinacoteca, Lina Bo Bardi inicia sua aproximação com a Bahia (18).
Através de uma ótica antropológica, ela encontraria na cultura nordestina a reserva ética popular que procurava desde a Itália. Uma reserva permitida pela aparente estagnação econômica da região, se comparada com o acelerado desenvolvimento industrial do Sudeste. O arcaico, das várias culturas ali presentes, soma-se à essencialidade derivada da pobreza (como o aproveitamento do lixo para produção de utensílios) e aos objetos de crendices e religiões. Procura construir com esses fragmentos uma totalidade, uma civilização e sobre ela estruturar uma alternativa de futuro. Arte, cultura e reorganização da produção compõem um esboço de projeto social e político que caracteriza essa sua estadia em Salvador.
São esses os anos de desenvolvimento do projeto e da obra do Masp em São Paulo, do qual LIna participa em suas freqüentes viagens entre as duas capitais.
Se a museografia da primeira sede do Masp já procurava uma aproximação com o povo, na da segunda sede ele participa da exposição. Em uma série de fotos do interior da pinacoteca, as pessoas se misturam com os quadros e esculturas, realizando uma fusão de imagens que simboliza a aproximação desejada entre arte e vida. É como se o espaço expositivo metafísico, vazio e transcendente, das perspectivas do Museu à Beira do Oceano fosse invadida pelo povo.
Expandindo o espaço da pinacoteca para a cidade através das fachadas de vidro, essa miscigenação de imagens rompe com todas as regras consolidadas da museologia. As transparências das fachadas e dos suportes estabelecem uma continuidade entre obra de arte e vida cotidiana, que enterra de vez qualquer pretensão aurática e, conforme palavras da autora, tiram “do museu o ar de igreja que exclui” as pessoas simples.
Destacados de qualquer parede, os quadros “flutuam” num único espaço que abrange museu e cidade, gerando uma continuidade espacial e temporal entre as obras, a grande “família” citada por Aldo Van Eyk em seu elogio ao Masp (19).
Fachadas e suportes transparentes são, portanto, recursos complementares no esforço de popularização do museu. Uma popularização pedagógica, no sentido de ajudar a “despertar uma natural consciência” e, como lembra Lina Bo, “adquirir consciência é politizar-se”.
Mas era um tempo difícil para qualquer tentativa de politização da cultura. Inaugurado no início do pior período de repressão do regime militar, o Masp em sua segunda sede desempenhou um papel diferente do primeiro. As instituições culturais de qualidade começavam a se proliferar pela cidade e o museu não precisava mais cumprir o papel polarizador da década de 1950. Mesmo assim, o Masp se manteve por mais de 20 anos como espaço livre para exposições de artes plásticas e eventos inovadores de teatro e cinema.
O fim da transparência
A construção de uma arquitetura de vidro nos trópicos enfrenta as adversidades do excesso de calor e insolação. Ao longo da década de 1930, a adaptação da arquitetura moderna ao clima brasileiro foi um dos principais meios de conferir-lhe particularidades formais capazes de distingui-la do International Style. O uso em grande escala dos brise soleil corbusianos no Ministério da Educação e Saúde em 1936 tornou-se um emblema de brasilidade da arquitetura moderna do período. Uma generalização rapidamente transformada em formalismo estilístico. Em 1951 Lina alerta para o cacoete do uso indiscriminado dos brises, até mesmo em fachadas que não recebem luz solar direta, motivado pelo sucesso do “estilo moderno” (20).
A adesão plena às fachadas de vidro sem qualquer proteção faz parte da radicalidade com a qual Lina Bo Bardi quis se diferenciar em meio à Arquitetura Moderna Brasileira. O Museu à Beiro do Oceano, a Casa de Vidro e o Masp não utilizam qualquer proteção externa.
O excesso de insolação no Masp foi atenuado com o uso de ar condicionado e persianas internas (21). Entretanto, para garantir a continuidade visual da fachada de vidro, as persianas constituíam um obstáculo. Ou se protegia as obras expostas dos raios solares, ou se realizava a transparência, apesar do risco de desgaste das obras.
Essa dura opção foi administrada com cuidado enquanto Lina Bo Bardi viveu e Pietro Maria Bardi foi o presidente e curador do Masp. A morte da arquiteta em 1992 e o afastamento do seu marido um pouco depois (em função do seu estado de saúde) abriram espaço para os propositores da supressão da concepção original da pinacoteca.
Em 1996, junto com o início de uma longa obra de manutenção e ampliação da reserva técnica, foi erguido um sistema de paredes de gesso que simulavam o interior de um museu tradicional dentro do salão da pinacoteca (22). Sobre elas os quadros encontravam finalmente o fundo neutro tão ao gosto dos museólogos. As fachadas, com as persianas permanentemente fechadas, receberam externamente gigantescos out-doors das exposições programadas.
A reação de setores do meio cultural paulista foi enérgica, mas insuficiente para fazer reviver o projeto original (23). Atualmente o museu se livrou dos out-doors, mas a disposição original da pinacoteca jamais retornou. A transparência das fachadas de vidro foi eliminada em todos os ambientes expositivos, inclusive nos espaços do bloco inferior. Frente a críticas pela eliminação radical de todos os vestígios da concepção museológica de Lina Bo e Pietro Bardi, os cavaletes de vidro foram utilizados em algumas poucas exposições de forma quase caricatural. Em meio à penumbra dominante, alguns focos de luz artificial destacam quadros sobre painéis de vidro, dispostos ordenadamente sobre o novo piso de granito polido das áreas expositivas inferiores.
Por um lado, a desativação da concepção original do Masp pode ser creditada a fatores culturais. Os objetivos que a animavam dizem respeito a um outro momento histórico. Por outro, os problemas técnicos e funcionais que atingem o museu são reais e exigiriam adaptações constantes da sua arquitetura. No entanto, essas mudanças não poderiam ser feitas de maneira a tentar apagar a concepção original.
O caráter do Masp é muito forte para permitir que ele se torne o oposto daquilo para o qual foi concebido.
notas
1
Versão original do texto Museu de Arte, São Paulo, Brasilien: Das transparente Museum und die Entheiligung der Kunst, publicado como capítulo do livro STEINER, Barbara e ESCHE, Charle (Org.). Mögliche Museen (Museus Possíveis), Köln, Verlag der Buchhandlung Walther König, 2007.
2
BARDI, Lina Bo - Explicações sobre o Museu de Arte in jornal “O Estado de São Paulo”, 5/abr/1970 - Arquivo Instituto Lina Bo e P M Bardi.
3
Lina Bo Bardi (Roma 1914, – São Paulo, 1992). Formada em 1939 pela Faculdade de Arquitetura de Roma, trabalhou nas revistas Lo Stile, Domus e A entre 1941 e 1946, quando casa-se com Pietro Maria Bardi, vindo em seguida para o Brasil, onde se naturaliza em 1951. Cfr. FERRAZ, Marcelo (org.) – Lina Bo Bardi, São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993; OLIVEIRA, Olívia – Concerning Lina Bo Bardi, in Lina Bo Bardi, Built Works, Revista 2G, Barcelona, 2001, n.23-24; OLIVEIRA, Olívia – Lina Bo Bardi, Sutis Substâncias da Arquitetura, São Paulo, Editora Romano Guerra/Gustavo Gili, 2006.
4
Pietro Maria Bardi (La Spezia, 1901 – São Paulo, 1999), militante da arte e arquitetura moderna na Itália, participou da organização das duas exposições de Arquitetura Racionalista, dirigindo a seguir a revista Quadrante. Após o final da II Guerra veio ao Brasil onde montou o Masp. Cfr. TENTORI, Francesco. P. M. Bardi, Milano, Mazzotta, 1990.
5
BARDI, Lina Bo, O Museu de Arte de São Paulo – Função Social dos Museus, in Habitat, no. 1, out/dez-1950,p.17.
6
Idem, Ibdem.
7
A tradução literal para o português é montagem, que não corresponde à densidade do significado do original italiano. Usualmente se traduz para o inglês como exhibition design.
8
Cfr. HUBER, Antonella - Il Museo italiano, Milano, Lybra, 1997; IRACE, Fulvio – Il luogo delle muse. Arte e architettura nello stile museale di Franco Albini e Carlo Scarpa, in Esporre, Domus Dossier, n. 5, abr/1997, pp. 7-14.
9
PACCHIONI, Guglielmo – Per una moderna presentazione delle opere d’arte, in Lo Stile . 3, mar/1941, p.4 e 5.
10
Cf. TAFURI, Manfredo – Storia dell’Architettura Italiana – 1944-1985, Milano, Einaudi, 1986, pg. 41.
11
Cf. GREGOTTI, Vittorio – Il território museo, in Casabella n. 574, dez/1990.
12
Apesar da aparência de pórtico, a estrutura é formada por quatro grandes vigas de concreto protendido. O sistema utilizado foi desenvolvido e patenteado pelo Eng. Figueiredo Ferraz.
13
O museu foi projetado na praia da cidade de São Vicente e não foi construído. Cfr. BARDI, Lina Bo, Museu à Beira do Oceano, Habitat, São Paulo, n. 8, e BARDI, Lina Bo. Museu de Arte di San Paolo del Brasile, in L’Architettura, Cronache e Storia, Roma, n. 210, abril;1973.
14
A Casa de Vidro foi a primeira construção do bairro Real Parque na região do Morumbi, zona sudoeste de São Paulo, implantado em uma antiga fazenda desativada. Em várias fotos de época se percebe a presença da periferia informal da cidade ao alcance da visão do seu morador, minimizadas ou ocultadas nas fotos produzidas para a divulgação da casa.
15
BARDI, Lina Bo (1970) – Op. Cit..
16
Cfr. PAGANO, G. e DANIEL, G. - Architettura rurale italiana, in Quaderni della Triennale, Milano, 1936.
17
Flávio Motta atribui a Lina vários artigos sem autoria identificada, publicados pela revista Habitat entre 1950 e 53 que tratam do tema popular. Cf. CAMPELLO, Maria de Fátima de Mello Barreto, Lina Bo Bardi – as moradas da alma, São Carlos, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Arquitetura, EESC-USP, pg.158.
18
Entre 1958 e 1965 Lina permanece longos períodos em Salvador, Bahia, primeira capital do Brasil situada na região Nordeste. Trata-se de uma região caracterizada pela seca e pelo contraste entre a riqueza da elite e pobreza intensa da maior parte da população. A Bahia é um estado brasileiro com grande presença de afro-descendentes.
19
EYCK, Aldo Van – Um dom superlativo, in FERRAZ, Marcelo (org.)- Museu de Arte de São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi/Editorial Blau, 1997.
20
HABITAT, Bela Criança, in revista Habitat, São Paulo, n. 2, jan/mar 1951, p. 3.
21
Na época da construção não havia películas de filtro ou vidros especiais capazes de conter os raios ultra-violetas e infra-vermelhos.
22
As reformas e alterações museológicas foram promovidas pelo presidente do museu, o arquiteto Júlio Neves, e pelo seu curador, o professor de história da arte Luiz Marques.
23
Entre as várias manifestações de protesto de intelectuais, artistas e arquitetos na imprensa, este autor pode participar com o artigo: ANELLI, Renato - Reforma Compromete Projeto Original do MASP, in jornal "O Estado de São Paulo", 20/06/98, p.D8.
sobre o autor
Renato Anelli é professor titular e Chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas com apoio do CNPq.