Prezados Marcelo Barbosa e Jupira Corbucci,
Li com atenção e interesse seu Drops “Concurso público de arquitetura e urbanismo – sugestões para mudanças” (1). Francamente propositiva, sua “carta aberta”, com seus nove pontos, parece mesmo bastante empenhada em contribuir para a mudança de um estado de coisas que, salvo engano, mais desagrada que agrada os projetistas que atuam hoje no Brasil. Mesmo sem mencioná-lo, imagino que a motivação da redação da carta se vincula, de algum modo, ao polêmico concurso para a sede da Petrobras em Vitória, Espírito Santo, do qual eu mesmo tomei parte (2).
Pessoalmente, julgo algumas das propostas oportunas, outras nem tanto. Mas não é para comentar esta ou aquela sugestão que respondo a sua carta. Escrevo-lhes porque, de um modo geral, sua carta causou-me imensa surpresa. Minha perplexidade advém de um único ponto, um ponto todavia fundamental: o crédito que a proposta dá ao IAB – entidade cuja presença em concursos públicos de arquitetura parece ser vista como uma garantia de sucesso dos mesmos (vide sobretudo sua proposta de “estabelecimento de maior proporção de membros do IAB nas comissões julgadoras, ao menos 80%”). Ora, o que eu não entendo é como sua proposta foi capaz de conceder tamanho crédito ao IAB justamente depois do concurso de Vitória. Ou alguém julga que a responsabilidade pelo insucesso, digamos, que foi esse concurso deve ser atribuído apenas ao cliente, no caso, à Petrobras?
Ora, a Petrobras é uma empresa cuja razão de ser não é velar pela qualidade da prática arquitetural brasileira. Suas relações com o universo, com o debate, com as demandas do métier da arquitetura e muito especialmente com o ofício do projeto são meramente circunstancias. Atribuir a ela, ou a seus representantes no júri, a responsabilidade pelo desfecho do concurso seria, portanto, descabido.
Quem tem, por princípio, compromisso com a “melhoria da qualidade arquitetônica e urbanística no país” é o IAB, e é ao IAB que os arquitetos (não apenas os que participam de concurso ou mesmo os que são sócios desta instituição) devem se voltar quando um concurso do qual ele participa, na qualidade de organizador, desanda; quando, conseqüentemente, a qualidade da prática da arquitetura se vê ameaçada – como parece ter sido o caso do concurso de Vitória (vide desde logo o conteúdo do recurso apresentado pelas equipes classificadas em 2o e 3o lugares) (3).
Dito isso, pergunto: onde estava o IAB durante o duradouro e penoso (eu que o diga) processo do concurso de Vitória? O que fez ele diante do descumprimento de itens claramente fixados pelo edital do concurso? O que fez diante do tom totalmente inadequado, por vezes jocoso, com que o consultor do concurso, um arquiteto indicado pelo IAB, dirigiu-se aos concorrentes? O que fez diante do conteúdo absurdo, literalmente, de algumas das respostas dadas pelo consultor às questões postas pelos concorrentes? Onde estava quando, a poucos dias da entrega das propostas, permitiu que a escala gráfica de apresentação – um dos elementos-chave da proposta, de qualquer proposta – fosse alterado, depois de reiteradas negativas a demandas feitas nesse sentido por parte dos concorrentes?
Talvez vocês tenham uma resposta para essas perguntas. Eu também tenho. Minha impressão pessoal é que o IAB não estava onde deveria estar, nem fez o que deveria fazer: não estava do lado da arquitetura; não velou pela qualidade de sua prática.
Talvez alguém diga que o concurso de Vitória foi um caso isolado. Pessoalmente, sou obrigado a admitir que não tenho conhecimento suficiente do quadro da prática de concursos de arquitetura no Brasil para avaliar se estamos ou não diante de um problema sistemático. Contudo, tenho claro na memória a experiência de um outro concurso, do qual também participei, organizado pelo IAB (salvo engano, pela Direção Nacional – concurso para a renovação da área do mercado do Ver-o-Peso, em Belém, Pará), no qual, uma vez mais, o arquiteto consultor, indicado pelo IAB, propôs, a poucos dias da entrega das propostas, a mudança do formato de apresentação dos trabalhos. O que essa tentativa de mudança de regras nos custou, a mim e a João Pedro Backheuser, meu sócio, entre serviços advocatícios, trabalho, hesitação, ansiedade etc, só nós é que sabemos. Foi, em todo caso, uma briga boa, pois, à força de nosso protesto (fundamentado na jurisprudência), a organização do concurso (leia-se, o IAB) teve que voltar atrás. Não ganhamos o concurso, é verdade, mas a sensação foi e permanece sendo de vitória. O IAB não conseguiu nos derrotar – nós, os participantes, nós, os arquitetos!
Voltando ao concurso de Vitória, há ainda a questão do julgamento, e do papel de um júri formado, dentre outros, por representantes indicados pelo IAB (dentre os quais, ex-presidentes do órgão). Pois bem, como se comportaram os representantes do IAB no processo de julgamento? Deixando de lado o fato do jurado substituto (indicado pelo IAB) ter aceito, aparentemente sem grandes problemas éticos, substituir irregularmente outro membro do júri (não foi respeitado o prazo mínimo previsto no edital), e supondo que os jurados que na etapa final não acompanharam o voto da maioria em favor do projeto vencedor eram arquitetos indicados pelo IAB (trata-se de uma dedução, uma vez que esses arquitetos, não se sabe bem por que, não fizeram constar em ata seus respectivos nomes), não vejo como não considerar a participação desses jurados como temerária. Afinal, quem permitiu que um projeto caracterizado por “inconsistências quanto ao partido arquitetônico e à ocupação do sitio, com estética dispersiva e carência de unidade nas soluções estruturais” (cf. Ata do julgamento da fase final do concurso) (4) fosse classificado para a fase final do concurso não foi apenas uma parcela do júri; foi sua totalidade, aí incluídos os jurados indicados pelo IAB (e estranho imensamente que o recurso administrativo apresentado pelas equipes classificadas em 2o e 3o lugares poupe os membros que não acompanharam o voto da maioria na fase final do concurso da acusação de incongruência, incoerência e inconsistente).
Para que vencesse o concurso a “inconsistente” (a terminologia é do júri) proposta número 16 teve, antes – perdoem-me o truísmo –, que passar à fase final do concurso, e ela não fez isso amparada por alguma força misteriosa. Chegou lá (até onde pude perceber, com a mesma implantação, o mesmo partido e a mesma estética com os quais, afinal de contas, sagrou-se vencedora da contenda) com a chancela da totalidade dos jurados, dentre eles os jurados indicados pelo IAB (e que não se alegue que a seleção dos finalistas na primeira fase se deu por maioria de votos; afinal, dentre os “aprimoramentos” solicitados pela totalidade da comissão julgadora aos três projetos finalistas não estava nenhuma revisão de partido, de ocupação, de estética – naturalmente). A ser considerada a ata da primeira etapa do concurso, portanto, nenhum jurado viu inconsistências de fundo na proposta número 16. Ou, se viu, não julgou importante acusá-lo. (E supor que isso não teria ocorrido caso os representantes do IAB no júri não estivessem em minoria é, parece-me, colocar em dúvida a priori a própria capacidade – e assim, a pertinência – de todo e qualquer representante do IAB em júris de concursos de arquitetura).
Mas dizer que a culpa pelo resultado do concurso de Vitória é apenas do IAB é cometer uma injustiça para com esta instituição. Pois, todas as contas feitas, os responsáveis por tudo isso somos nós mesmos – os arquitetos. No que respeita especificamente ao concurso de Vitória, só posso reconhecer a minha própria responsabilidade; a responsabilidade de quem, diferentemente do que fizera no concurso de Belém, ao primeiro sinal de que o processo desandava (e eles forma muitos, vide a carta de João Pedro Backheuser) (5), não importa por que motivos, preferiu calar. Ao fazê-lo, sou obrigado a admiti-lo, endossei e legitimei o processo como um todo, seu resultado inclusive. Minhas desculpas à população de Vitória.
Minha visão pessoal sobre os concursos de arquitetura sempre foi: ruim com o IAB, pior sem o IAB. Depois do concurso de Vitória, tendo a rever este ponto de vista. O que fazer então? Abandonar tout court os concursos de arquitetura? Optar apenas por concursos internacionais? Sinceramente, não sei. Só acho que, depois do lastimável episódio de Vitória, não creio que deveríamos dar tanto crédito ao IAB. Não antes de o IAB nos dar provas suficientes de seu compromisso, não com os arquitetos (que o IAB não é sindicato), mas com a arquitetura.
Atenciosamente
notas
1
BARBOSA, Marcelo; CORBUCCI, Jupira. "Concursos Públicos de Arquitetura e Urbanismo. Sugestões para mudanças". Drops, nº 12.01. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2005 <http://www.vitruvius.com.br/drops/drops12_01.asp>.
2
Os projetos premiados no concurso podem ser conferidos na editoria Institucional do Portal Vitruvius <http://www.vitruvius.com.br/institucional/inst115/inst115.asp>.
3
O recurso está disponibilizado na editoria Institucional do Portal Vitruvius <http://www.vitruvius.com.br/institucional/inst115/inst115.asp>.
4
As Atas de Julgamento da primeira fase e da fase final do concurso estão disponibilizados na editoria Institucional do Portal Vitruvius <http://www.vitruvius.com.br/institucional/inst115/inst115.asp>.5
A carta de João Pedro Backheuser está disponibilizada na seção “Email do Leitor”, mês de agosto de 2005 <http://www.vitruvius.com.br/email/email_08_2005.asp>.
sobre o autor
Otavio Leonídio, arquiteto, Rio de Janeiro RJ.