Podemos dar por certo que a arquitetura moderna brasileira teve papel fundamental na invenção e formulação da história do nosso país. No entanto durante essa empreitada a historiografia arquitetônica acabou por cometer algumas injustiças e contribuir para a mitificação de alguns personagens, deixando outros importantes de lado, quando não esquecidos.
Entre protagonistas e esquecidos situam-se o engenheiro Rubens e o arquiteto Carlos Cascaldi, que se tornaram conhecidos sobretudo pela relação profissional com Vilanova Artigas.
Carlos foi ex-aluno de Artigas na Politécnica e posteriormente sócio em seu escritório durante toda a década de cinqüenta. Rubens, engenheiro formado pela Universidade Mackenzie, além de trabalhar com ambos foi quem possibilitou – segundo Rubens Cascaldi Filho – alguns dos projetos mais significativos realizados pela dupla – a Rodoviária de Londrina e a Garagem de Barcos Santa Paula entre outros (1).
À margem da parceria entre os três, alguns dos projetos elaborados pelos irmãos Cascaldi foram sistematicamente desconsiderados pela historiografia arquitetônica em nosso país, seja pelo protagonismo de Artigas, seja pela personalidade introspectiva de Rubens e Carlos (2). Dentre eles destacam-se pelo menos quatro residências construídas nas cidades de Itupeva, Jundiaí e Praia Grande, projetos em que transparece a influência recíproca entre Artigas e os Cascaldi:
- Sede da Fazenda Santo Antonio, Itupeva SP;
- Casa Miguel Latorre, Jundiaí SP;
- Casa de Rubens Cascaldi, Jundiaí SP;
- Casa de Praia Miguel Latorre, Praia Grande SP.
A sede da Fazenda Santo Antonio, construída na segunda metade da década de 50, de propriedade das Indústrias Andrade Latorre – hoje bastante desfigurada – foi implantada de forma a considerar ao máximo o terreno e a paisagem aonde foi inserida, aproximando-se pelo menos nesse sentido de uma linguagem wrightiana, ainda que formalmente fosse uma espécie de síntese do dilema comum à época: racionalismo e organicismo.
O filho de Rubens, hoje arquiteto, destaca a elegância alcançada a partir da estrutura:
“Era particularmente elegante, tendo duas águas de telhas de barro sobre estrutura de madeira constituída por um grande pórtico na forma de W rebaixado, com forro de madeira acompanhando internamente o volume da cobertura” (3).
Quando consideradas sua volumetria e sua implantação, a sede da Fazenda Santo Antonio assemelha-se – ainda que em partes – a outros dois projetos anteriores e com programas similares: a Casa de Francisco Matarazzo Sobrinho, de Vilanova Artigas, e a Casa Olívio Gomes, de Rino Levi.
Na mesma época, os irmãos construíram duas outras casas – a Casa Rubens Cascaldi e a Casa Miguel Latorre –, vizinhas uma da outra, inseridas na malha urbana de Jundiaí, configurando-se como respostas distintas à problemática doméstica.
A primeira delas, construída para o próprio Rubens Cascaldi em 1958, é fruto da reordenação de um projeto já iniciado e contou – ao que tudo indica – com uma menor participação de Carlos, e acabou sendo um bom exemplo do maneirismo comum à época, manipulando uma linguagem já aceita.
Porém, é na segunda casa construída e projetada em parceria por Rubens e Carlos para Miguel Latorre, cunhado de Rubens, que nos deparamos com estratégias de projeto mais próximas à gramática arquitetônica de Vilanova Artigas.
Como exemplo vale destacar principalmente a importância atribuída aos elementos de circulação, como rampas e escadas, bem como a utilização de meios níveis definidos a partir desses mesmos elementos.
Nos dois casos destacam-se pelo nível de detalhamentos e preocupação com o desenho e encaixes de pisos, guarda-corpos, luminárias, fato que as distancia das casas projetadas por Artigas a partir deste período, caracterizadas por poucos gestos e pelo protagonismo da estrutura.
A última casa a ser comentada é a casa de praia construída também no final dos anos 50 na Vila Tupy, entre Boqueirão e Cidade Ocean, município de Praia Grande.
Hoje infelizmente demolida, guardava inúmeros aspectos comuns entre Artigas e os Cascaldi, bem como o vinculo com o que se acostumou a chamar de escola carioca.
Implantada em dois volumes perpendiculares, assemelha-se à estratégia usada pela dupla Artigas e Cascaldi em Jundiaí, na casa do ex-prefeito da cidade Milton Ribeiro.
O volume principal da fachada é claramente inspirado na segunda casa de Artigas, no entanto o trabalho de meios níveis, é extrapolado para o exterior, formando um terraço que elevava os usuários do nível da calçada.
Ao constatarmos através dos projetos aqui expostos a independência (4) entre a obra dos irmãos Cascaldi e a de Vilanova Artigas, imediatamente reivindica-se que o resgate de personagens esquecidos (ou quase), seja fundamental para a compreensão do trabalho de arquitetos já consagrados e o que é mais importante; possibilitem a formulação de novas capas interpretativas, combustível necessário para a história.
Desta forma as três situações com as quais nos deparamos, a praia, o campo e a cidade, possibilitam um rico panorama da obra dos dois irmãos e revelam – ainda que através de uma analise superficial – um posicionamento diferente para cada um dos contextos enfrentados.
Essa atitude, que vincula a arquitetura ao lugar em que se insere, pode parecer simetricamente oposta à idéia de edifício genérico, ou ainda, quando pensamos a existência de uma gramática arquitetônica, em que para muitos definiu o trabalho de Artigas.
No entanto, ao colocarmos junto, três casas projetadas por Artigas e nunca construídas, pensadas para contextos semelhantes ao caso dos Irmãos Cascaldi, ou seja, a praia, a cidade e o campo. Deparamos-nos com a mesma atitude comentada anteriormente.
Sugerindo que por trás das estratégias projetuais compartilhadas pelos Cascaldi e por Artigas, esconde-se uma preocupação comum: a de pensar a casa de forma singular, considerando a especificidade de cada família e buscando resolver problemas impostos em cada situação de forma diferente.
Assumindo os riscos dessa constatação, deve-se acrescer que a esta forma de pensar – pelo menos no que diz respeito a Vilanova Artigas – se justapõe à busca por encontrar uma tipologia para a casa capaz de resolver todos os possíveis problemas. Contradição que tem em si, enorme potencial de discussão e deve ser abordada com maior atenção e precisão.
Preocupação não considerada neste ensaio, que pretende mais do que nada sublinhar o fato de que estas especulações só foram possíveis ao lembrarmos de arquitetos (quase) esquecidos.
notas
1
O arquiteto Rubens Cascaldi Filho, filho do engenheiro Rubens Cascaldi e radicado na cidade paulista de Jundiaí, nos fez longo depoimento no mês de julho de 2005, nos passando informações importantes para a redação do presente artigo.
2
Segundo Rubens Cascaldi Filho, tal introspecção pode ser tributada em parte à origem anglo-saxônica da família.
3
CASCALDI FILHO, Rubens. Depoimento concedido ao autor.
4
Ainda que como foi visto, seja inegável o dialogo entre ambas.
sobre o autor
Marcio Cotrim Cunha, arquiteto e urbanista, professor do CUBM-RP e da UNAR, doutorando pela UPC Barcelona, orientado pelo Prof. Dr. Fernando Alvarez Prozorovich.