As perguntas
Esta investigação parte de uma dúvida muito específica que, rapidamente, se viu envolvida por outra mais ampla e mais complexa.
A dúvida inicial: o que é que aconteceu com o território da Cidade Universitária de Lisboa para se tenha constituído, ao longo da sua existência, como má cicatriz urbana?
Desta seguimos para a segunda pergunta: se o território é, entre outras coisas, um somatório de ações que se vão cristalizando e estratificando, transformando-se em pegada, o que acontece para que estas realidades não dialoguem? Ou seja, que papel joga a memória na ação humana sobre o território?
Segundo Manuel de Landa a cidade constitui-se como um exoesqueleto da humanidade: estrutura mineral que nos completa, acolhendo os diversos intercâmbios externos, que nos verticaliza juntamente com o nosso próprio exoesqueleto pessoal (2). Este exoesqueleto também será, com a passagem do tempo, a possibilidade de persistência dos nossos fluxos e dinâmicas fossilizadas. Mineral feito rasto, intuição do anteriormente acontecido, marca do que sendo podemos parecer ter sido, aos olhos dos que nos sobrevivem. Logo, consolidação presente pela existência e ação do tempo sobre o território.
A Cidade Universitária de Lisboa – 1º momento
A ideia da Cidade Universitária de Lisboa surge, nos anos 1920, entre dois possíveis futuros: bairro universitários dentro da cidade consolidada ou semi‑subúrbio numa zona de futuro desenvolvimento da cidade. Por detrás estavam duas idéias opostas sobre o modo de controlar o perigo que os estudantes representavam para o regime totalitário: controlar através da absorção na cidade consolidada ou através de um suposto isolamento urbano. Alguma inércia e o acaso farão com que vingue a última possibilidade.
Dos momentos iniciais da Cidade Universitária de Lisboa permanecerão características comportamentais que se encontram em todo o processo. Mais além das opções de fundo, a fragmentação de discursos e ações atravessa o crescimento deste território. Na melhor tradição dos pequenos poderes cinzentos que caracterizam as administrações menos transparentes ou dialogantes, onde cada um governava o seu pequeno campo de ação e decisão de forma autista e afirmativa.
Como jogo de relações complexas entre quem decide e os demais autores, o processo manifestou uma falta de capacidade para ganhar consciência do que lhe foi sendo imposto e de como se auto-imaginava no futuro. Desta situação foi resultando, a cada instante, um presente sem capacidade de digerir o passado e sem energia para se imaginar no futuro, ou seja, incapaz de constituir-se como futura memória/marca na cidade e como parte efetiva da mesma cidade.
É de 1939 o desenho que o arquiteto alemão Hermann Distel (1875-?) envia de Hamburgo com uma configuração para o Hospital Escolar, com a sua pseudo-implantação e uma suposta cidade universitária para lhe dar enquadramento. Não sendo o único momento de gênese – surge uma outra linha de proposta que lhe é paralela, assinada por autores portugueses – é primeiro gesto a marcar efetivamente o território. A proposta de Distel é um desenho utópico – no sentido de sem-lugar – onde se pode intuir um forte caráter clássico e monumental e onde o eixo de simetria permite ao imenso edifício do Hospital ter como espelho uma zona destinada às práticas da educação física e que urbanamente o equilibra.
A ação exterior de Distel – perito em construções escolares – surge como resposta divorciada do tempo e do espaço em presença. Com a construção efetiva do Hospital Escola, a resposta do arquiteto alemão transformar-se-á numa imposição efetiva à realidade espaço-temporal da zona norte da cidade. A marca iniciática, não pertencendo ao universo do que principiava é, afinal, a adoção cega de um “hábito” alheio e como conseqüência produz uma futura pegada que efetivamente nunca virá a ser digerida. Assiste-se a uma autista importação de um modelo, resultando assim a implantação de uma peça de um outro sistema, sem ancoragem no problema real e sem capacidade de ancorar respostas futuras.
Obrigado a relacionar-se com esta configuração, o desenvolvimento do território universitário tem aqui o seu primeiro momento de dificuldade real em assumir o seu futuro, por impossibilidade de assumir o seu presente. A ação/hábito de Distel, acontecimento sem referência ao lugar e ao tempo, pressupõe uma repetição de soluções congeladas. Assim destituída da sua especificidade, nasce um território parco em habitabilidades potenciais. Pode‑se assistir, nesta situação, à ação do hábito contra uma ação da memória. O fio espaço/tempo perde‑se e perde a ação a sua densidade como acontecimento coletivo carregado de significado. Ou seja, a reprodução de gestos que, mais do que comportarem-se como respostas a um relato do território, funcionam como respostas cegas ao que são os vestígios em presença. Esta situação é a que encontramos no gesto fundacional: ação arquitetônica (mais do que urbana) feita hábito, como um “em lugar de” que supõe uma repetição que, segundo Paul Ricoeur “equivale ao esquecimento” (3).
A Cidade Universitária de Lisboa – 2º Momento
Passado este momento é possível encontrar, nas primeiras décadas de concretização do território da Cidade Universitária de Lisboa, uma variação do tipo de comportamento. Se antes o a-temporal e o a-espacial se encontravam paralelamente presentes no processo de intervenção no território, no segundo momento o território passa a ser superficialmente aceite como existência mas o tempo segue sem ter direito ao seu papel primordial.
A construção do imenso e cru Hospital Escolar começa em 1944, mas já desde os primeiros anos da década que era considerado uma realidade nas propostas urbanas especuladas. Ao longo de mais de três décadas estas propostas vão somando construções, edifícios que como cadáveres abandonados alguém vai deixando esquecidos no território. A relação com a cidade, com as pequenas, múltiplas e ricas realidades urbanas próximas ou com os espaços públicos vizinhos não se encontrará, de modo geral, refletido nas propostas arquitetônicas e urbanas destes anos. Exceção para a proposta de João Simões e M. Norberto Corrêa, de meados dos anos 1950, que demonstrava a intenção de se relacionar com a mancha verde do jardim do Campo Grande, rompendo o seu tecido a esta zona pública. Mas, até neste caso, a realidade resultará muito diferente e muito distante das idéias mais dialogantes do que é proposto.
A fragmentação na qual o território da Cidade Universitária de Lisboa vai resultando pode ser entendido como uma falha no processo de digestão da herança. Ainda que considerando – neste segundo momento que analisamos – o construído como inevitabilidade territorial, a confrontação com este mesmo território e tempo, nas suas vertentes mais complexas, mais carregadas de informação, é esquecida.
A atenção dada ao caráter óbvio das marcas no território distrai da necessidade de gerir um processo de procura da “justa memória”. Ou seja, nunca mergulham os responsáveis dos projetos e da concretização nas entranhas da realidade em presença: há que considerar o edifício A ou B já construído sem a criação de qualquer tipo de efetivo e afetivo compromisso e relacionamento.
Avisa-nos o poeta português Herberto Hélder de que “há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento” (4). A importância do esquecimento, em permanente jogo com a memória, é de tal modo vital para a sobrevivência dos indivíduos e das sociedades que se pode dizer que a incapacidade de cumprir o luto é a perda da capacidade de seguir existindo (5). O luto pressupõe uma intensa consciência da perda que, deste modo, deixa de ancorar a experiência passada ao presente e a liberta. Libertando-a, deixa que habite tranqüilamente na sua dimensão de memória, no passado que lhe corresponde.
Por não ser libertado do passado através do processo fundamental do luto, o presente não chega a ter direito à sua existência independente. Para que este ocorra é necessário que exista primeiro uma consciência do passado como relato múltiplo e complexo e, depois, que se aprenda a viver enterrando o acontecimento passado no seu tempo passado. Aceitando assim a ausência como resposta ao haver tido/sido e ao já não ter/ser. Só assim se pode ocupar plenamente o presente, habitando-o.
Todo o relato é incompleto, toda a marca é parcial mas, abaixo de determinada capacidade de representatividade do passado, o luto perde a sua efetividade. A falta de densidade da marca resulta dum acto de não-luto: o passado não ganha direito a sê-lo, a habitar o haver sido.
No processo de desenvolvimento da Cidade Universitária de Lisboa existe, na relação dinâmica com o passado, um equívoco sistemático: uma impossibilidade de construir o presente depois de realizado o luto necessário. Este não pode ser concretizado pelo caráter epidêmico do trabalho de memória. A leitura das marcas é superficial, óbvia e incompleta. Não são parte da complexidade do acontecimento passado, mas de pequenos detalhes desse mesmo acontecimento; do passado que não é vivido na sua totalidade possível resulta uma marca ainda mais traiçoeira, pela sua incompleta dimensão.
Esta não libertação do eu (coletivo ou individual) abre a porta à persistência do passado. Ou seja, incapacidade de viver o tempo, uma falta de jogo do hoje com o ontem, do qual resulta uma ausência de presente, com a subseqüente persistência de um tempo feito tempo congelado.
A Cidade Universitária de Lisboa foi sendo ocupada com edifícios que genericamente não souberam dialogar com o território no qual intervêm. Da sua ação amnésica resultaram fragmentos autistas. Cada novo tempo de intervenção herdava mais marcas mas não a capacidade de as tratar de um modo aprofundado; caindo de adição em adição sem chegar à complexidade da cumplicidade necessária.
O passado não se transformou em passado, assim impedindo a criação de marcas que participassem no relato (arquitetônico) seguinte como matéria-prima. A partir de algumas ações fundamentais a história da Cidade Universitária de Lisboa congelou-se no passado relativo e perdeu o seu carácter de vivificação permanente.
Notas finais possíveis ou da felicidade
Diz-nos Ricoeur que o relato, com a sua função mediadora e seletiva, é o uso da memória acedida através das suas marcas (6). Através da leitura de indícios, a reflexão urbana constitui um relato que, por ser necessariamente crítico, permite a criação de condições de habitabilidade do território.
Como defendemos, na origem da Cidade Universitária de Lisboa identificamos uma situação de falta de referências mnemônicas espaço-temporais que terminou motivando o hábito como gesto fundacional. Posteriormente referimos como no seu desenvolvimento a fixação a um passado que fosse tratado como presente, com uma incapacidade ou falta de vontade de fazer o percurso doloroso de sobreviver à perda (ou o passado como perda inevitável) conformou as ações a que foi submetida.
Sabemos que outras disfunções da memória e do esquecimento poderiam ser identificadas. Por uma questão de limitações diversas dedicamos só às referidas o nosso cuidado. O que nos parece importante assinalar é que as relações entre território e memória são suficientemente ricas e importantes para merecerem a nossa atenção de investigadores. A procura de uma justa medida na memória é irmã da procura da justa medida na vida do território. Deveríamos ter presente a necessidade defendida por Ricoeur de reclamar o direito a uma “memória feliz” em igual nível de importância do direito a um território feliz como motor da ação humana. Porque, tal como na memória, no território podemos considerar que “a fidelidade ao passado não é um dado mas um desejo” (7), acrescentando que esta fidelidade não é inacessibilidade mas antes ação crítica sobre o passado territorial, assim permitindo a vivificação deste mesmo território.
notas
1
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no III Congresso Internacional “Arquitetura 3000” – La Arquitetura de la in-diferencia (jun./jul. 2004, Barcelona, Espanha), sob o título “Territorio y Olvido: La Ciudad Universitaria de Lisboa y la Memoria”, ainda por publicar.
2
LANDA, Manuel de. A Thousand Years of Nonlinear History. New York, Swerve Editions, 2000, p. 27-28.
3
RICOEUR, Paul. La Memoria, la Historia, el Olvido. Madrid, Editorial Trotta, 2003 [2000], p. 578.
4
HELDER, Herberto. Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 121.
5
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 101.
6
Idem, ibidem, p. 581.
7
Idem, ibidem, p. 644-646.
sobre o autor
Patrícia Santos Pedrosa é arquiteta pela Universidade Técnica de Lisboa, pós-graduação em História da Arte/Arquitetura pela Universidade Nova de Lisboa, doutoranda em Projetos Arquitetônicos pela Universidade Politécnica da Catalunha (Espanha).