Preâmbulos
A morte repentina de Joaquim Guedes interrompeu um diálogo vínhamos desenvolvendo com intensidade nestes últimos dois anos. Desde 2006, nossa atuação em conjunto na diretoria e conselho curador do Instituto Bardi e a proximidade de nossas residências em São Paulo nos propiciava freqüentes encontros e longas conversas. Este artigo é uma pequena sistematização dessas conversas, apenas uma delas – ocorrida no dia 26 de julho de 2007 – gravada no formato convencional de entrevista. O tema condutor é a cidade contemporânea, priorizado por mim em razão das minhas pesquisas sobre o papel das redes de mobilidade na produção urbanística em São Paulo nas décadas de 1960/70 (2).
Antes dessas conversas, assisti a suas aulas em 1991, durante meu curso doutorado na FAU USP, onde produzi uma tese sobre a obra de Rino Levi, sua arquitetura e sua concepção de cidade, defendida em 1995. Esse interesse comum foi o primeiro mote de nossa aproximação, não sendo estranho que ele tenha escrito a resenha do livro – em co-autoria com Abílio Guerra e Nelson Kon – no qual desenvolvi algumas das hipóteses da tese (3).
É exatamente por essa resenha que inicio este texto, correndo os riscos da memória fragmentada, mas evitando qualquer consideração de ordem pessoal ou política, as quais compareceram de modo absurdo e exaustivo no noticiário sobre o atropelamento que o vitimou.
Rino Levi: a arquitetura da casa e da cidade
“A melhor cidade parece ser um tecido de projetos singulares em conflito, conciliação e reinvenção permanentes, insubmissos às ideologias e geometrias simplificadoras” (4).
Com tal frase Guedes encerrava (um pouco abruptamente) a resenha do livro sobre Rino Levi. Para ele, toda ocasião era oportuna para a afirmação de seus princípios. Naquele momento afirmava, mais uma vez, a cidade como algo produzido através de processos dinâmicos e conflituosos, contrapondo-se a um certo idealismo presente em outros modos de pensar o urbano, que tem até hoje posições fortes na arquitetura brasileira. Para Guedes a cidade só seria submetida a “ideologias e geometrias” se fosse simplificada a ponto de perder a sua complexidade e destacar-se da sociedade. A cidade real é insubmissa às vontades do arquiteto, exigindo dele entender os seus conflitos e conciliar suas idéias com a sociedade real, reinventando-se permanentemente.
Na resenha de Guedes, o tema de fundo era o projeto para o concurso de Brasília do qual havia participado. Apesar da sua admiração por toda a obra de Levi e seus sócios, Roberto Cerqueira Cesar e Luiz Roberto Franco (os quais valorizava muito), minimizava a importância de seus projetos para Brasília, dos seus alojamentos para a Cidade Universitária da USP (não construídos) e para o Paço Municipal de Santo André, relacionados no livro como seus principais exemplos de cidade moderna. Entretanto valorizava a sua contribuição na elaboração de novos programas em uma arquitetura que atuava efetivamente na modernização da cidade de São Paulo. Afirma que Rino Levi e seus sócios “deram a grande lição possível sobre a cidade moderna, na inserção pontual, perfeita e conciliada das edificações urbanas” (5).
Ao enfatizar a cidade como “tecido de projetos singulares”, Guedes evocava os edifícios projetados por Levi, nos quais desenvolvera a arquitetura dos novos programas que surgiam com o enriquecimento e a sofisticação de São Paulo: cinemas, teatros, hospitais, apartamentos, escritórios, bancos, hotéis, garagens. Tais programas eram agrupados verticalmente em um único edifício ou separados em vários volumes, sendo implantados nos lotes urbanos com objetivos claros na constituição das feições cosmopolitas da metrópole que se formava.
Destacava as diferenças entre essa atuação de Levi e aquela que se tornou predominante na Arquitetura Moderna Brasileira a partir da obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Apesar de alinhar-se com Levi, sua produção apontava para novas abordagens surgidas nos debates da arquitetura do segundo pós-guerra. Por isso costumava não atribuir tanta importância ao projeto de Levi para o concurso de Brasília, com suas mega-estruturas de 300m de altura por 400 de comprimento, que considerava como “pura pesquisa”, quase uma provocação.
A proposta para Brasília
Com pouco mais de dois anos de formado Joaquim Guedes também participou do concurso de projetos para Brasília elaborando uma proposta altamente inovadora. Formou uma equipe com sua esposa Liliana Guedes, Domingos Teodoro de Azevedo (ambos seus companheiros na SAGMACS do padre Lebret) e Carlos Milan, formado alguns anos antes e que o havia acolhido em seu escritório em 1955. Dispostos a pesquisar profundamente as concepções em debate nos CIAM e portadores de um rico instrumental teórico para a análise da sociedade, a proposta da equipe logo revelou contradições com o edital do concurso.
Guedes considerava que a primeira contradição seria a noção de cidade com crescimento limitado:
“era um absurdo querer limitar a cidade. Porque, ou ela teria energia e pressão para crescer, e ninguém seguraria, ou ela nem chegaria lá. Nos demos conta de que a população inicial de empregados federais, mais escola, mais abastecimento, mais transporte, mais hospitais e saúde, chegava a quinhentos mil habitantes. Como é que pode? Fica rígida? Não cresce mais? Então pensamos: isso é um organismo vivo, ninguém segura. Essa frase: ‘a cidade é um organismo vivo’ passou. É como uma criança, uma estrutura capaz de crescer” (6).
Não era apenas contra as limitações do crescimento da cidade previstas no edital que a equipe se insurgia. A cidade poli-nuclear formada por unidades de vizinhança era contraposta a uma estrutura urbana linear, que cresceria modularmente ao longo da linha de transporte rápido de massas.
A semelhança da proposta da equipe de Guedes com o plano para Londres do MARS (7) de 1938 – que organizava a cidade ao longo de linhas férreas de transportes de massa – aponta para a atenção destes arquitetos paulista ao debate inglês do pós-guerra. Em 1957 já se buscava alternativas à diluição da urbanidade decorrente da baixa densidade implantada pelo plano de Abercrombie (1944) em Londres e na rede de new towns (8). Coerente com essas concepções que relacionavam a riqueza da vida urbana à densidade demográfica, a equipe de Guedes propunha para Brasília um adensamento de 500 habitantes por hectare em módulos de 60 mil pessoas distribuídos ao longo da linha do metrô: “Era altíssima densidade, tipo Copacabana, mas com muito ar, muito mato, e tudo muito próximo da estação do metrô” (9).
Também a autonomia das unidades de vizinhança era questionada. Os serviços de cada um desses módulos deveriam localizar-se junto às estações de metrô, permitindo com isso o acesso do habitante à qualquer um deles, em qualquer ponto da rede. Contra a idéia de uma cidade poli-nuclear que simularia um conjunto de vilas auto-suficientes, propunha “tirar partido das virtudes da aglomeração. E não querer voltar a uma dispersão mais ou menos medieval, voltando às vilas, às velhas cidadezinhas, como se elas fossem a melhor condição de felicidade” (10).
O concurso para Brasília apresentava a oportunidade para se pensar São Paulo. A proposta apontava alternativas tanto ao modelo mono-nuclear e rádio-concêntrico utilizado por Prestes Maia no Plano de Avenidas de São Paulo, quanto à visão oposta da cidade poli-nuclear de Anhaia Melo, que naqueles anos ainda animava o debate paulistano sobre os modelos urbanos.
Guedes afirma que outra fonte de idéias que embasava sua proposta para Brasília foram os relatos de pessoas da equipe de Lebret que tinham feito projetos para Israel e haviam ficado fascinadas com a experiência dos kibutz. Sua equipe estabeleceu uma analogia entre o modo de vida despojado e austero dos primeiros colonos israelenses e a ocupação do Planalto Central pelos funcionários públicos federais.
A análise específica de Brasília apontava para a nova situação familiar que seria decorrente da forte presença da mulher trabalhando como funcionária pública. O modo de criar os filhos estando a mulher fora de casa o dia todo seria o ponto de conexão com a situação israelense, na qual os filhos não moravam com os pais e sim em escolas ao lado das unidades de habitação.
“A escola dava tudo para a criança, cultura, médico, comida e sono. Então as crianças passavam na escola o dia todo. Quatro horas da tarde elas vinham para casa, quando os pais voltavam do trabalho. Então essa relação pai e filhos se dava em um regime de sonho. [...] Eles só ficavam com os pais naquelas três horas de prazer entre quatro e sete da noite e depois voltavam para a escola para dormir. Nós ficamos maravilhados com isso, pois as vezes os adultos tinham um quartinho pequeno, onde nem eles conseguiam receber os filhos – recebiam em salões, em lugares em que eles conversavam, comiam. Então era toda uma sociedade em que o espaço era desenhado para uma certa condição familiar em uma certa condição de economia. [...] a disputa pelos pais naquela ‘hora dos pais’ era dura, que as crianças se agitavam, urravam, os pais jogavam bola com os filhos, liam – era um paraíso. Então eu achei que aqui poderia ser assim. Por isso a questão da criança, a creche, o ensino primário e secundário, era ao lado dos apartamentos, no nosso projeto, para dar chance para desenvolver qualquer coisa assim. Essa idéia de organização da concentração veio mais disso do que de paixão pelo prédio alto” (11).
Este relato ilustra alguns pontos importantes sobre a posição de Guedes na arquitetura e no urbanismo brasileiro. A aproximação com a realidade que ele contrapõe a um certo idealismo (formal e ideológico) que estaria presente nas correntes hegemônicas da Arquitetura Moderna Brasileira, não seria uma submissão de caráter liberal ou populista às imposições da sociedade. Guedes propõe instrumentos de interpretação da realidade para a construção de propostas que a transformem. Mas o faz sobre bases de pesquisas que ele atribui à sua experiência com Lebret e ao seu estudo da obra de Le Corbusier, com a qual teve contato através das Obras Completas, livros trazidos pela irmã de sua esposa Liliana em 1952. É natural, portanto, que faça um tributo às duas marcantes influências: “E isso tudo vinha da independência com que o Le Corbusier (também do próprio Lebret, com as análises de necessidades) nos ensinava a pensar. Sou muito grato a eles” (12).
Le Corbusier
Sua recorrência a Le Corbusier aponta para um problema de ordem historiográfica: considerando a filiação reconhecida de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ao mestre suíço, a qual Le Corbusier Joaquim Guedes estava se referindo nestes depoimentos? Uma pista pode estar na sua reflexão sobre a configuração da rua em sua proposta para Brasília: “Mas que rua é essa? A rua velha não tem mais nada a ver com essa maneira de organizar a sociedade” (13).
A rua deveria ser repensada com liberdade, como proposto por Le Corbusier, procurando conjugar a circulação com os usos e a possibilidade de encontro e convivência urbana. Para isso a análise dos fluxos que circulam pela cidade seria a base de proposição de novas modalidades de organização da arquitetura e do urbano. “O fluxo é fundamental – reitera Guedes –; a circulação, ir daqui para lá, é fundamental para o nosso trabalho, para nossa maneira de analisar o processo urbano” (14).
Dessa maneira, o planejamento dos sistemas de deslocamento na cidade ou no edifício era estratégico para dinamizar a vitalidade dessa nova sociedade. Se o sistema de metrô e pré-metrô organizava a cidade, as unidades de habitação introduziam sistemas interligados de circulação horizontal e vertical que aproveitavam a declividade do terreno: “Os prédios que colocamos, tirando partido do declive do terreno que era mais ou menos 10%, os prédios se abriam para a paisagem, e de repente a parte de cima do andar de baixo se encontrava com o piso do de cima, e aí se poderia ter ruas, parcialmente cobertas nos andares. Com comércio coisa e tal, e vendo a paisagem, enquanto se passava” (15).
Os corredores dos edifícios – verdadeiras ruas elevadas conectadas às redes viárias e de transporte de massa – remetiam ao Le Corbusier da Ville Contemporaine e das suas propostas para o Rio de Janeiro e Argel. Sistemas que seriam retomados pelos jovens arquitetos europeus do segundo pós-guerra, em seus projetos na Inglaterra e na França, tais como Cadillis e os Smithsons. Seria com essa retomada das idéias de Le Corbusier pelos jovens do Team X que Guedes estabeleceria maior proximidade, enquanto que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer estariam mais próximos do Le Corbusier da Nova Monumentalidade.
Ainda que distante quinze anos depois do concurso, seu projeto para o Conjunto Habitacional Padre Manoel da Nóbrega em Campinas sugere como esses sistemas de implantação e circulação teriam sido pensados por ele para as unidades de habitação de Brasília. Os 42 edifícios de quatro pavimentos foram implantados de modo a criar espaços abertos lineares pelos quais os fluxos de circulação se concentram e propiciam a convivência social dos moradores. Configurando ruas de pedestres, esses espaços sobreviveram ao tempo: agradáveis jardins cuidados até hoje pelos seus habitantes denotam o uso conforme projetado.
Os edifícios seguem o mesmo objetivo, as circulações internas são agradáveis espaços de encontro. Guedes as concebe abertas para o exterior, como terraços coletivos das unidades e alinhadas em apenas um dos lados dos volumes. Com essa disposição, a quantidade de 700 apartamentos do programa leva os edifícios a se tornarem delgados volumes longilíneos que serpenteiam a paisagem. O agrupamento de alguns blocos pelas circulações elevadas acentua tal linearidade, destacada pela continuidade desses balcões.
Essa disposição da planta dos edifícios condicionou o projeto interno dos apartamentos. As aberturas para a circulação são situadas em posição elevada de modo a não permitir a quem circula enxergar o interior do apartamento. Com este projeto Guedes se revelou atento às novas posições que se organizaram no Team X. A estratégia de concentração das circulações do conjunto de modo análogo a ruas é um dos pontos de coincidência com a produção inglesa. Já a dinâmica da implantação dos alvos e luminosos edifícios se deve à admiração de Guedes pela obra de Alvar Aalto e do empirismo escandinavo, muito mais difundida na historiografia de arquitetura brasileira.
Formação profissional e política
Certo dia relendo alguns dos seus textos, liguei para Guedes e perguntei-lhe diretamente se na sua formação havia tido contato com o pragmatismo de John Dewey. Sua resposta foi negativa. No seu lugar reafirmou as duas contribuições para a sua formação: o padre dominicano Louis-Joseph Lebret e seu SAGMACS (onde trabalhara como estagiário desde o início da faculdade em 1950 até 1954) e o estudo da obra de Le Corbusier. Em outra ocasião acrescentou aos dois, surpreendentemente, o contato com a obra de Bernard Rudofsky, publicada em vários artigos da revista italiana Domus em 1938, como um dos motivos da sua decisão para estudar arquitetura e não engenharia. Lembrava que Rudofsky propunha que não bastava um novo modo de construir, que era necessário pensar os novos modos de viver na sociedade moderna e esse deveria ser saudável e prazeroso (16).
Havia uma proximidade dessa preocupação de Rudofsky, que depois produziria uma série de estudos no MOMA de Nova Yorque, com as “casas para o homem novo, com muito esporte, muita saúde, muito verde”, a temática corbusiana que atraía Guedes (17). A relação entre forma arquitetônica e uso não seria uma mera racionalidade mecânica e construtiva, mas uma inserção na vida real, entendendo suas características e potencialidades.
Sobre Lebret, Guedes recordava com grande entusiasmo o seu método:
“Ele acreditava que não se podia analisar a sociedade sem se analisar graficamente, o que para nós era uma maravilha. Não tinha computador, ele comprava sempre a última máquina de calcular que saiu. Ninguém consegue pensar sem cálculo, uma obsessão por aquela tecnologia recém chegada. Mais do que a máquina de calcular em si, era essa visão do mundo que mexe, do mundo que tem fluxo, tem velocidade, aplicações e ... ‘flores’, que são os usos e desenvolvimentos que decorrem disso. Isso me marcou muito” (18).
No entanto, quando se referia à aversão de Lebret por propostas muito deslocadas da realidade, apontava para os motivos do seu afastamento: “O ético para ele era também o possível. Não era utopia. O ético era o concreto, era uma militância de resultado. Ai, em 1954, comecei a divergir dele, sai de São Paulo, fui trabalhar em Recife e em 1956 eu entro para o Partido Comunista, quando morre Stalin e sobe Krushchov” (19).
Nos anos seguintes consolida sua aproximação com Artigas, que culminaria com a sua participação, como representante do IAB-SP, no Conselho Federal de Habitação do governo João Goulart entre 1961 e 1964. Sob a direção de Franco Montoro e ao lado de Mário Henrique Simonsen, participou da elaboração de novas formas de financiamento da habitação, que viessem substituir os modos de investimentos do período, facilmente corroídos pela inflação, e a dependência dos institutos de pensões, ampliando a capacidade de ação do estado para enfrentar o déficit habitacional. Com a substituição de Montoro por Almino Afonso, o governo passa a priorizar da Reforma Agrária. Em seu depoimento, Guedes afirma que propôs ao IAB a promoção do Seminário de Habitação e Reforma Urbana, em 1963 para impedir que o trabalho do Conselho se perdesse com a mudança de prioridade política da cidade para o campo.
Ali foram elaboradas as propostas de instrumentos de planejamento urbano e de forma de gestão dos investimentos em habitação que seriam retomados pelos militares em 1964, após o golpe, na criação do BNH e do SERFHAU (20). Em seu depoimento Guedes corrobora a hipótese de aproveitamento dos estudos do Conselho e do Seminário na criação dessas duas instituições. Para isso recorre ao jurista Hely Lopes Meirelles:
“Uma precisão histórica. Havia pessoas que me acompanhavam muito. O advogado Hely Lopes Meirelles, quando eu entrei na comissão, veio ao meu escritório, com Eurico Azevedo, um especialista em direito urbano e disse: ‘Guedes, queremos participar nessa sua experiência’. Ele acompanhou muito o meu trabalho. Na virada do golpe, se encontra comigo na FAU (pertencia ao CEPEU de Anhaia Melo), veio preocupado comigo (em função do golpe) e disse que no BNH tinham usado todas aquelas idéias” (21).
A participação no Plano Urbanístico Básico de São Paulo
O grau de tensões e conflitos que o rápido crescimento das cidades brasileiras passava exigiu que algum nível de planejamento fosse realizado pelo governo militar. Com o estímulo e financiamento do SERFHAU, é sabido que foram realizados planos diretores de desenvolvimento para grande parte das cidades brasileiras. A participação dos arquitetos foi grande, mas havia diferenças em relação ao seu papel nesses trabalhos. Tratava-se não mais de uma concepção completa de planos urbanos, como estava em disputa no concurso de Brasília, mas a atuação em equipes multidisciplinares como responsáveis pelo “setor físico-territorial” (22). Havia, portanto, uma diferença entre a atuação como “coordenadores” de equipes multidisciplinares e a posição real que lhes cabia nessas ocasiões. Essa condição fica bem clara no depoimento de Guedes sobre sua participação no Plano Urbanístico Básico – PUB em 1968:
“O PUB foi um grande passo, porque foi um trabalho de grande porte, para uma metrópole, embora naquele momento São Paulo só tivesse quatro milhões de habitantes, hoje tem mais de dez, duas vezes e meia a mais. O PUB nos obrigou a pensar o todo rapidamente. Então as técnicas de análise foram pensadas ali e havia na proposta a necessidade de trabalhar pela primeira vez em uma cidade desse porte, um modelo de desenvolvimento de uso do solo ligado a modelos de transportes. Essa idéia de ligar as duas coisas e de como fazer é do Mário Laranjeira” (23).
Diretor da ASPLAN, Mário Laranjeira Mendonça havia trabalhado junto ao SAGMACS no estudo “Estrutura Urbana da Aglomeração Paulistana” (1956) e imprimiria ao PUB uma concepção de cidade que assumia positivamente a escala da gigantesca conurbação de São Paulo com as cidades vizinhas (que viria a se constituir como a atual Região Metropolitana de São Paulo). Nela as redes de mobilidade urbana seriam estratégicas para a ampliação da oferta de alternativas de emprego para a força de trabalho, de mais opções de localização da moradia e de otimização do acesso aos serviços públicos. A vida cotidiana concebida para essa metrópole baseava-se no deslocamento diário de enormes contingentes da população por distâncias gigantescas.
Desse modo, a concepção dos sistemas de transportes foi estratégica e o seu impacto na transformação e desenvolvimento da cidade deveria basear-se em análises cuidadosas. Guedes detalha, em seu depoimento, a sua contribuição para esse tema:
“A própria técnica de análise foi dando sugestões de como a coisa poderia prosseguir. Por exemplo: Nós dividíamos a cidade em vários anéis, é claro que as partes centrais eram densamente ocupadas, com lotes menores, e fomos analisando o que se passava, e na área intermediária e na área externas, com terminologias usadas pelos norte-americanos. Então, ao analisar a história da ocupação de cada um daqueles pedaços, você via onde era mais fácil, como é que era a velocidade de ocupação, e a natureza da ocupação. E como evoluía todo o sistema físico a partir daí. Então fomos transpondo o conhecimento de como se ocupa, para as áreas de fora. E ficando claro que entre isso e aquilo, o setor de transporte propunha as medidas para passagem do momento presente para o momento futuro, pensando sempre a médio e a longo prazo. Da mesma maneira que em Brasília, foi uma análise muito objetiva da realidade visível, muito mais do que visível, mas enfim, para tentar, a partir dessas reflexões, pensar algo para São Paulo” (24).
Se a escala metropolitana era assumida positivamente, o seu impacto na cidade existente era uma preocupação forte. Propondo duas redes principais de mobilidade – metrô/trens e vias expressas ultrapassando os mil e duzentos quilômetros de extensão (415 km de metrô/trens e 800 de vias expressas), ficava claro que o PUB iria destruir a cidade existente ao longo dos vinte anos seguintes. Sem essa destruição, não surgiria a nova metrópole com toda eficiência da proposta. Esse processo era familiar aos consultores norte-americanos (25), que já tinham passado por isso, mas incomodava a equipe de técnicos brasileiros, informados pela crítica às intervenções urbanas norte-americanas do segundo pós-guerra. Guedes descreve esse embate:
“Os americanos foram fantásticos. Nós éramos muito atados a certas realidades paulistas, e eles respeitavam. Por exemplo: havia bonde na Augusta, e a gente achava que isso jamais desapareceria e seria aumentado e eles achavam que tudo bem. E a gente ia caminhando juntos: então fica essa coisa atual assim, mas o sistema rápido de transporte não pode passar por aí” (26).
Desse modo o PUB adotou dois tipos diferentes de malhas para essas redes. O metrô, já em desenvolvimento pela HMD (27) seguia o traçado radial do Plano de Avenidas enquanto a rede de vias expressas aplicava o modelo das “malhas direcionais hierarquizadas”, desenvolvidas por Colin Buchanan em seu South Hampshire Study (1968). Guedes se aprofunda na relação entre essa rede e a cidade existente:
“Vai ter de ser uma malha, super-eficiente, que é feita de módulos pequenos no centro e maiores na periferia, com uma futura subdivisão e então passou a ser importante encontrar os alinhamentos desse sistema de transporte de vias expressas e de metrô, de tal maneira que a cidade atual fosse o menos possível afetada por isso. Então as vias expressas passavam pelo meio das quadras e não sobre as vias principais [...] Se passava pelo meio das quadras, perdia dois lotes aqui, dois lotes lá, mas não perdia toda a rua, não tinha de desapropriar a rua inteira, que era mais caro. Desapropriava duas casinhas e passava pelos quintais. Isso nos parecia muito engenhoso” (28).
Apesar do padrão geométrico ortogonal de referência, o estudo do traçado da malha viária estrutural decorria da análise das características físicas e das potencialidades de cada setor pelo qual ele passava. Junto com o percurso das vias, a análise da forma física dos setores sugeria possibilidades de uso:
“Nós pegávamos um setor, e nele, em relação à vizinhança, ao desenvolvimento, à especialização daquele vetor e tal, e a topografia, as condições gerais do assentamento, nós íamos localizando ali, atribuindo àquelas áreas a possibilidade de maior ocupação de indústria, de maior ocupação de serviços, de melhor para residência, de como relacionar essas três coisas, setor a setor. Levando em conta o que era possível, um longo processo. Isso era manual, era uma observação topográfica, da declividade. Você não vai colocar indústria em uma área com declividade horrorosa, mas cabem casas, habitação de renda mais alta, de baixa renda não, pelos custos (elevados). Era uma estimativa de possibilidades sem fechar – é provável que isso passe assim ou assado” (29).
Em seguida Guedes esclarece que a concentração linear, definida no PUB como os “Corredores de Atividades Múltiplas”, não seria uniformemente distribuída:
“E a partir daí, aquela malha, que sempre passava por cima ou por baixo, e desovava a população em certos pontos, nós aprendemos que ela passava a gerar origem e destino naqueles pontos, e não enquanto ela percorria o espaço. O resultado foi que a gente passou a concentrar as facilidades nos nós, de maneira que a população sempre tivesse a maior liberdade possível de escolher o seu destino” (30).
Com o abandono do PUB pela administração Paulo Maluf (1969-1971), a cidade cresceria com outras estruturas e instrumentos, ainda que a escala antecipada nesse estudo seria rapidamente atingida. Outros companheiros de Guedes teriam várias oportunidades de atuação no planejamento municipal e estadual, mas para ele não ocorreriam novas ocasiões de intervenção com essa complexidade no desenvolvimento de São Paulo.
Guedes atuaria, nos anos seguintes, na produção de planos para várias cidades, incluindo os projetos vinculados a empreendimentos produtivos, tais como Caraíba e Barcarena, entretanto as indagações metropolitanas presentes na proposta para Brasília e no PUB, nestes casos não seriam pertinentes. O seu recente retorno à atuação política, com a presidência do IAB-SP e a candidatura a vereador, revelava uma intenção de retomada do desafio de pensar e intervir em São Paulo, um projeto interrompido nas condições dramáticas de um atropelamento fatal.
notas
NE
Arquitextos nº 099 é uma homenagem ao arquiteto Joaquim Manoel Guedes Sobrinho, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e presidente licenciado do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/SP. Guedes faleceu no dia 27 de julho de 2008, após atropelamento ocorrido na cidade de São Paulo. Os artigos do número especial são os seguintes:
- NOBRE, Ana Luiza. "A dúvida de Guedes". Arquitextos n. 099. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_00.asp>.
- CAMARGO, Mônica Junqueira de. "Guedes: razão e paixão na arquitetura". Arquitextos n. 099.01. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_01.asp>.
- ANELLI, Renato. "A cidade contemporânea: uma conversa com Joaquim Guedes". Arquitextos n. 099.02. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_02.asp>.
- LUZ, Vera Santana. "Joaquim Guedes: à procura da justa medida". Arquitextos n. 099.03. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_03.asp>.
Além destes, temos ainda os seguintes artigos disponíveis sobre Joaquim Guedes no Portal Vitruvius:
- BIERRENBACH, Ana Carolina. "A Caraíba de Joaquim Guedes. A trajetória de uma cidade no sertão". Arquitextos n. 087.02. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq087/arq087_02.asp>.
- SABBAG, Haifa Yazigi. "Arquiteto Joaquim Guedes, São Paulo, Brasil". AC – Arquitetura e Crítica, n. 008. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2001 <www.vitruvius.com.br/ac/ac008/ac008_1.asp>.
E do próprio arquiteto Joaquim Guedes temos o seguinte artigo:
- GUEDES, Joaquim. "Monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura". Arquitextos n. 071.01. São Paulo, Portal Vitruvius, abr. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq071/arq071_01.asp>.
2
“Infra-estrutura urbana como estratégia urbanística (São Paulo, 1960-1986), desenvolvida no Departamento de Arquitetura e Urbanismo desde 2005, com apoio do CNPq.
3
ANELLI, Renato; GUERRA, Abílio; KON, Nelson. Rino Levi – arquitetura e cidade. São Paulo, Romano Guerra, 2001.
4
GUEDES, Joaquim. “Casa e cidade. Um mestre da moderna arquitetura brasileira”. Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, nº 86, 08/06/2002, p. 5. Atualmente acessível em www.vitruvius.com.br/resenhas/textos/resenha056.asp.
5
Idem, ibdem.
6
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
7
MARS – Modern Architecture Research, composto por Maxwell Fry, Athur Korn, Felix Samuely.
8
Plano para a Grande Londres, Patrick Abercrombie, 1944.
9
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
10
Idem, Ibidem.
11
Idem, Ibidem.
12
Idem, Ibidem.
13
Idem, Ibidem.
14
Idem, Ibidem.
15
Idem, Ibidem.
16
RUDOFSKY, Bernard. Non ci vuole un nuovo modo di costruire, ci vuole un nuovo modo di vivere. Domus, nº 123, Milão, 1938.
17
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
18
Idem, Ibidem.
19
Idem, Ibidem.
20
BONDUKI, Nabil; KOURY, Ana Paula. Das reformas de base ao BNH: as propostas do seminário de habitação e reforma urbana, in: Anais do XII Encontro Nacional da ANPUR, Belém do Pará. 2007.
21
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
22
DEÁK, Csaba. À busca das categorias da produção do espaço. Tese de Livre Docência, São Paulo, FAU-USP, 2001.
23
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
24
Idem, Ibidem.
25
Entre os consultores norte-americanos que participaram do PUB podemos destacar ao menos três nomes relacionados a algumas das características finais do plano. Francis Violich: Professor da Universidade da California, Berkeley e autor de "Cities of Latin America: Planning and Housing in the South," 1944; Louis Wetmore: Professor da Universidade de Illinois, autor do Chicago Lakefont Study e do Chicago Community Renewal Program; Calvin Hamilton: Diretor de Planejamento de Los Angeles e autor do Plano Conceitual “Los Angeles Centers”.
26
Depoimento ao autor em 26 mar. 2007.
27
HOCHTIEF, MONTREAL, DECONSULT (HMD). Metrô de São Paulo. São Paulo: Metrô, 1969, 2 v.
28
Idem, Ibidem.
29
Idem, Ibidem.
30
Idem, Ibidem.
sobre o autor
Renato Anelli é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo.