Joaquim Manoel Guedes Sobrinho foi um grande arquiteto. Sua atuação foi decisiva na conformação da arquitetura paulista da segunda metade do século XX. Sempre investigativo, projetou, ainda recém formado, obras de grande maturidade, contudo sem a elas se acomodar. Suas experiências foram sendo aperfeiçoadas projeto a projeto, num processo cumulativo que garantiu unidade ao seu trabalho, apesar da diversidade de sua produção. Não ficou restrito a nenhuma de suas descobertas, pelo contrário, sempre procurou a versatilidade, mas dentro de um obstinado rigor, que lhe permitiu explorar uma linguagem arquitetônica rica, recorrendo a vários meios expressivos: formas compactas, prismáticas e fechadas e também formas abertas, articuladas e espalhadas; concreto, tijolo, madeira, vidro e tudo o que foi possível explorar de maneira racional e econômica, que não constituísse um mero exibicionismo formal ou um desperdício.
Para ele, a beleza só poderia ser alcançada com o desenho enxuto e limpo, fruto da solução correta das necessidades. Concentrava-se na resolução das questões essenciais, onde o excesso era desnecessário e impróprio, eliminando tudo que era acessório e explorando, a fundo, os materiais nos seus atributos e no máximo de suas potencialidades. Assim, nas suas mãos, todos os detalhes construtivos se convertiam em elementos expressivos do espaço interior e determinavam o caráter da obra, numa relação única e indissociável, entre forma e conteúdo.
Dotado de uma sensível percepção espacial, Guedes sabia como tirar proveito da transparência e da luz na criação dos espaços, propondo volumes translúcidos, porém de marcante presença nas suas composições. Ágil na articulação das idéias, uma de suas maiores habilidades era pensar simultaneamente nos diversos aspectos envolvidos em toda a obra arquitetônica, equilibrando-os num todo harmônico e indissolúvel. Daí seu interesse em explorar o tratado De Re Aedificatoria do arquiteto renascentista Leone Batista Alberti, uma das suas citações mais recorrentes, especialmente o livro I, capítulo IX, sobre a origem do edifício e seu processo de conformação e sobre a relação entre arquitetura e o urbanismo. Segundo Alberti, a arquitetura contém o urbanismo, sendo ela o campo maior que abrange todas as questões que envolvem o espaço edificado: “...pois se a cidade, de acordo com a opinião dos filósofos, é nada mais que uma grande casa, e por outro lado, a casa é uma pequena cidade; porque não se pode dizer, que os componentes dessa casa são como muitas pequenas casas; tais como o pátio, o hall, o parlatório, o pórtico, e assim por diante. E o que há em cada uma delas, se omitido por descuido ou negligência, não tirará parte de sua integridade?” (2)
Dentre as suas referências, Le Corbusier e Alvar Aalto foram certamente as mais profícuas. Seduzido pelo espírito combativo e audacioso do fundador do l’Esprit Nouveau, pelas suas idéias sobre a importância da criação, como dever e responsabilidade social e histórica, Guedes se encantou pelas teorias racionalistas dos pioneiros modernos, acreditando, no auge do entusiasmo juvenil, na possibilidade de transformação da sociedade através do espaço construído. Paralelamente à construção de um espaço que atendesse às novas atividades e formas de vida, aos poucos, Guedes foi se interessando também pelo sóbrio respeito que Le Corbusier dedicava ao processo de investigação e exploração dos materiais e das técnicas construtivas. Apesar de explícitas citações de algumas obras do mestre franco-suíço, como da Capela Ronchamp, do Convento La Tourrete ou da Maison Jaoul, em momentos distintos de sua produção, interessou-lhe mais o idealismo de Le Corbusier e o seu processo de trabalho, do que as soluções formais ou as regras por ele estabelecidas. Fascinava-o, sobretudo, a intuição de Le Corbusier e o determinismo com que se lançava em desvendar a essência da arquitetura, debruçando com afinco à perscrutação de suas pesquisas sobre as técnicas, os materiais e os elementos construtivos, e com menos interesse às teorias sintetizadas nos cinco pontos da nova arquitetura. As abóbadas catalãs, o uso da série Fibonnacci como proporção, os estudos sobre as janelas como mecanismos que deveriam responder de maneira eficiente e precisa às necessidades de ventilação e iluminação, foram recorrentes campos de investigação.
Explorando as suas funções, Le Corbusier propôs o desmembramento das janelas em superfícies de claridade e de aeração, cada qual com seu dimensionamento adequado, 10% para a primeira, e 3 ou 4% para segunda. Empregando-as desde os seus primeiros projetos, Guedes não só adaptou-as as nossas condições climáticas e às exigências do nosso código de obras, como passou a articulá-las à estrutura e è volumetria.
Alvar Aalto, sem dúvida, foi sua maior descoberta. Guedes foi um dos primeiros e permaneceu entre os poucos arquitetos brasileiros a se interessar pelo trabalho do arquiteto finlandês, que lhe foi introduzido pela Storia dell’Architettura moderna, de Bruno Zevi, a qual teve acesso, ainda na escola. “Esse livro para mim foi sublime, foi com ele que descobri que meu desejo de invenção passava pela vida, pela maneira de viver” (3). Encantou-lhe, sobretudo, a disponibilidade de Aalto de pensar a arquitetura a partir dos problemas concretos da vida cotidiana, das reais necessidades de espaço e da exploração do uso dos materiais. A sua arquitetura com cor e textura, introduzindo uma nova consciência espacial, foi para Guedes uma revelação decisiva na sua formação. Abandonou desde então, o discurso corbusiano do homem abstrato, da arquitetura reformadora, a favor da arquitetura de Alvar Aalto, para quem, o homem é trabalhado no plano real, na vida cotidiana, produzindo uma arquitetura para habitar e não para revolucionar, procurando criar condições de vida em vez de impor um padrão para a vida.
Num ambiente totalmente reverente às teorias corbusianas e ao sucesso do trabalho de Oscar Niemeyer, Guedes cedo optou pela independência, preferindo percorrer caminhos alternativos, por mais constrangimento que sua atitude pudesse causar: “eu tinha uma muda admiração por aquilo, porque era inconversável” (4). A disposição de enfrentar desafios garantiu-lhe uma autonomia, que fez questão de cultivar durante sua vida. Apesar do entusiasmo que alimentou por alguns arquitetos e professores, especialmente por João Vilanova Artigas, quem admirava principalmente pela sua honestidade intelectual, como arquiteto e como homem, pela sua clara convicção política e pelo seu rebatimento nas questões da arquitetura, Guedes conseguiu traçar seu próprio caminho, à revelia do mestre. Foi importante interlocutor de Artigas para o grupo de jovens que se formava ao seu redor. “Artigas era um modelo extremamente sedutor, a figura de guerreiro, de um austero, um asceta que inspirava, realmente fascinava”. (5) Ele e Artigas mantiveram, por algum tempo, um franco diálogo com intensa troca de idéias, que foi esmaecendo conforme Guedes foi se afirmando, chegando a se distanciar completamente, mas como num acerto de vida, reencontraram-se pouco antes de Artigas falecer.
Leitor atento, culto, Guedes se dispôs a estudar arquitetura e não apenas a criar novas formas, fazendo da erudição seu grande diferencial entre os colegas. Ainda estudante, era reconhecido no meio arquitetônico daquele momento, como um jovem brilhante, conhecedor dos principais pensadores, não só, da arquitetura, mas das artes em geral. Politicamente engajado, Guedes conseguiu cedo conquistar seu espaço entre os experientes e reconhecidos profissionais.
Da admiração pela obra dos mestres Rino Levi e Roberto Cerqueira César e da sociedade com Carlos Milan, que manteve por cinco anos entre 1955-60, desenvolveu o gosto pelo detalhe, uma das fortes características de seu trabalho. Grande parte do encanto da arquitetura de Guedes procede dessa cuidadosa atenção que punha no detalhe, da sua preocupação pela textura adequada, pelos contrastes e harmonias mais disciplinados. Nos seus projetos, uma parte do detalhe nascia junto com a obra, fazendo parte da própria idéia e outros nasciam do diálogo entre o arquiteto e a obra, isto é, pelo detalhe Guedes fazia sua arquitetura. Contudo, seu sistema de detalhamento era pensado para traduzir de maneira eficiente o controle que detinha de todos os elementos que integram o espaço, e pelo qual conseguia expor, de maneira clara, a complexidade de seu processo criativo. A partir de uma representação gráfica própria, Guedes contemplava as exigências de cada setor da execução: marcenaria, carpintaria, hidráulica, elétrica, etc. Porém, o desenho de arquitetura, sempre foi para ele instrumento necessário à execução, e nunca objeto de expressão plástica do arquiteto, devendo cumprir, portanto, o papel de transmitir as ordens à construção.
Apesar da importância do detalhe no seu processo criativo, ele nunca se isolou do universo mais amplo, pelo contrário sempre cultivou uma relação absolutamente indissociável entre a arquitetura, a cidade, a edificação e o detalhe, o que justifica a desenvoltura com que trabalhava em escalas variadas com o mesmo padrão de rigor, de cidades a mobiliário. A condição de responsável pela construção da maioria de seus projetos ajudou-o a manter uma estreita relação com os canteiros de obra, que se tornaram um profícuo campo de reflexão tanto para a simplificação do processo construtivo, como para sua adaptação às necessidades humanas. Provavelmente do seu embate com os problemas construtivos tenha decorrido sua opção pelas formas ortogonais e pelas linhas retas, sendo praticamente uma exceção em seus projetos a presença de linhas curvas, apenas em caráter experimental ou pela imposição de recursos técnicos, como para atender às solicitações da acústica. Até para conseguir o efeito côncavo e convexo, Guedes se valia das linhas retas, criando-o através de uma sucessão de segmentos, num ritmo de composição até mais dinâmico do que aquele composto pela curva que, explorado concomitante às propriedades do vidro enquanto matéria e transparência, resultava em espaços e formas surpreendentes.
Dificilmente encontraremos em quaisquer dos seus projetos, decisões arbitrárias, detalhes que não tenham alguma justificação racional e funcional, pois Guedes sempre fez questão de explicitar a base conceitual que orientava o seu ato criativo, provando que para ele nada era gratuito, que cada forma tinha sua razão, que deveria estar diretamente relacionada às necessidades do dia-a-dia das atividades humanas.
Também contribuiu muito a sua formação, a convivência que desde estudante partilhou com o padre dominicano Louis Joseph Lebret, fundador, na França, do movimento Economia e Humanismo, responsável pela criação da SAGMACS – Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais – com escritórios regionais em São Paulo, Recife e Belo Horizonte, por onde passaram vários arquitetos, que depois se dispersaram por todo o país nos organismos oficiais e no setor privado. “Muita coisa que poderia me seduzir passou a me parecer desligada da realidade brasileira, descobri que não bastava fazer uma arquitetura bela” (6). Foi trabalhando com Lebret que Guedes compreendeu o papel da Filosofia, da Economia, da Sociologia e da História na atuação do arquiteto, tendo sido um excelente interlocutor da arquitetura com essas áreas do conhecimento. Participou com Lebret do estudo de desenvolvimento regional para a bacia Paraná-Uruguai e do Plano Diretor de Ourinhos. Alguns fundamentos introduzidos por Lebret para a ação do planejamento, como o trabalho multidisciplinar, o uso da estatística e da probabilidade, a análise numérica e o estudo através da representação gráfica dos fenômenos que se dão no espaço e no tempo, constituíram a base instrumental da ação urbanística de Guedes, que na década de 1970 se tornou uma de suas atividades mais intensas.
Toda e qualquer referência a Guedes nos remete imediatamente as suas obras. Difícil selecionar entre tantas e precisas lições de arquitetura, quais delas seriam as mais paradigmáticas. Suas obras, independente da época, escala ou programa, são eternas fontes de investigação. Além dos aspectos didático-arquitetônicos inerentes às casas Cunha Lima, Liliana Guedes e Ana Mariani, e ao projeto da cidade de Caraíba, essas obras me trazem a agradável lembrança do entusiasmo e emoção com que Guedes a elas se referia.
No projeto da casa Cunha Lima, de 1958, ele conseguia justificar suas decisões passo a passo, mesmo décadas depois, expondo com alegria o admirável exercício que realizou com absoluta precisão, de articular a solução estrutural a uma infinidade de detalhes, desenvolvidos numa centena de folhas de desenho. Sem a intenção de um arrojo estrutural inédito, mas, segundo o arquiteto, “a única solução possível para atender um determinado programa num terreno com aquelas características topográficas” (7), propôs, numa atitude eminentemente orgânica, um conceito estrutural inovador para a implantação em terrenos de acentuada declividade, que acabou por se constituir num paradigma para sucessivas gerações de arquitetos. O volume útil da casa, um prisma, é sustentado por quatro pilares centrais, que absorvem todos os esforços diagonais dos balanços dos pavimentos irregulares, permitindo total abertura da fachada para a melhor vista. A idéia partiu, basicamente, da estrutura de uma árvore, com seu tronco e galhos, cujo desafio era a sua implantação no desnível do terreno e a menor interferência possível da estrutura na circulação das pessoas pelo espaço. O pavimento à cota da calçada, abrigando externamente a garagem e internamente apenas um escritório, é responsável pela comunicação entre todos os outros pavimentos, localizando-se no inferior, as áreas de serviço e de estar, e no pavimento superior os dormitórios. No decorrer da obra, o terreno foi acrescido de parte do lote vizinho, o que impôs algumas modificações da planta original.
As grandes superfícies de alvenaria foram acomodadas na estrutura por meio de uma junta de dilatação, idealizada para inibir as possíveis fissuras decorrentes das dilatações distintas do concreto e da alvenaria. Essas juntas acabaram por ajudar a reforçar o contraste entre a rusticidade do concreto aparente e as superfícies brancas, dado relevante na composição plástica. Explorada dessa maneira, pela primeira vez nessa obra, a junta foi rapidamente assimilada no meio arquitetônico, passando a ser um detalhe recorrente na produção dele e dos colegas. Lançou nesse projeto suas primeiras investigações sobre as aberturas, que percorreram toda sua trajetória: a versatilidade das venezianas dos dormitórios, que ora promovem a vedação e ora servem como proteção à insolação, através de um sistema de contrapeso que permite que basculem até uma posição a 90º, e aí permanecendo estáticas, de maneira a constituírem um quebra-sol. Pensados conjuntamente à solução estrutural, os condutores de água fluviais substituíram as tradicionais calhas de zinco, incorporando-se ao seu repertório plástico, que rapidamente se popularizou na produção local, chegando a ter conotações expressionistas e mesmo decorativas, desvirtuando a proposta original.
Na casa que projetou para sua família em 1968, conhecida como residência Liliana Guedes, sua primeira mulher, depois de várias experimentações, Guedes retomou as formas mais contidas dos primeiros projetos, valendo-se dos caixilhos de madeira. Nos dez anos entre a casa Cunha Lima e esta, Guedes desenvolveu muitos projetos em levou o racionalismo construtivo às ultimas conseqüências, chegando a abolir os caixilhos, assentando o vidro no próprio concreto, em volumes complexos e fechamentos irregulares. Nesta casa, situada também num terreno de forte inclinação, o plano principal da casa foi situado à meia encosta, abaixo do nível da rua, minimizando sua presença no contexto urbano. Apoiada sobre quatro pilares, o programa se desenvolve praticamente num único plano, somente o vestiário e um depósito, no nível do terreno e a garagem e um escritório no nível da rua. Aqui o desafio maior consistiu em determinar a modulação das nervuras da laje em função das dimensões das pranchas de compensado de madeira, de modo a obter o melhor aproveitamento de material. Amplas abas de concreto aparente, de diferentes alturas e tamanhos, desenvolvidas a partir da estrutura, foram concebidas para cumprir simultaneamente a função de proteção à insolação, e de terraços, proporcionando a ampliação dos espaços internos, além de participarem com grande destaque, enquanto planos e superfícies, da composição formal.
Esses elementos, identificados como abas, esboçados enquanto idéia desde seus primeiros projetos, foram largamente utilizados, com as necessárias adaptações a cada projeto. Dimensionados segundo os materiais e as necessidades, como quebra-sol, como acesso para a manutenção dos vidros, como proteção à caixilharia, ora em concreto, em madeira ou grelha metálica, tornaram-se uma forte característica de sua arquitetura.
A casa de campo, que fez, em 1977, para a sua segunda mulher Ana Mariani, situada em Ibiúna, é uma das obras exemplares de sua incansável busca pela verdade e beleza da arquitetura. Procurando explorar a arquitetura rude enquanto matéria, o resultado foi uma delicadeza de efeitos. Sensibilizado por questões de ordem pessoal e afetiva, dedicou-se, com especial atenção e cuidado, a esse singelo projeto de apenas 130 m², de programa simples, mas num lugar de privilegiada paisagem. Numa declarada homenagem a Alvar Aalto, Guedes explorou o tijolo em todas as suas possibilidades: vedação, piso e revestimento da estrutura de concreto, que associado à cobertura em telha de fibrocimento, ao forro e caixilhos convencionais em madeira, tendo atingido o limite da sua busca pela simplicidade formal e construtiva. Uma planta em “L”, sob um telhado numa única água, que aproveita o desnível do terreno, criando um pé direito de 4m, resolve o programa de maneira simplificada. Uma grande abertura voltada para o nascente incorpora a rica paisagem à área de estar.
Guedes enfrentava seus projetos, independente da escala, como grandes desafios, de pequenas reformas a projetos urbanos, lançava-se com o mesmo afinco a responder através a arquitetura aos problemas que a sociedade lhe impunha.
Nos trabalhos de escala urbana, em que a qualidade do projetista está, sobretudo, na sua capacidade de criar condições para a que imprevisibilidade dos fatos enriqueça a vida da comunidade e não iniba manifestações que não foram completamente previsíveis na fase projetiva. Guedes com sua característica disponibilidade de enfrentar, de maneira aberta e atenta, as condicionantes do projeto, sem idéias pré-concebidas, via nas solicitações de grande complexidade, ótimas oportunidades. Os seus projetos urbanos constituem um precioso acervo para o estudo do planejamento brasileiro. Entre estudos e propostas sobre urbanismo e planejamento, há cerca de trinta trabalhos desenvolvidos no decorrer da última metade do século XX, quando o país verificou o seu maior crescimento urbano. Esses seus projetos constituem importante contribuição ao processo de urbanização e especialmente ao debate sobre a cidade brasileira: “o encontro de diversidades, as tensões e a luta pela sobrevivência é que garantem o dinamismo no processo de desenvolvimento humano. Apesar de todos os seus problemas, a cidade é a maior e mais maravilhosa criação do homem e de todas, aquela que mais diretamente o atinge e o beneficia. Fazendo cidades o homem definiu o seu espaço específico e antinatural. Criou um espaço artificial, cultural e urbano. As cidades engedram processos de invenção e produção, são a maior acumulação da cultura” (8).
Entre eles, a cidade de Caraíba, (1976) no interior da Bahia, foi um dos seus projetos mais amplos e completos, tendo sido destaque na Bienal de Santiago do Chile em 1992 como um dos oito projetos brasileiros mais importantes da década de 80. Guedes foi responsável pelo projeto urbanístico e arquitetônico, desde a sua concepção até a supervisão da execução, dessa nova cidade para a mineração de cobre, que tinha previsão de 15 000 habitantes. Além do desafio típico das company towns, que surgem abruptamente do nada, isoladas, marcadas pela forte presença de uma empresa, para Guedes, as condições geográficas e sócio-econômicas da região eram as principais condicionantes do projeto: clima hostil, 75% da população de origem rural, a maioria analfabeta, ganhando menos de três salários mínimos, vivendo num ambiente de trabalho intenso. Seu maior objetivo foi tentar vencer a segregação social e espacial inerentes a esse tipo de empreendimento.
Assim, propôs, a partir do levantamento das condições geográficas e de um estudo de conforto ambiental, a estrutura urbana: um centro, constituído de um sistema de praças intercomunicadas – seis praças centrais e seis praças periféricas – em torno das quais gravitam as demais funções urbanas, dispostas de modo que as distâncias pudessem ser vencidas pela marcha a pé. Nessa área central foram implantados os edifícios públicos e institucionais, os equipamentos do setor de recreação e os edifícios de multi-uso. Com o objetivo de quebrar a monotonia e vencer a forte insolação da região, Guedes propôs na área central edifícios de diferentes alturas, variando entre dois ou três pavimentos, com os térreos destinados ao comércio e serviços, com a ocupação recuada de modo a criar um passadiço sombreado que permitisse ao pedestre circular pela cidade protegido da forte insolação. Os andares superiores desses edifícios centrais foram previstos para apartamentos e instalações para os solteiros.
As unidades habitacionais isoladas para atender à estrutura hierárquica da companhia foram intencionalmente mescladas de forma aleatória, para evitar o segregacionismo característico desse tipo de cidade. Foram previstos lotes vagos dispersos por toda a cidade, para possibilitar a entrada de novos habitantes e de modo a não configurar, no futuro, um bairro de funcionários da empresa.
Quanto à tipologia adotada, há aqui uma experiência inédita em termos de referências: uma clara aproximação à crítica tipológica de Aldo Rossi. Guedes reinterpretou o padrão de habitação da região, propondo 10 tipos de casas unifamiliares, arquétipos da moradia sertaneja: sem recuo frontal nem lateral apenas quintal nos fundos, sem beirais, com pé-direito de 2,60m, com possibilidades de ampliação, livremente, por parte dos usuários. A execução também respeitou, dentro das possibilidades racionalistas, a tradição construtiva local: alvenaria portante reforçada, com cobertura de telhado sobre laje nas áreas internas e sobre estrutura de madeira nas áreas de circulação; paredes revestidas com argamassa, sendo as externas pintadas segundo a escolha do usuário; esquadrias, venezianas e portas em madeira; pisos externos de cimento desempenado com juntas e internos com tijolo ou ladrilho hidráulico.
Guedes teve a oportunidade de aplicar aqui todo seu repertório conceitual. Acreditando na arquitetura como uma resposta à vida, criou uma estrutura urbana que pudesse se tornar uma cidade, como ele a concebia, isto é, um organismo vivo que tivesse condições de evoluir livremente, adequando-se às necessidades de cada tempo, segundo as vontades e desejos de seus usuários.
Esses poucos exemplos brevemente aqui comentados são uma diminuta parcela do seu rico legado arquitetônico, que tem no rigor da análise dos fatores e na solução dos problemas, segundo a exploração justa da construção, os traços mais determinantes das suas formas, tendo conseguido conciliar na arquitetura, razão e paixão, aspectos que para muitos eram inconciliáveis.
Joaquim Manoel Guedes Sobrinho foi, sem dúvida, um dos principais protagonistas da arquitetura moderna brasileira, um interlocutor privilegiado da arquitetura e seu tempo.
notas
1
Nota da Autora – Este texto foi pinçado do livro: CAMARGO, Mônica Junqueira de. Joaquim Guedes. São Paulo, Cosac&Naify, 2000. Após a publicação do artigo em Arquitextos, fui lembrada pela arquiteta Ruth Verde Zein que o título deste meu texto em homenagem a Guedes, na verdade fragmentos recolhidos do livro que escrevi em 2000, é o mesmo título de um artigo seu, publicado na revista Projeto nº125, de outubro de 1989, p.108, e republicado no seu livro “O Lugar da Crítica”. Realmente não me lembrava do título deste artigo, pois se me tivesse ocorrido, o teria substituído ou pelo menos, citado. De fato, para quem conviveu com Guedes, bem sabe que Razão e Paixão são associações das mais diretas a sua obra e a sua própria maneira de ser.
Nota do Editor – Arquitextos nº 099 é uma homenagem ao arquiteto Joaquim Manoel Guedes Sobrinho, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e presidente licenciado do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/SP. Guedes faleceu no dia 27 de julho de 2008, após atropelamento ocorrido na cidade de São Paulo. Os artigos do número especial são os seguintes:
NOBRE, Ana Luiza. "A dúvida de Guedes". Arquitextos n. 099. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_00.asp>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. "Guedes: razão e paixão na arquitetura". Arquitextos n. 099.01. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_01.asp>.
ANELLI, Renato. "A cidade contemporânea: uma conversa com Joaquim Guedes". Arquitextos n. 099.02. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_02.asp>.
LUZ, Vera Santana. "Joaquim Guedes: à procura da justa medida". Arquitextos n. 099.03. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq099/arq099_03.asp>.
Além destes, temos ainda os seguintes artigos disponíveis sobre Joaquim Guedes no Portal Vitruvius:
BIERRENBACH, Ana Carolina. "A Caraíba de Joaquim Guedes. A trajetória de uma cidade no sertão". Arquitextos n. 087.02. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq087/arq087_02.asp>.
SABBAG, Haifa Yazigi. "Arquiteto Joaquim Guedes, São Paulo, Brasil". AC – Arquitetura e Crítica, n. 008. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2001 <www.vitruvius.com.br/ac/ac008/ac008_1.asp>.
E do próprio arquiteto Joaquim Guedes temos o seguinte artigo:
GUEDES, Joaquim. "Monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura". Arquitextos n. 071.01. São Paulo, Portal Vitruvius, abr. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq071/arq071_01.asp>.
2
ALBERTI, Leone Batisti. The ten books of architecture. Londres, Alec Tiranti, 1965, p. 13.
3
Depoimento à autora em 2000.
4
Depoimento à autora em 2000.
5
GUEDES SOBRINHO, Joaquim. Depoimentos / sobre arquitetura paulista. In Arquitetura e Urbanismo, n.17, abr./maio 1988, p. 59.
6
GUEDES SOBRINHO, Joaquim. Considerações sobre o desenvolvimento urbano, a propósito do Plano de Ação Integrada de Porto Velho. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU/USP, 1972, p. 152.
7
Depoimento a autora em 2000.
8
GUEDES SOBRINHO, Joaquim. Considerações sobre o desenvolvimento urbano, a propósito do Plano de Ação Integrada de Porto Velho (op. cit.), p. 176.
sobre o autor
Mônica Junqueira de Camargo é arquiteta, professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo na área de Arquitetura Contemporânea. Autora do livro Joaquim Guedes publicado pela Cosac&Naify em 2000.