“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
As coisas gastas sempre me pareceram mais importantes, como se o uso as enriquecesse, em vez de consumi-las. Já vim às lágrimas por uma poltrona que podia sobreviver. Escuto um gemido surdo dos objetos surrados, um pedido de sobrevida para salvar algum vestígio de história ou um resíduo de lembrança. Qualquer um que aprendeu a viver do cisco, da migalha, sabe encontrar proveito nas coisas abandonadas. Talvez elas tenham sido perdidas ou esquecidas. Imagino-me um restaurador de coisas importantes. Sou movido pelo que se entranha e oculta em tudo que se fora. Lembro de um verso em que o poeta mineiro dizia que de tudo, sempre fica um pouco. Aquilo me confirmava e encorajava a voltar a fazer coisas com estas mãos tão dormidas.
Principiaram a adormecer quando vendi minhas ferramentas ao entregarmos a casa. Retenho a imagem gelada da Gabi me implorando, com o olhar, para desacompanhá-la. Levava Bia, nossa flor, nosso riso e nossa vida, juntinhas, para a casa de uma tia. Bia abraçava a mãe e escondia o rosto. Fiquei sem despedida, sem Gabriela, sem Bia, sem casa e sem trabalho. Perder a casa não foi nada perto das ferramentas. Elas eram mais do que meu próprio corpo, eram o meu ofício, a minha identidade e o meu sossego. A plaina, o formão, os serrotes, as limas, os alicates, as chaves, as raspilhas, o graminho, o paquímetro, a suta, o macete e até as pedras de amolar que ganhei do pai. Penso em tudo que ficou naquelas ferramentas. Estavam nelas o que eu sabia fazer, o meu jeito de lidar com elas e com as madeiras. Meu modo de afiar, cultivado por tantos anos, de lapidá-las, como se elas fossem o espelho do melhor de mim. Com elas na mão acariciava o pensamento, descobria a arte do bem fazer. O que restou de mim em tudo que fora embora? O zelo de guardá-las ordenadas no fim do dia, o capricho nas marcações, o rigor nos encaixes, o suor impregnado nos cabos, o prazer do desbaste, as luzes refletidas no metal, os cheiros das madeiras, o som de um sorriso gravado na obra terminada. As ferramentas, as minhas meninas, a Gabi e a Bia, guardavam os meus rastros, levavam a leveza de um mundo sem dor. A solidão é ter as mãos tão dormidas.
nota
NE – Sétimo texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.