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research

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architectourism ISSN 1982-9930

Varenna, Itália. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Artigo apresenta algumas questões referentes ao processo de conclusão da basílica da Sagrada Família de Antônio Gaudí, sua relação com o turismo, seu processo de conclusão e o debate que ora se desenvolve sobre o tema em Barcelona.

english
This text present some questions regarding the process of concluding the basilica of the Sagrada Família by Antonio Gaudí, his relationship with tourism, its conclusión proces, and the debate that is being developed on this theme in Barcelona.

español
El articulo presenta algunas cuestiones referentes al processo de conclusión de la basílica de la Sagrada Familia de Gaudí, su relación con el turismo, su processo de conclusión y el debate que en ese momento se desarrolla sobre el tema en Barcelona.


how to quote

CHAVES, Celma. Gaudí, a Sagrada Familia e o turismo. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.01, Vitruvius, out. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6723>.


Durante o ano de 2015 realizei estagio pós-doutoral em Barcelona em segunda temporada, já que ali havia estado para estudos de doutorado entre 2000 e 2005. Depois do meu retorno, estive em Barcelona em mais duas ocasiões, e no momento da redação desse texto havia recém chegado à cidade. Em todos esses momentos pude estar em contato com o cotidiano da construção da agora basílica da Sagrada Família – obra inconclusa do arquiteto catalão Antoni Gaudí – especialmente por estar residindo em  edifício vizinho à praça da Sagrada Família.

No entorno imediato do templo, uma área que compreende seis quarteirões edificados e duas praças, um  movimento começa a ser orquestrado a partir das nove da manhã. É quando abrem-se as portas da basílica, construção iniciada em 1886 e com previsão de conclusão para 2026. Circulando diariamente por ruas e calçadas da área circundante à Sagrada Família, pude experimentar os impactos do turismo de massas, cada vez mais intenso e explorado nas obras de Antônio Gaudí.

Estado atual da construção
Foto Celdi Chaves

Para o turista que visite Barcelona, as ofertas de tours pelas obras do arquiteto são muitas, principalmente à Casa Milà ou La Pedrera, Casa Batlò, Park Güell e Sagrada Família. No entanto, nenhuma dessas obras apresenta o apelo imagético da obra em construção que é a Sagrada Família. E aí está um dos motivos de debates que continuam a mobilizar arquitetos, moradores e estudiosos.  Sobre esse tema são relevantes as críticas do professor da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona da Universidade Politécnica da Catalunha, Juan José Lahuerta, recentemente empossado como diretor da Cátedra Gaudí, ligada a essa mesma universidade. Este professor se pronuncia com conhecimento de causa, pois é especialista na obra do arquiteto catalão, sobre cujo tema já escreveu inúmeros livros. Diz o professor: “É um edifício gaudinista (a Sagrada Família). Mas não o que Gaudí teria construído. Há uma fraude. O único de Gaudí é a Fachada do Nascimento, que além disso é uma obra muito complicada de explicar, muito comprometida politicamente desde o primeiro momento”. Continua Lahuerta:

“Gaudí é o arquiteto moderno mais popular. É o único arquiteto do século 20 – digamos assim – que tem filas diante dos seus edifícios, ônibus com turistas diante de suas obras...E essas obras estão sofrendo uma exploração comercial que supõe um grave problema para sua conservação” (1).

Outro arquiteto e urbanista catalão, Oriol Bohigas, perguntado sobre o que opinava da decisão de se concluir o templo da Sagrada Família, respondeu: “Um monumento que me parece uma participação tremenda à incultura de Barcelona é a Sagrada Família. É uma vergonha mundial, que vamos suportando” (2).

A autora no interior da Sagrada Familia, 2015
Foto Celma Chaves

Tanto a afirmação de Bohigas  como as palavras de Lahuerta deixam explícitas o mal estar entre os arquitetos sobre a decisão de se concluir a construção da Sagrada Família. Para os moradores do entorno do templo é um incômodo diário. Os grupos de turistas ocupam os espaços de calçadas, ruas e praças dos quarteirões próximos ao edifício, cuja frequência só começa a diminuir a partir das sete da noite (em alta temporada até às oito horas) quando o templo fecha suas portas. Porém, o debate sobre as consequências estéticas e históricas da conclusão do edifício, pensado por Gaudí em uma Barcelona convulsionada pelos conflitos de classes, como um espaço para a burguesia, como bem nos explica o professor Lahuerta, não é recente (3), o próprio Bohigas já criticava a continuidade da construção do templo em 1951.

Ao presenciar o desenvolvimento da construção da basílica durante o último ano vivido em Barcelona (2015) e as recentes estadias na cidade, observo que mesmo as medidas tomadas pela prefeitura para amenizar o incômodo causado pelo intenso movimento de pessoas, parece não ter surtido os efeitos desejados. Continua a ocupação massiva dos espaços públicos, das entradas de metrôs, as calçadas dos bares, cafés e lojas.

Observando e experienciando a Sagrada Família como um viajante observador, e, no meu caso, por força do oficio, nunca como turista, todas essas questões deixaram de ser abstrações. Um ano foi tempo suficiente para observar o movimento intenso dos visitantes, a evolução contínua da construção do edifício, a contraposição escalar à quadrícula de Cerdá, e as constantes reivindicações da vizinhança para recuperar a tranquilidade do bairro, que, segundo eles, foi aniquilada com os excessos do turismo de massas. Além dessa vivência diária, os seminários e eventos que ocorreram e ocorrem na cidade sobre o tema do turismo, me forneceram elementos do debate sobre o papel da arquitetura de Gaudí para atrair mais visitantes. Atestei também o crescimento do número de visitantes, que agora se incrementou com a afluência do “turismo religioso”, depois que o edifício passou ao status de basílica com as bênçãos do papa Bento XVI em 2010.

Turistas na fachada da Paixão, 2017
Foto Celma Chaves

Não é nenhuma novidade que o turismo têm apresentado desafios constantes às cidades que ganham polpudos dividendos com a visita às suas obras mais emblemáticas, e a cidade de Barcelona, hoje juntamente com Veneza, talvez seja uma das que sofrem maior impacto dessa atividade. No caso de Barcelona, estudos  afirmam que os recursos gerados pelo turismo não são tanto como se divulga e nem tudo é investido na cidade. E mais, alertam sobre o modelo turístico que está colocando em risco a imagem de uma cidade estruturada desde as olimpíadas de 1992. Afirma-se  que a cidade estaria “morrendo de êxito”. Essas críticas partem sobretudo dos moradores das áreas onde se concentram os lugares mais visitados da cidade: Sagrada Família, Bairro “Gótico” e bairro da Barceloneta, onde se localiza uma das praias mais frequentadas no verão. Partem também de grupo de arquitetos que organizam palestras e encontros para discutir uma problemática complexa e que exige soluções consensuadas, pois são muitos os grupos que sobrevivem dessa atividade na cidade.

Durante o ano de 2015, foram vários os eventos dedicados à discussão do denominado “modelo turístico” de Barcelona questão que havia suscitado protestos mais contundentes desde o verão de 2014, quando um grupo de turistas italianos ousadamente entraram desnudos em um supermercado neste bairro. Esse foi o estopim para que os moradores intensificassem os protestos e reivindicassem mudanças efetivas nas políticas de concessão de licenças para o apartamentos turísticos e para construção de novos hotéis.

Em janeiro de 2017 a prefeita da cidade, Ada Colau decidiu suspender as licenças para construção de novos hotéis, por meio do Plano Especial Urbanístico de Alojamentos Turísticos – PEUAT, dividindo a cidade em zonas distintas onde não é permitido abrir novos hotéis, mesmo que outros fechem. A ideia é que pouco a pouco haja um decréscimo turístico principalmente no centro da cidade.

Grupos de turistas na calça do templo, 2017
Foto Celma Chaves

Até o momento isso não se fez notar. Nem no número de visitantes que a cidade recebe, e nem nas visitas à Sagrada Família. Recentemente, a prefeitura decidiu diminuir o número de mesas nas calçadas dos bares e restaurantes ao redor do templo, com a intenção de melhorar o acesso dos moradores aos edifícios onde residem. Antes disso, já havia sido proibido estacionamento de ônibus turísticos nas imediações da igreja e de filas de turistas no exterior do templo. Porém, ainda assim, multidões continuam congestionando ruas e calçadas ao seu redor.

Além da questão do turismo, coloca-se em discussão o fato de que a Sagrada Família hoje está em desacordo com a cidade contemporânea, segundo visões de vários arquitetos e urbanistas, “um estilo do passado numa cidade atual”, como disse Bohigas. Nessa mesma direção, o secretario de Urbanismo de Barcelona afirma que “se executa um projeto sem planos em nome de Gaudí e com sistemas construtivos absolutamente contraditórios com os que (Gaudí) pensou”. Diante disso, o que se pergunta é: A quem serve a conclusão da Sagrada Família? É a Sagrada Família um edifício atemporal? Estamos diante de uma polêmica que está longe de acabar. E como disse Bohigas: existem razões de cidade: a construção em um século de um edifício ao estilo de outro século ou de outros séculos, é uma barbaridade cultural evidente” (4).

Construção da fachada da Glória, principal, na Rua Mallorca, 2017
Foto Celma Chaves

É inegável que as soluções construtivas utilizadas na Sagrada Família têm seu valor e qualidade em um interior de magníficos espaços criados pela luz e cores dos vitrais, por um conjunto diversificado de formas de colunas e abóbadas, alcançados a partir dos programas e tecnologias desenvolvidas para melhor entender a geometria do arquiteto, formando um verdadeiro “bosque gaudiniano”.

Discute-se, porém, a perda da originalidade, liberdade e força do traço de Gaudí, apontados por varios estudiosos, e a pertinência de sua inserção na cidade de Barcelona da atualidade, com morfologia e gabarito já consolidados, e que, segundo alguns, a construção da Sagrada Família rompe, principalmente em altura: em 2017 suas torres alcançarão a altura de 172,5m, e se prevê que em 2020 seja o edifício mais alto de Barcelona.

Turistas no interior do templo, 2015
Foto Celma Chaves

Outro ponto do debate é o espaço existente para a construção da fachada principal do templo. Segundo proposta que faria parte do plano original de Gaudí, faz-se necessária a desapropriação dos edifícios situados à rua Mallorca para dar lugar à escalinata de acesso à fachada da Glória e a construção de um passeio que conectaria a Sagrada Família com o que era a praça das Glórias, outra importante obra que está sendo transformada em Barcelona. Porém, segundo as últimas informações, a prefeitura não priorizará a urbanização do entorno para a construção desse acesso tal e como estaria nos planos. Não se sabe que solução será dada a essa questão, pois o diálogo entre a atual administração municipal e a junta construtiva da Sagrada Família não é dos mais amigáveis.

Antes da conclusão do templo, muito pode acontecer. Porém, o certo é que os milhões de turistas continuarão a visita-lo, até que se resolvam essas questões. No momento, se conclui a primeira sacristia, enquanto as seis torres estão sendo construídas, o skyline de Barcelona ganha mais altura, e Gaudí continua a ser a grande estrela do turismo da cidade, a “gaudinona” (5).

Grupo de turistas na calçada da fachada do Nascimento, 2015
Foto Celma Chaves

notas

1
El Pais, Madri, 1 nov. 2016.

2
RODRÍGUEZ-RATA, Alexis. Oriol Bohigas: “La Sagrada Família es una vergüenza mundial”. La Vanguardia, 19 jul. 2015 <www.lavanguardia.com/cultura/20150719/54433466329/oriol-bohigas-sagrada-familia-verguenza.html>.

3
Em 1965 um grupo de arquitetos, intelectuais e artistas, entre eles Giulio Carlo Argan, Le Corbusier, Joan Miró, Nikolaus Pevsner, Bruno Zevi entre outros, escreveram uma carta-manifesto contra a continuidade da construção do Templo da Sagrada Família.

4
RODRÍGUEZ-RATA, Alexis. Op. cit.

5
Termo criado pelo arquiteto Josep Bohigas.

sobre a autora

Celma Chaves Pont Vidal é professora da Universidade Federal do Pará na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia da UFPA. Coordena o Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica, atuando principalmente nos seguintes temas: Teoria e Historiografia da Arquitetura Moderna; Cultura Arquitetônica, Modernização e História Urbana. 

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