Cheguei a Brasília em 1975, com apenas dois anos de idade. Um ano depois, em 22 de agosto de 1976, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, em cujo governo se iniciou a edificação da capital, morreu em um acidente de carro, um evento até hoje muito contestado e com interpretações controversas, algumas inclusive de caráter conspiratório.
Naturalmente, não lembro um pingo dessa história, passada na época em que eu chamava Ernesto Geisel de “vovô do Brasil”. Logo, tenho que acreditar nos relatos daqueles que me precederam. Ainda assim, não creio ser exagero afirmar que o funeral de Juscelino se incluiu entre os maiores eventos ocorridos em Brasília da década de 1970. Fotos disponíveis na internet – não reproduzidas aqui para evitar os tradicionais dramas com direitos autorais – e relatos da imprensa, ainda que censurados, demonstram a presença de dezenas de milhares de pessoas (1) em seu velório, o qual foi realizado na nave da Catedral Metropolitana. Em diversos momentos, a comoção descontrolada tomou conta da população, fazendo com que os bombeiros tivessem dificuldade para colocar a urna do ex-presidente sobre o caminhão que o levaria até o cemitério Campo da Esperança, pois a população, por diversas vezes, a tomou nas mãos aos gritos entusiasmados de “o povo leva!” (2).
Tomando-se tal grau de emoção desenfreada como referência, havia de se imaginar então que o velório de Oscar Niemeyer em 2012 poderia ser também marcado pelo alvoroço e consternação geral. Afinal, Niemeyer projetou a maioria das obras arquitetônicas pelas quais a cidade de Brasília veio a ser reconhecida no mundo (exceto o seu projeto urbanístico, cuja autoria pertence a Lucio Costa, ainda que cidadãos desinformados o atribuam erroneamente a Niemeyer com maior frequência que o desejável). A marcante vida do arquiteto carioca, à época do seu falecimento, já havia se estendido por mais de um século, e ao longo da mesma, ele havia se tornado reconhecido como um dos principais ícones da arquitetura modernista mundial. Apesar de tantas credenciais, no seu velório em Brasília naquele ano, não foi bem uma cornucópia de emoções que veio a ser observada...
Niemeyer faleceu pouco antes de completar 105 anos, na noite do dia 5 de dezembro de 2012, após permanecer internado no hospital por cerca de um mês. A presidente à época, Dilma Rousseff, telefonou para a família do arquiteto e ofereceu as dependências do Palácio do Planalto (projetado, como qualquer brasiliense aprende desde criancinha, por Oscar Niemeyer) para o velório em Brasília, uma honraria antes conferida apenas aos políticos Tancredo Neves e José Alencar.
No fim da manhã do dia seguinte, o corpo do arquiteto foi transladado de avião do Rio de Janeiro em direção a Brasília. Após o pouso, a urna foi transportada em um reluzente caminhão do corpo de bombeiros até o Palácio do Planalto, no início da tarde. Seu trajeto principal passou pelo Eixo Rodoviário Sul (o popular Eixão), às margens do qual estão as áreas residenciais “históricas” do Plano Piloto de Brasília – as superquadras.
Este é o momento em que eu finalmente adentro esse relato. Deslocando-me a pé a partir da casa de minha mãe – a qual, desde os anos 1970, reside na mesma superquadra, no extremo da Asa Sul – dirigi-me para o Eixão para esperar e reverenciar o cortejo – e, claro, tirar muitas fotos. Minha primeira surpresa ao chegar ao canteiro lateral do Eixão foi perceber que o número de pessoas que estava interessada em observar tal séquito era bastante reduzido: na região em que eu estava, havia no máximo vinte pessoas esperando à margem da rodovia. Assim, havia mais gente participando da comitiva em si – policiais, jornalistas, bombeiros etc. – do que populares acenando para ele.
Após um rápido bloqueio ao trânsito, surgiu então a escolta de motocicletas policiais e a urna em si, coberta com a bandeira brasileira. Confesso que, mesmo em baixa velocidade, a passagem do comboio não durou mais de trinta segundos. Os instantes em que as fotografias digitais foram registradas, com precisão de segundos, confirmam essa percepção.
Como não me considero um grande fã de velórios de personalidades, considerei a princípio que minha participação no adeus ao memorável arquiteto estava completa. Entretanto, durante uma ligação telefônica uma hora mais tarde, minha namorada à época (a qual se tornaria minha futura esposa uma semana depois!) terminou por me convencer de que era necessário irmos até o Palácio do Planalto para uma despedida formal a Niemeyer; afinal, era uma oportunidade única de honrar aquele alguém que havia criado boa parte do pano de fundo espacial (e por que não, temporal) das quatro décadas da minha vivência na capital.
Assim como muitos “cariocas da gema” nunca se deslocaram de bondinho até o topo do Pão de Açúcar, eu era à época um brasiliense que nunca havia adentrado o saguão do Palácio do Planalto, nem mesmo nos inefáveis passeios de escola (acho que estava com amigdalite nesse dia). Essa condição de ineditismo auxiliou no convencimento de que nossa passagem pela vigília de Niemeyer era imperativa. Estacionei próximo ao Palácio do Planalto – na realidade, à frente do prédio da Fundação Oscar Niemeyer – e nos dirigimos, eu e ela, para a sede da presidência.
Devo admitir então que fui surpreendido (positivamente) por uma organização bastante eficiente, quase padrão Fifa, para o controle de entrada de pessoas no Palácio do Planalto. A ordeira e tranquila procissão de pessoas que adentravam o velório de Niemeyer não estabelecia nenhum paralelo com as vibrantes (e até mesmo agressivas) atitudes dos populares no adeus a Juscelino.
Como é praxe em qualquer aglomeração com mais de dez pessoas no século 21, havia uma profusão de detectores de metais a serem enfrentados, seguidas por revistas rápidas das mochilas e bolsas dos visitantes, os quais eram então direcionados para a rampa do Planalto, na qual a fila se formava. Novamente, essa curta e ágil fila para a vigília do arquiteto em nada lembrava a multidão que se aglomerou de forma caótica nos arredores da Catedral e adjacências em 1976.
O clima interno no Palácio do Planalto era bastante solene e silencioso; ao contrário do que, a princípio, imaginei que presenciaria, não houve nenhum brado de “comunista” ou outra manifestação mais exaltada de reconhecimento à intensa vida de Niemeyer. Ao contrário, as pessoas rapidamente se despediam do artista, por vezes beijando o pequeno vidro do caixão (disposto de forma a permitir a visão do rosto do arquiteto) e, por outras, fazendo o sinal da cruz, ainda que se tratasse do velório de um notório ateu. Ao chegarmos à beira da urna funerária, preferimos apenas nos despedir de maneira breve e informal, acenando as mãos e dizendo, com carinho, “tchau, Niemeyer”.
Permanecemos então um pouco mais no salão interno do Palácio, admirando a longa fileira de coroas de flores à frente do espelho plano (ou quase plano, se formos rigorosos com a geometria) que domina o saguão, e aproveitando para conduzir também um “exercício antropológico” de observação dos participantes da vigília. Em especial, foi curioso perceber que algumas pessoas tiravam selfies (!) junto ao caixão, uma manifestação típica desses dias tão estranhos que vivemos – afinal, sinceramente, duvido que tenha havido o registro de alguma selfie junto ao caixão de Juscelino na Catedral. Revelar um filme era dispendioso em 1976.
A imprensa relatou que pouco menos de quatro mil pessoas passaram pelo Planalto (3). A Rádio Câmara, estranhamente, preferiu o termo centenas (4), mesmo publicando essa informação horas depois de o velório ter se encerrado, quando a contagem oficial de presentes já estava disponível. Aliás, a cerimônia foi interrompida apenas vinte minutos após a minha visita, meia hora mais cedo que o previsto, frustrando algumas pessoas que não puderam se despedir do arquiteto.
Como não poderia deixar de ser, saímos da cerimônia um pouco chateados – uma emoção esperada após um velório, ao menos a princípio. Para aliviarmos nossa consternação, aproveitamos então aquele belo fim de tarde brasiliense para visitar algumas intervenções temporárias que o escultor inglês Antony Gormley havia feito em áreas próximas à Praça dos Três Poderes – em sua maioria, homens nus de bronze.
Há várias razões que pontuo para a observação de um grau de comoção significativamente menor durante o velório de Niemeyer do que aquele relatado na vigília de JK. Considero, em especial, a idade avançada do arquiteto quando da sua morte (104 anos de idade); acredito que uma idade tão venerável tornou a sua morte mais compreensível para o público, ao contrário do caráter imprevisível e fatal de um acidente automobilístico. Outro fator que conjecturo como relevante é a grande separação temporal (mais de cinco décadas) observada entre a construção da cidade e a morte de Niemeyer, enquanto, em contraponto, JK faleceu apenas dezesseis anos após a inauguração da cidade.
Esse grande intervalo de tempo permitiu, a meu ver, até mesmo a ressignificação das obras de Niemeyer pela população brasiliense, levando à incessante repetição de algumas críticas (por vezes injustificadas), vindo algumas dessas frases até mesmo a se tornarem lugares-comuns entre os brasilienses. Tais julgamentos desfavoráveis por parte da população são observados tanto em relação aos projetos originais (muitas vezes descritos como “pouco práticos”, seja lá o que isso signifique) quanto em relação às novas obras do arquiteto, por vezes consideradas “faraônicas” ou “desconectadas” do restante da cidade, tais como aquelas que adornam o novo setor de tribunais.
Provavelmente, entretanto, o fator mais importante para que as manifestações populares tenham se revelado tão diferentes nos velórios dessas duas personalidades icônicas da história brasiliense foi o ambiente político, o qual era (sem dúvida) muito mais duro e controverso durante os anos 1970, fazendo com que o funeral de JK se transformasse em um evento de caráter eminentemente político. Nesse aspecto, a calma e tranquilidade que observei entre os participantes do velório de Niemeyer prestou, inadvertidamente, uma homenagem à filosofia adotada pelo arquiteto para encarar a vida e a sua própria arquitetura, ao entendê-las como algo transitório e desimportante – no fundo, apenas um sopro.
notas
1
MEMÓRIA GLOBO. Morte de JK. Presidente Juscelino Kubitschek ficou conhecido pelo Plano de Metas "50 anos em 5" e morreu num acidente de carro na via Dutra, em 1976 <http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/morte-jk/morte-jk-acidente-de-carro.htm>. Acesso: 31/05/2017.
2
PROJETO MEMÓRIA. No enterro: “O povo leva!”. Brasília, Fundação Banco do Brasil, s/d <www.projetomemoria.art.br/JK/biografia/5_enterro.html>.
3
G1. Corpo de Oscar Niemeyer é velado no Palácio do Planalto em Brasília. Rio de Janeiro, Rede Globo, 6 dez. 2012 <http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/12/comeca-velorio-do-corpo-de-oscar-niemeyer-em-brasilia.html>. Acesso: 31/05/2017.
4
RÁDIO CÂMARA. Centenas participam do velório de Niemeyer em Brasília. Brasília, Câmara dos Deputados, 06 dez. 2012 <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/ultimas-noticias/432120-centenas-participam-do-velorio-de-niemeyer-em-brasilia;-deputados-e-pioneiros-elogiam-arquiteto.html>.
sobre o autor
Jair Lúcio Prados Ribeiro é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade de Brasília. Sua linha de pesquisa é a interação entre a arquitetura brasiliense e o ensino de óptica na educação básica.