Embora o estado do Espírito Santo possua uma localização estratégica na região sudeste, próximo às principais metrópoles brasileiras, o que o torna acessível para o turista de lazer, de cultura e de negócios proveniente das diversas regiões do país, o patrimônio histórico capixaba é ainda pouco conhecido.
Sem dúvida, alguns monumentos mais presentes na paisagem, como o Convento da Penha (1558), dispensam divulgação, mas há pequenas joias, como a Igreja Nossa Senhora da Conceição, que também merecem uma visita. Fundada em 1585 pelo padre José de Anchieta em Guarapari, a igreja fez parte do plano de fixação dos jesuítas no início da colonização do Brasil. Implantada no mesmo local de uma antiga aldeia indígena Termininó, próxima ao mar e ao rio, no topo de um platô, a construção oferecia o domínio visual de toda a região.
A pequena igreja, quase uma capela, possui uma única nave e uma capela-mor mais longa do que o usual. O altar recebe luz natural por meio de quatro óculos laterais. A luz, difusa, envolve, em certas horas do dia, a imagem de Nossa Senhora da Conceição numa cenografia singela. A claridade dirigida – somada ao altar escalonado, ao nicho de fundo originalmente azul, curvo e abobadado, às nuvens e aos anjos na base – simulava a elevação da santa aos céus.
D. Pedro II ao passar por Guarapari em 1860, observa o estado decadente da igreja: “a capela havia de ser bonita e a casa contígua é de sobrado com seis janelas de frente, mas pouco fundo” (1). Na ocasião a igreja já não tinha as paredes que a cercavam e encontrava-se prestes a ser transformada em uma capela de cemitério. Em razão da fundação da aldeia de Reritiba, a igreja e a residência haviam sido abandonadas pelos jesuítas, que seguiram rumo ao sul do estado, atual Anchieta. Somente a igreja resistiu ao tempo. Da residência com seis janelas restaram apenas os alicerces de pedra no rés do chão.
Apesar das reformas realizadas ao longo dos anos, a igreja ainda hoje mantém as alvenarias robustas de pedra e cal e o telhado em capa-canal como testemunho de sua condição original. Internamente, a ornamentação é simples. De um modo geral, possuem valor artístico a imagem de Santa Conceição, esculpida no século 17; o altar em madeira com flores brancas e rendilhado em alto relevo; uma pequena pia de mármore de lioz avermelhado e uma imagem de roca de Cristo, guardada na sacristia. Infelizmente o piso foi ladrilhado, o que de certo modo desvirtuou a edificação sem contudo descaracterizá-la.
Em 1878, seguindo o modismo, a inclusão de ornamentos neobarrocos – volutas, motivos fito-mórficos e duas imensas rocalhas – alteraram definitivamente o frontispício da igreja apagando o aspecto austero, típico da arquitetura jesuítica. Desse modo, o frontão original, simples e com óculo junto a base do triangulo, característico da maioria das igrejas construídas no Brasil durante os séculos 16 e princípios dos 17, se perdeu. Na reforma, o óculo que ocupa o centro do frontão foi vedado e recebeu um baixo-relevo do Sagrado Coração de Jesus. Na fachada frontal, apenas as três janelas sobre o coro e a porta principal atestam a antiga configuração jesuítica. As portas laterais são novas inserções.
Apesar das alterações, a igreja de Nossa Senhora da Conceição possui características arquitetônicas que garantem seu lugar entre as igrejas coloniais brasileiras. A torre sineira, “única externa” (2) no Brasil, faz da igreja uma raridade. Mas uma ação dos devotos, durante a reforma de 1878, a torna singular. A portada recebe um reboco como base para centenas de conchas que passam a emoldurar as janelas, as portas e a cobrir o barrado da fachada principal. Depois de mais de cem anos, após as sucessivas camadas de pintura, os desenhos formados pelas conchas perderam a nitidez, quase desaparecendo. Em seu lugar um relevo grosseiro havia surgido, apagando os veios e as cores naturais das conchas. Segundo a escritora Beatriz Bueno, o pároco da igreja Padre Antônio Nunes, em 1982, insatisfeito com o aspecto da edificação, ordenou que arrancassem todas as conchas e inseriu na soleira uma peça de granito. Felizmente, foi possível o registro fotográfico dos desenhos antes que fossem completamente perdidos e, a pedido do Iphan, o granito foi retirado da soleira.
O inusitado da inserção das conchas na reforma de 1878 marcou a memória dos fiéis. Dona Aninha Ribeiro, aos 103 anos, contava sobre os dias em que, com sua mãe, catou as conchas para enfeitar a igreja (3). Recentemente, um movimento envolvendo dezenas de pessoas resgatou o gesto de seus antepassados. Fiéis e comunidade retornaram à praia a cata de conchas para ornar a fachada da igreja. Segundo Bueno “não foi possível enumerar a quantidade de doadores de conchas”.
Atendendo as solicitações feitas após as missas, as pessoas trouxeram levas de conchas que aos poucos se acumularam. O trabalho foi basicamente dividido em três etapas: cata e limpeza de conchas; separação e seleção das conchas; feitura do mosaico. A separação e seleção da conchas contou com a participação de crianças e idosos. A contribuição de todos que se dispuseram, tanto da igreja como da comunidade, foi bem vinda.
A etapa da feitura levou aproximadamente um mês, com turnos de trabalho de até vinte horas ao longo de toda a semana. O objetivo era seguir ao máximo os desenhos originais. Os vestígios das conchas aplicadas na reforma de 1878, após fotografados e desenhados, serviram de base para a confecção de moldes em Eucatex, os quais foram fixados ao reboco. Assim ressurgiram rosáceas de caramujos e conchas, brancas, rosas e azuladas bastante fiéis ao desenho original.
Durante o processo, uma comparação entre os vestígios originais e o material arrecadado mostrou que as conchas de 1878 eram muito maiores que as atuais. Segundo os colecionadores, o aumento da população contribuiu para a diminuição e até o sumiço de conchas nas praias. Desse modo, em certos casos, os ajustes nos desenhos foram obrigatórios. Considerando a diminuição das conchas em dimensão e em quantidade dentro do intervalo de 133 anos entre as reformas, a probabilidade do desaparecimento completo desse elemento é uma possibilidade. Prevendo a reposição das conchas ou a reforma futura do painel, dezenas de sacos plásticos contendo a diversidade das conchas utilizadas encontram-se hoje armazenados na igreja.
Ao catar, limpar, separar, selecionar as conchas, confeccionar o mosaico e guardar material para uma reposição futura, os paroquianos e a comunidade deram continuidade a história dessa pequena capela, fundada e abandonada pelos jesuítas, que resistiu ao tempo e guarda elementos que a faz figurar entre as igrejas coloniais brasileiras. As dezenas de conchas e caramujos incrustados em sua fachada conferiram singularidade à edificação, tornando-a especial. Eu estive lá. Vale a pena uma visita.
notas
NA – A visita à Igreja de Nossa Senhora da Conceição constitui uma das etapas da pesquisa “Arquitetura da Memória” desenvolvida pela grupo ArqCidade da Universidade Vila Velha com o apoio da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular/Funadesp. Bolsistas de Iniciação científica: Bárbara Terra e Talita Ruy.
1
ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. Vitória, Sedu/Secult, 2008, p. 216.
2
ALMEIDA, Renata Hermanny. Patrimônio Cultural do Espírito Santo – arquitetura. Vitória, Secult/CEC, 469, 2009, p. 99.
3
BUENO, Beatriz. Guarapari: mais que um sonho lindo. Brasília, Thesaurus, 2011, p. 74.
sobre a autora
Simone Neiva é arquiteta, professora n curso de Mestrado Arquitetura e Cidade da Universidade Vila Velha e pesquisadora do grupo ArqCidade/UVV. Doutora pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Universidade Mackenzie. Especialista em História da Arte e História da Arquitetura pela PUC/Rio, atuou como consultora Unesco.