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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A preservação arquitetônica no Brasil historicamente desconsidera o legado fundamental da arquitetura de origem africana/afrodescendente e, sobretudo, indígena. Igualmente, pouca atenção tem sido dada ao registro dos processos imateriais na arquitetura.

english
The preservation of architectural heritage in Brazil has historically not taking into account African and indigenous architecture. Also, very little attention has been conceded to register immaterial process in architecture.

español
La preservación del patrimonio en Brasil históricamente no considera los bienes inmuebles del patrimonio de origen africano/afro descendientes y el indígena. Asimismo, poca atención se le ha dado al registro de procesos inmateriales en arquitectura.


how to quote

MOASSAB, Andréia. O patrimônio arquitetônico no século 21. Para além da preservação uníssona e do fetiche do objeto. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 198.07, Vitruvius, nov. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.198/6307>.

Arquitetura, poder e monumentalização da história oficial

As preocupações com a gestão do patrimônio surgem no Brasil nos anos 1930, durante o Estado Novo (1). O cunho nacionalista e ares modernizantes do período buscaram construir a memória cultural nacional pautada sob o desejo da unicidade histórica da nação brasileira (2). O decreto lei n. 25 de 1937 traçava diretrizes para identificar, documentar, proteger e promover a valorização deste patrimônio. Sucede que esta memória oficial foi embasada nos valores da elite e a elevação a monumento, sobretudo, da arquitetura colonial das estruturas de poder (igrejas, fortes, cadeias, palácios, casas de câmaras). Isto significou registrar a história do Estado como se fosse a história de todos. Estas diretrizes foram predominantes na preservação do patrimônio nacional até a constituinte de 1988 quando novas perspectivas foram acrescidas, sem, no entanto, abandonar a monumentalização da história oficial.

De ressaltar que a sobreposição da história do Estado à dos povos tem sido comumente naturalizada, com o apoio da perspectiva patrimonialista das agências internacionais. Em 2009, por exemplo, Cidade Velha, em Cabo Verde (África), foi elevada a patrimônio da humanidade pela Unesco. O seu núcleo original cresce em torno do pelourinho, estrutura de castigos corporais públicos aplicados aos escravos nos tempos coloniais. Não obstante simbolizar a crueldade deste período, vídeos e cadernos institucionais preferem destacar o seu estilo “gótico”, com pouca ou nenhuma referência à fundação da cidade como entreposto português no tráfico atlântico de escravos. Sob a ótica da preservação arquitetônica das edificações e do traçado urbano de Cidade Velha, tem havido uma higienização ou embranquecimento da história de sofrimento que acompanha o período colonial.

Além disso, Cidade Velha é provavelmente mais significativa para a história do colonizador, pois foi a primeira cidade portuguesa fora do continente ou, “a primeira cidade colonial construída nos trópicos e marca um passo decisivo na expansão europeia no final do século 15 em direção à África e ao Atlântico” (3). Não por acaso Portugal fez forte campanha para a sua elevação a patrimônio mundial. Ao focar apenas uma face da história, sob a perspectiva do desbravamento dos mares e de novas fronteiras, está-se colaborando para uma “suavização” da violência colonial.

Nesta direção, a preservação do patrimônio arquitetônico tem sido comumente instrumentalizada. No Brasil, um dos casos mais evidentes foi o projeto de “revitalização” do pelourinho, em Salvador, igualmente apaziguador das tensões e contradições históricas do convívio nada pacífico entre colonizador e colonizados.

Contar a história dos detentores de poder faz parte da gênese dos monumentos. Desde os tempos mais remotos monumentos são erguidos para comemorar a versão dos vencedores e o espaço urbano tem sido o locus por excelência desta prática. Os arcos do triunfo romanos já marcavam batalhas vitoriosas nos núcleos urbanos. Nos séculos 18 e 19 houve um resgate enfático do uso das cidades como palco para a versão oficial dos fatos e a sua cristalização como verdade absoluta. Heróis nacionais (sob a perspectiva hegemônica), bustos e cavalos ocupam lugares estratégicos na urbe, onde o desenho urbano enfatiza as perspectivas visuais e engrandece o monumento.

Monumentos e arquitetura (e a monumentalização da arquitetura), ao longo dos tempos, têm servido para solidificar a versão dominante da história, seja pelo investimento em materiais duráveis e grandiosidade nas obras de Estado, seja, a posteriori, na política de preservação pautada na fisicalidade do objeto arquitetônico. Importa lembrar que o ambiente construído é um sistema semiótico revelador dos povos. O discurso arquitetônico não é indiferente às instituições que conformam cada sociedade. Em outras palavras, a arquitetura produz discurso, atribui sentido e constrói realidade: é um dispositivo de produção de verdades. Uma vez que o espaço é uma categoria política (4), a sua demarcação é prática de poder, da escala da casa e do lote à cidade.

Assim como as estátuas e monumentos, a ocupação dos territórios e a sua demarcação simbólica é de per se, estratégia de dominação. No Brasil, a colonização foi um empreendimento urbano, a despeito da economia rural, já que os núcleos urbanos eram os pontos de saída para a ocupação das terras. Era a partir das cidades que o colonizador exercia o poder econômico e militar sobre o território. As cidades e vilas do país foram criadas como estratégia de dominação, a partir do litoral rumo ao interior. Internamente, no que diz respeito ao desenho urbano, os quadrantes centrais e mais elevados eram inexoravelmente destinados às estruturas de poder, onde foram construídos as igrejas, fóruns, prefeituras, cadeias, fortificações.

Os anti-monumentos

Em contraposição à história oficial, na última década, alguns artistas e ativistas têm subvertido irônica e plasticamente a lógica comemorativa naturalizada do monumento urbano. Este é o caso do julgamento simbólico de Borba Gato, realizado todo dia 19 de abril (dia do índio) aos pés da sua estátua em São Paulo. Ao contrário da honra aos “bandeirantes”, os ativistas propõem um julgamento simbólico, no qual o “extraordinário desbravador dos sertões” dos livros escolares é submetido ao escrutínio popular com a acusação de promoção de trabalho escravo, homicídio de negros e índios; estupro de mulheres negras e indígenas e roubo de ouro e pedras preciosas brasileiras.  É desvelada, desta forma, outra face dos “homens valentes, que no princípio da colonização do Brasil, foram usados pelos portugueses com o objetivo de lutar com indígenas rebeldes e escravos fugitivos”, frase banalizada e reproduzida constantemente em sites de pesquisa escolar e manuais (5).

Levantamento habitacional no médio Solimões
Imagem de Andréia Moassab e Daniel Cardoso

No mesmo sentido, por meio da poética visual, a artista Nele Azevedo vem desenvolvendo a sua pesquisa, a qual resultou em ações críticas em espaços urbanos, tais como a instalação do Monumento Mínimo e do trabalho Gloria às Lutas Inglórias. Este último, no Pátio do Colégio, em São Paulo, propunha uma profunda reflexão sobre o monumento em homenagem aos jesuítas na fundação da cidade, ocupando uma área equivalente, com um desenho guarani feito em frutas, que foi devorado em algumas horas, num grande piquenique urbano. Por sua vez, o monumento mínimo é uma homenagem a homens e mulheres anônimos e à efemeridade da vida, subvertendo as principais características dos monumentos oficiais: a escala, a homenagem aos heróis, o pedestal e a permanência. Este trabalho de Azevedo consiste em esculturas de gelo (material temporário), em escala diminuta, inicialmente solitário e mais recente em multidões, estrategicamente colocadas em contraposição à história oficial.

Por sua vez, o artista catalão Antoni Muntadas “inaugurou” com placas comemorativas, os desastres urbanos paulistas, no projeto Arte/Cidade Zona Leste, em 2002. A proposta consistia em elencar “oficialmente” as piores obras urbanas da cidade e galardoá-las com placas em bronze, idênticas àquelas usadas para identificar os monumentos oficiais. Desta feita, o minhocão, os conjuntos habitacionais da zona leste, o fura-fila e outras obras de igual “importância” receberam as suas placas e tornaram-se cartões postais da cidade (6). Muntadas por meio de uma ação irônica subverte a lógica do monumento urbano e faz emergir os paradoxos e limites das obras oficiais, bem como do seu reconhecimento por meio das usuais placas em bronze (7).

03. Levantamento habitacional no médio Solimões
Imagem de Andréia Moassab e Daniel Cardoso

A lógica do monumento e monumentalização do espaço urbano vêm sendo questionada nas últimas décadas, tanto em trabalhos acadêmicos (8) quanto artísticos (Krzystof Wodiczko, Richard Serra, Maria Papadimitriou, para citar alguns). O livro Evictions: Art and Spacial Politics, de Rosalyn Deutsche (9), faz das mais ácidas análises contra o discurso hegemônico sobre a relação entre arte e espaço urbano. A autora demonstra como predomina uma abordagem que concebe e justifica exclusões. Em contraposição, seu trabalho defende a necessidade de tomar-se em conta os conflitos que produzem e mantêm todos os espaços. O conflito, longe de minar o espaço público, é um pré-requisito de sua existência.

Se por um lado muito já tem tratado sobre a perversa relação entre arte e espaço urbano, por outro, pouco deste debate tem sido absorvido nas reflexões e práticas de preservação do patrimônio edificado no Brasil. A arquitetura, ao invés de iluminar as contradições da formação na nação, tem colaborado para apaziguá-las. A despeito das alterações arejadas trazidas pelo texto constitucional de 1988, passados vinte anos, observa-se certa inercia e pouca alteração na diversidade e perfil das edificações tombadas no período.

A preservação do patrimônio edificado no século 21

Habitação ribeirinha, 2003
Foto de Daniel Cardoso

Ao propormos uma reflexão da preservação do patrimônio arquitetônico e o seu vínculo com o poder historicamente instituído não está-se apontando para a sua desvalorização ou substituição. Ao contrário, trata-se de alargar o escopo da preservação arquitetônica, acrescentando ao padrão instituído outros modos e modelos construtivos, assim como os aspectos imateriais da arquitetura, os quais têm merecido raros espaços no debate sobre patrimônio arquitetônico.

Habitação ribeirinha, 2003
Foto de Daniel Cardoso

Dito de outra forma, se preservação arquitetônica se confunde com a valorização das estruturas de poder, é necessário reconhecer a inclusão, de fato, das novas perspectivas a partir da constituição de 1988, no seu artigo 126. O Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional atua hoje em dia pautado sob o lema de que “não preserva o passado, trabalha com o que precisa fazer parte do futuro” (10), buscando proteger a diversidade cultural brasileira incluindo valores populares, indígenas e afro-brasileiros. Todavia, ainda que o entendimento jurídico tenha sido atualizado e o instituto tenha vindo a confirmar tal compreensão nas suas publicações recentes, não é possível observar mudanças neste sentido no que tange ao patrimônio arquitetônico, ao analisar-se a relação de bens tombados e dos temas de interesse do instituto.

Habitação ribeirinha, 2003
Foto de Daniel Cardoso

Dos quase mil bens arquitetônicos protegidos pelo Estado Nacional, quase a metade (40%) refere-se estruturas religiosas de matriz católica (igrejas, capelas, conventos, mosteiros); outros 20% dizem respeito a edifícios e infraestruturas administrativo-institucionais (cadeias, câmaras, fortes, fortalezas, fontes, aquedutos etc.). Fazendas, engenhos e casas de pessoas ilustres totalizam 13% (11). As casas e casarões tombados (12) são majoritariamente do período colonial, pertencentes à administração pública ou casas privadas da elite e personagens ilustres, bem como casas bandeiristas e sedes de fazenda (ambas partes do mesmo espectro ideológico).

Habitação ribeirinha, 2003
Foto de Daniel Cardoso

Apenas 1% dos bens arquitetônicos tombados concerne à memória afrodescendente (02 quilombos, 06 terreiros, 01 senzala, 01 museu da magia-negra), num total de 10 bens. Destes, a maioria, de fato foi tombada após a constituição de 1988, demonstrando que o marco jurídico colaborou para a inclusão dos negros na preservação da memória nacional, mesmo que permaneça muito incipiente. De referir que dos dois quilombos tombados, Palmares (AL) e Ambrósio (MG), este último tem um processo imerso em polêmicas com historiadores mineiros apontando erros na área tombada pelo Iphan, além de questionarem o viés autoritário do processo (13).

Quilombo Apepu, 2015
Foto de Maitê Tejada

Não há qualquer registro de bens indígenas tombados pelo Iphan, tampouco casas, aldeias ou conjuntos arquitetônicos/paisagísticos. Em geral a cultura indígena tem sido tombada como bem cultural/imaterial, sobretudo por conta de rituais, festas e danças. A arquitetura indígena não tem feito parte dos bens materiais da União (14).

A invisibilidade das técnicas construtivas indígenas é sobreposta à desvalorização dos materiais temporários na arquitetura. Na historiografia da arquitetura muito pouco tem sido dedicados às construções, tecnologias e técnicas fora do padrão dominante. Em especial, com o advento do concreto e da arquitetura moderna no século 20, materiais como adobe, taipa, tijolo e bambu, foram deixados à margem das publicações e das escolas de arquitetura. Numa cultura arquitetônica de sobrevalorização do concreto, é evidente que ocas indígenas, casas quilombolas, palafitas e flutuantes ribeirinhas, vilas de pescadores, casas caiçaras e todo o vasto leque de tipologias construtivas no país correm o risco de desaparecer. Seduzidos pelo bloco-cimento, a nova geração de mestres construtores em diversas comunidades têm substituído as técnicas antigas pelos novos materiais, nem sempre com bons resultados no que tange às adaptações climáticas ou custos (15).

Quilombo Apepu, 2013
Foto de Fran Rebelatto

Para além da questão da necessidade urgente de ampliação na gama do patrimônio arquitetônico brasileiro, é pertinente incluir no debate os processos imateriais da arquitetura. A preservação não deve limitar-se ao objeto arquitetônico, outrossim, atentar-se para registrar o saber-fazer, as técnicas construtivas e tecnologias adequadas a cada época e edificação. Trata-se de conseguir responder não apenas como o bem foi construído, mas também o porquê destas construções, enquadrando as limitações ambientais, materiais e econômicas de uma época, as quais foram fundamentais para os seus resultados arquitetônicos (16). Pesquisas recentes no Brasil têm demonstrado a importância de um resgate da história da tecnologia, posto que soluções construtivas adotadas pelos povos antes do conhecimento dos combustíveis fósseis apresentam rico material para desenvolver tecnologias construtivas mais sustentáveis (17). Neste sentido, seria fundamental que o Iphan reconhecesse este patrimônio e apoiasse estudos e conhecimentos a ele vinculados.

O pesquisador e docente da Universidade Federal do Ceará, Daniel Cardoso, desenvolveu uma metodologia para estudos da morfogênese e arquivo de processos arquitetônicos, com base num trabalho com a comunidade piscatória de Icapuí/CE (18). A partir da análise de mais de cem casas na região, no intervalo temporal de um século, o arquiteto conseguiu identificar um algoritmo tipológico, identificando a gramática dos mestres de obra. Foi possível, assim, desenvolver uma ferramenta computacional para arquivar este processo construtivo, em vias de perder-se com o falecimento e idade avançada dos últimos mestres detentores das técnicas tradicionais, pois que os mais jovens têm preferido construir em bloco e concreto. Ao revelar a importância dos processos imateriais na arquitetura, não obstante a sua fisicalidade concreta, abrem-se novas perspectivas para a preservação do patrimônio construído, 

Quilombo Apepu, casa de dona Aurora, 2013
Foto de Fran Rebelatto

O próprio Iphan e o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat deparam-se com a limitação imposta pela falta de preservação de processos construtivos aquando da necessidade de restauração do Casarão do Chá, em Mogi das Cruzes SP. Construído em 1942, com um complexo sistema estrutural de encaixes de madeira, sem qualquer prego, parafuso ou colagem, o casarão é um exemplar único da arquitetura japonesa no Brasil. As paredes em taipa, com amarração japonesa, revelam uma interessante hibridização e adaptação do sistema construtivo japonês “aos condicionantes impostos pela localização e pelos materiais, técnicas e mão-de-obra existentes na região” (19). Tombado em 1982 pelo Condephaat e em 1986 pelo Iphan, o edifício esteve durante anos em vias de ruir, especialmente devido às dificuldades impostas para a sua restauração. O sistema de encaixes, desconhecido no país, inviabilizava a retirada de qualquer peça para manutenção/substituição, sem comprometer todo o conjunto. Técnicos do Iphan, do IPT e da Unesco debruçaram-se sobre a questão, sem sucesso. Apenas com a vinda de um mestre-carpinteiro do Japão, especializado nesta tipologia, foi viabilizada a recuperação do edifício. Em oposição ao modelo europeu de cristalização da arquitetura (20), os orientais preocupam-se mais com a manutenção da tradição construtiva ancestral, que é passada por gerações.

Arquitetura-objeto na cidade-cenário

Ao contrário dos orientais, a excessiva valorização da materialidade arquitetônica no ocidente tem colaborado para um processo de “cenarização” de centros históricos, resultantes dos projetos de revitalização urbana em voga nas últimas décadas. Megaprojetos de intervenção, como a remodelação de Barcelona, da zona portuária em Londres, ou no Brasil, do pelourinho em Salvador, para citar alguns, inserem-se num modelo de compreensão do território denominado planejamento estratégico ou city-marketing. Desenvolvido sob a égide do neoliberalismo, o resultado destas intervenções tem sido cidades cada vez mais marcadas pela segregação espacial, na qual as zonas centrais mais bem servidas de infraestrutura são ocupadas pelas classes mais abastadas. Nas regiões mal atendidas por serviços e equipamentos urbanos, reside a população de baixa e de baixíssima renda.

Em acordo com estas premissas, a gestão do território ganha contornos de planos de marketing nos quais a arquitetura e a preservação arquitetônica tem colaborado para o ocultamento deliberado das tensões existentes no espaço urbano, beneficiando a especulação imobiliária facilitada pela legislação urbanística excludente e pela ação do Estado em áreas de maior interesse do capital. Instrumentalizada por estes modelos de gestão urbana, a preservação do patrimônio edificado vem transformando as cidades em espetáculo, no qual a fisicalidade das construções é preservada, recuperada e transformada para fins turísticos muitas vezes deslocados do cotidiano e da população local.

Tais projetos de “revitalização” buscam conquistar turistas e empresas estrangeiras, de forma que há a homogeinização em um padrão internacional de museificação local, exotizado e distanciado das práticas culturais que constituíram originalmente os espaços e conjuntos arquitetônicos. Estas intervenções são deliberadamente acríticas, como é o caso da Cidade Velha ou Salvador, citadas anteriormente, amoldando-se às expectativas dos visitantes muitos mais do que propositivas de um resgate e valorização da história dos lugares e seus habitantes. Ademais, o ideário “arquitetura-cenário-fetiche-gentifricação” tem tido amplo suporte das agências internacionais como a Unesco, no caso de Cidade Velha, ou o BID, para o Pelourinho.

Em acordo com esta lógica foi desenhado o programa Monumenta, um amplo programa de preservação de patrimônio do governo federal, financiado pelo BID, em desenvolvimento desde 1995. Nos primeiros anos de sua implementação este viés era evidente, cujo caso mais emblemático foi a preservação do centro histórico de Salvador. A Operação Pelourinho, como foi designada, visava exclusivamente ao estímulo a atividades de lazer e turismo voltados para grupos sociais sem vínculos com a região. O projeto foi profundamente marcado pela total exclusão da população moradora do bairro, além da alteração na estrutura urbana colonial (que deveria ser preservada) com fins de ampliar os espaços de exploração comercial nos miolos de quadra (21). Iniciado em 1993 pelo governo estadual, a “revitalização” do pelourinho, amplamente financiada pelo Monumenta nos anos seguintes, absorveu a população originária, negra, apenas “como um produto exótico que combina bem com a estratégia de implementação de atividades ligadas ao turismo” (22). Todos os moradores das regiões foram realocados, acabando por se fixar nas bordas do centro histórico, em condições tão precárias quanto anteriormente.

Outros caminhos possíveis

Não obstante as diretrizes do financiamento impostas pelo BID, a partir dos anos 2000, com a criação do Ministério das Cidades e da possibilidade de políticas públicas conjugadas, tais como preservação e habitação social, as diretrizes do programa Monumenta foram flexibilizadas e sofreram alterações significativas em comparação com a sua primeira etapa. Os encaminhamentos do programa ao longo da última década alteraram o seu perfil com resultados dignos de reanálises. Este é o caso do Parque do Vale dos Contos em Ouro Preto e da instalação de universidades federais em edifícios tombados no interior de Alagoas e Sergipe.

Igualmente paradigmático, por paradoxal que seja, foi a construção de habitação de interesse social, no mesmo Pelourinho onde os moradores haviam sido expulsos nos anos anteriores (23). Ainda assim, o programa não foi isento de fortes disputas, conflitos e tensões. O alargamento do ideário da intervenção pelos governos locais (estaduais e municipais), inicialmente destinariam as habitações para uma demanda de funcionários públicos do Estado. Aos moradores sem condições de pagar o financiamento seria oferecido aquilo os movimentos sociais locais chamaram de “cheque-despejo”, isto é, uma indenização de 1,5 mil a 5 mil reais para deixarem o local (24). Somente com a forte mobilização social, intervenção do ministério público e um governo federal alinhado na mudança de perspectiva, no que concerne ao direito à moradia, foi possível findar os impasses em favor dos moradores. Deste modo, as 103 famílias cadastradas em 2000 tiveram acesso à moradia no centro histórico.

Este episódio inaugura um precedente fundamental para a viabilização de habitação de interesse social em projetos de recuperação de centros históricos, numa complexa combinação de políticas públicas. Apesar das fragilidades arquitetônicas das unidades projetadas, conforme apontou Bonduki (25), os ganhos em termos sociais, institucionais e paradigmáticos superam as limitações projetuais que certamente serão sanadas nas próximas intervenções de mesma natureza.

Sob este aspecto, algumas respostas positivas emergem às críticas acerca da excessiva museificação dos centros históricos, sobre o novo papel do arquiteto e urbanista diante de processos urbanos contemporâneos. O profissional da área é um elemento chave nesta trama, o qual em conjunto com diversos atores sociais pode colaborar rumo a intervenções arejadas, cultural e socialmente engajadas, na qual a arquitetura está intrinsicamente conectada à vida cotidiana e às populações locais.

Finalmente, merecem destaques como importantes aportes para viabilizar outros caminhos para a preservação arquitetônica, os instrumentos urbanísticos atuais para gestão do patrimônio, cujos avanços significativos foram alcançados com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 (Lei 10.257). Um dos problemas na gestão do patrimônio é a fraca capacidade econômica da maioria dos municípios com imóveis ou áreas tombadas, especialmente aqueles com menos de 50 mil habitantes, que compõem 80% dos munícipios brasileiros com sítio tombado pelo Iphan (26). Neste sentido, os diversos instrumentos urbanísticos regulamentados pelo Estatuto da Cidade podem colaborar efetivamente para reverter o quadro de esvaziamento e abandono de casarões e zonas urbanas tombadas, desde que devidamente incluídos nos planos diretores municipais.

A oca e a palhota como referência arquitetônica para as próximas gerações

Em síntese, é relevante reconhecer e apontar os avanços obtidos após a constituição de 1988, com uma compreensão mais alargada da diversidade do patrimônio nacional, e com o Estatuto da Cidade (27), delimitando instrumentos concretos para a gestão local do patrimônio. Todavia, na prática cotidiana, a administração pública ainda está aquém do esperado no que diz respeito à inclusão e à valorização do patrimônio arquitetônico de origem africana, afrodescendente e indígena.

Foto de José Afonso Botura Portocarrero, 2010
Casa Bakairi. Maquete de Jucimar Ipaikire

A oca e as tradições construtivas indígenas merecem constar do livro do tombo, bem como dos debates sobre arquitetura brasileira. Não apenas os indígenas têm demonstrado enorme capacidade de respostas às suas especificidades habitacionais quanto valorizar o uso de técnicas e material local, com menor uso de cimento, tem o potencial de colaborar para redirecionar os estudos sobre arquitetura e sustentabilidade no país.

Igualmente, uma análise mais cuidadosa das heranças dos modos de morar africanos na cultura habitacional brasileira pode elucidar melhores soluções arquitetônicas para as moradias nacionais. É o caso, por exemplo, do pátio interior como articulador do espaço doméstico, um ambiente semiaberto e semipúblico a funcionar como uma expansão do lar. Novas leituras destes hábitos remanescentes podem atender demandas atuais nas habitações coletivas? A valorização deste patrimônio edificado poderá fazer emergir boas questões de pesquisa para os estudos da arquitetura nacional.

Casa Bakairi. Maquete de Jucimar Ipaikire
Foto de José Afonso Botura Portocarrero, 2010

Tanto quanto a arquitetura colonial, as técnicas e materiais construtivos utilizados e adaptados pelos outros povos formadores da nação brasileira são dignas de (re)conhecimento como patrimônio edificado nacional. Ademais, são dignos de povoar o imaginário nacional tanto quanto a taipa, o adobe, a telha de barro ou o muxarabi. Com passos tímidos, mais de duas décadas depois do novo marco legal, deve-se registrar que não houve uma reversão significativa do perfil patrimonial tombado da união, mantendo o foco nos edifícios de Estado e religiosos, de recorte colonial e elitista.

Por fim, a entrada no século 21 acrescenta variáveis complexas no debate arquitetônico, fazendo emergir a relevância dos processos imateriais na arquitetura, os quais urgem serem valorizados e devidamente arquivados para as gerações presentes e futuras (28).

Casa Paresí
Maquete digital de José Afonso Botura Portocarrero, 2010

notas

NE – Artigo publicado originalmente, em versão ampliada, em SURES – Revista Digital do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História, n. 02. Foz do Iguaçu, Unila, 2013, p. 23-39.

1
É fato que estudos históricos sobre o conceito de patrimônio no Brasil remontam suas origens ao contexto do Império (1822-1889).  Durante esses anos não existiram políticas públicas de preservação do patrimônio precisando antes ser representado enquanto suporte da construção identitária da jovem nação brasileira. Outras representações do patrimônio, mais de caráter artístico do que histórico, entre fins do 19 e primeiras décadas do 20 anteciparam o conceito institucional de patrimônio vigente em grande parte do século seguinte (conf. VENEGAS, Hernán. Patrimônio cultural e turismo no Brasil em perspectiva histórica: encontros e desencontros na cidade de Paraty. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2011. TD). Contudo, tanto a noção de patrimônio quanto a sua institucionalização conforme delimitadas neste artigo dizem respeito ao quadro histórico definido a partir da criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937.

2
GALVÃO, Marco (Org.). Casas do Patrimônio. Brasília, Iphan, 2010.

3
UNESCO. Cidade Velha, Historic Centre of Ribeira Grande. Disponível em http://whc.unesco.org. Acesso em 30/02/2013. Tradução da autora.

4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro, Graal, 1988.

5
O portal do professor (portaldoprofessor.mec.gov.br), página mantida pelo Ministério da Educação, propõe este e diversos textos semelhantes  para debate em sala de aula, sem contudo maiores orientações ou enquadramento, que ficam exclusivamente a cargo de cada professor.

6
BRISSAC PEIXOTO, Nelson. Arte/Cidade Zona Leste. São Paulo, Senac, 2012.

7
MOASSAB, Andréia. Pelas fissuras da cidade. São Paulo, PUCSP, 2003. DM.

8
DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions: Art and Spatial Politics. Cambridge: MIT, 1996; BRISSAC PEIXOTO, Nelson. Paisagens urbanas. São Paulo, Senac/Marca d’água, 1996. BRISSAC PEIXOTO, Nelson. Arte/Cidade Zona Leste. São Paulo, Senac, 2012; MOASSAB, Andréia. Pelas Fissuras da Cidade. São Paulo, PUCSP, 2003. DM. SOUZA, Gabriel. Territórios estéticos. São Paulo, Annablume, 2011.

9
DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions: Art and Spatial Politics. Cambridge, MIT, 1996.

10
FINGER, Anna et allii. Normatização de cidades históricas. Brasília, Iphan, 2010. p. 06

11
LIMA, Francisca et allii (Org.). Bens móveis e imóveis inscrito no Livro do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1938-2009). Brasília, Iphan, 2009. Dados computados pela autora a partir da publicação Bens Móveis e Imóveis inscrito no Livro do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1938-2009). LIMA, Francisca et allii (Org.). Brasília, Iphan, 2009. Excluídos os bens não arquitetônicos (coleções, acervos, paisagens naturais e sítios arqueológicos).

12
GALVÃO, Marco (Org.). Casas do patrimônio. Brasília, Iphan, 2010.

13
MG QUILOMBOS. Dossier sobre quilombos de Minas Gerais. Disponível em <www.mgquilombo.com.br>. Acesso em 25/09/2012.

14
Nesta pesquisa foram analisados os bens tombados pela União; foram excluídos da análise os estados e municípios, merecendo maior atenção em pesquisas futuras desta natureza.

15
CARDOSO, Daniel. Desenho de uma Poiesis. Fortaleza, Expressão Gráfica, 2010; MOASSAB, Andréia. Housing Architecture in Cape Verde. In: TRUSIANI, Elio (Org.). Urban Planning, Architecture and Heritage in Cape Verde. Roma, Orienta Edizioni, 2013, p. 91-130.

16
LIMA, Hélio. A exemplaridade dos sistemas construtivos tradicionais para a inovação em sustentabilidade na arquitetura. In: Nutau [online]. São Paulo, USP, 2008. Disponível em <http://www.usp.br/nutau/CD/108.pdf>.

17
Idem, ibidem.

18
CARDOSO, Daniel. Op. cit.

19
KUNYIOSHI, Celina; PIRES, Walter. Casarão do Chá, Mogi das Cruzes. São Paulo, Condephaat, 1984.

20
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005.

21
BONDUKI, Nabil. Intervenções urbanas na recuperação de centros históricos. Brasília, Iphan, 2010.

22
Idem, ibidem, p. 332.

23
Idem, ibidem.

24
Idem, ibidem.

25
Idem, ibidem.

26
FINGER, Anna et allii. Normatização de cidades históricas. Brasília, Iphan, 2010.

27
BRASIL. Lei nº 10.257 de 10/07/01 [Estatudo da Cidade]. Estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. In: D.O.U. de 11/07/01, Brasília, 2001.

28
No curso de arquitetura e urbanismo da Unila temos trazido estas questões em diversas disciplinas. Especificamente, a autora deste texto teve a oportunidade de ministrar Arquiteturas Afro-Brasileiras e Arquiteturas e Cidades Africanas, além de contemplar o tema nas disciplinas de Crítica e História, sob sua responsabilidade. Igualmente relevante para uma continuidade da reflexão ora apresentada têm sido os projetos de extensão desenvolvidos: Cartografia do Devir no Quilombo de Apepu: Mapeamento de transformações sócio espaciais na arquitetura afro-brasileira (juntamente com o professor Tiago Bastos) e Os Orixás em Terras de M’Boi: Mapeando os espaços e espacialidades das religiões afro-brasileiras em Foz do Iguaçu.

sobre a autora

Andréia Moassab é arquiteta e urbanista, doutora em Comunicação e Semiótica. Autora do livro Brasil Periferia(s): a Comunicação Insurgente do Hip-Hop (Educ, 2011), finalista do prêmio Jabuti 2013. Em Cabo Verde coordenou o Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território da Universidade de Cabo Verde (2009-2012). Atualmente é docente na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.

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198

198.00 urbanismo

A apropriação do ideário cidade-jardim nos condomínios residenciais fechados brasileiros

Michele R. Bizzio and João Carlos Soares Zuin

198.01 história

O patrimônio cultural militar edificado no Rio Grande do Sul

Uma visão a partir do 29º GAC AP no município de Cruz Alta RS

Mateus Veronese, Denise de Souza Saad and Cláudio Renato de Camargo Mello

198.02 estética

Espaço e percepção

Uma abordagem a partir de Merleau-Ponty

Diogo Ribeiro Carvalho

198.03 sustentabilidade

Severiano Porto

Sintaxe e processo, que futuro(s)?

Gonçalo Castro Henriques

198.04 tecnologia

A relojoaria do Masp

Edite Galote Carranza and Ricardo Carranza

198.05 moradia precária

Formas de habitar o centro das cidades

Informalidade e invisibilidade do mercado imobiliário de vilas e cortiços em João Pessoa PB

Camila Coelho Silva and Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia

198.06 tic

Tecnologias de informação e comunicação e os espaços domésticos contemporâneos em Maceió AL

Alana Tenório Carnaúba Guimarães Duarte and Adriana Capretz Borges da Silva Manhas

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