No Brasil, o condomínio residencial fechado estava presente no estado de São Paulo, tanto na capital como nas cidades médias do interior, já na década de 1970, embora ocorra o seu desenvolvimento, de forma mais intensa, a partir dos anos 1980 e 1990 do século 20. Desde o início da sua implantação é possível verificar que esses empreendimentos possuem uma forma diferenciada em relação ao resto da cidade. Essa diferenciação se dá através do tamanho dos lotes desses empreendimentos, geralmente maiores do que os existentes; pelo traçado das ruas, sinuosas, em oposição ao traçado ortogonal; pela disposição dos equipamentos coletivos de uso comum, geralmente localizados no centro desses empreendimentos; pela baixa densidade populacional; pela presença de extensos gramados e áreas verdes.
No sentido de identificar a linhagem urbanística dos condomínios residenciais fechados, Teresa Caldeira aponta que não foram “obviamente uma invenção original, mas partilhavam várias características com os CIDs [...] e subúrbios americanos” (1).
O processo de suburbanização americana ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, embora nas décadas anteriores já houvesse a construção de subúrbios destinados a operários e as nascentes classes média e alta. Esses subúrbios estavam relacionados ao ideário dos “subúrbios ajardinados”, articulados à tradição romântica inglesa do século 18, e que encontra na obra “Cidades-jardins de Amanhã”, de Ebenezer Howard, publicada no final do século 19, sua síntese (2).
Dessa forma, iremos expor as ideias principais contidas na obra “Cidades-jardins de Amanhã”, analisando a apropriação americana desse ideário, para relacioná-la com o padrão cidade-jardim desenvolvido no Brasil pelas construtoras nos condomínios horizontais residenciais fechados. Partimos do pressuposto que esse ideário tem sido utilizado largamente nesses empreendimentos, embora com adaptações e objetivos diferentes, visando uma similaridade com os projetos americanos como meio de valorização imobiliária e distinção social.
Ebenezer Howard e a ideia de cidade-jardim
Para compreender e situar a concepção de cidade-jardim proposta por Ebenezer Howard no final do século 19, cabe-nos fazer um panorama das cidades inglesas, principalmente no tocante à condição da classe operária e no estilo de vida das camadas médias e altas. Sem dúvida, a obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, escrita por Friedrich Engels e publicada em 1845, aponta de forma paradigmática a construção espacial das cidades e moradias no curso do processo de modernização burguesa, tanto dos operários, quanto das camadas médias e capitalistas, que traduzem as condições materiais de existência nas cidades inglesas. É possível dizer que Engels efetuou um ensaio sociológico da cidade que se tornava industrial, edificada pela força das fábricas e pela crescente proletarização da vida humana. Para Engels (3), a construção socioespacial das cidades inglesas foi marcada pela materialização da desigualdade, presente nos contrastes das formas entre os bairros operários – fétidos, pouco ventilados e escuros; – e os suntuosos palácios dos ricos – com ruas amplas e iluminadas por onde circulava o “grande mundo” londrino. Os “bairros de má fama”, constituídos pelas habitações da classe operária estruturavam-se:
“mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam-se cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra, exceto em alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar a roupa” (4).
O crescimento econômico inglês, decorrente da Revolução Industrial e da política mercantilista, propiciou a então nascente burguesia e a parte da nobreza, alojar-se em Londres em bairros residenciais elegantes, abertos por nobres em suas terras, no entorno da cidade. Dentre os novos bairros, destacavam-se Bloomsbury e Regent Park, construídos nos séculos 18 e 19, e constituídos por casas unifamiliares integradas a uma extensa vegetação, cuja área verde, em especial as árvores jamais podadas e gramados, eram o elemento básico.
Em Edimburgo, Manchester, ou qualquer outra cidade inglesa visitada, seria possível encontrar os contrastes entre uma cidade limpa, iluminada e bem equipada, com precárias instalações sanitárias, casas irregulares e mal ventiladas, ruas estreitas e escuras. Se a natureza passou a ser um elemento essencial do subúrbio burguês e das classes médias, os bairros operários, pelo contrário, eram marcados pela homogeneidade, insalubridade e alta densidade populacional. Enquanto a nobreza e a burguesia se estabelecem nos arredores da cidade, com ar puro, e baixa densidade populacional, os cottages tomam conta do centro congestionado.
Muitas foram as propostas e realizações urbanas no século 19 que visaram solucionar ou amenizar essa situação. Entre ela, destacaram-se as cidades fabris, como a de Robert Owen, construídas na Inglaterra, em 1817, e os falanstérios propostos por Charles Fourier, na França, e construídos por Jean-Baptiste Godin, e que, junto a sua fábrica, os trabalhadores disporiam de refeitórios, biblioteca, igreja etc.
A obra de Howard será influenciada por panorama, tanto pela presença dos jardins, quanto pelas vilas industriais. Como bem assinalam Lewis Mumford (5) e John Evelyn (6) “a cidade-jardim não foi inventada por Ebenezer Howard na década de 1890”, porém ele foi o responsável pela formulação de um pensamento coletivo que vinha sendo construído há muito tempo.
A cidade-jardim howardiana buscava dar respostas, em um momento de embates partidários, aos problemas sociais e religiosos, ao superpovoamento das cidades, às precárias condições sanitárias e ao êxodo rural acentuado na Inglaterra. Segundo Howard (7), edifícios suntuosos e aterrorizantes cortiços eram as estranhas feições complementares das cidades modernas, o que lhe conferia, por um lado, um sentido negativo, e por outro, abria a possibilidade da idealização de uma cidade que viesse a guardar as virtudes sociais características da comunidade, como ajuda mútua e cooperação amigável, e do campo, que expressava a concretização do amor divino pelo homem (8). Desta forma, em oposição ao gigantismo de Londres, onde os valores comunitários eram perdidos, assim como a proximidade com a natureza, Howard propõe uma organização social que une campo e cidade, e que, desta forma, com a metáfora do ímã expressando o seu poder de atração, seria capaz de redistribuir a população de forma espontânea e salutar.
Na cidade-jardim howardiana, a propriedade fundiária seria gerida pela municipalidade. Quanto à organização espacial, o centro deveria ser ocupado por um jardim e edifícios públicos, além de conter um palácio de cristal usado para passeio no inverno e como mercado. Seis bulevares deveriam cruzar a cidade, os lotes deveriam ter a proporção de 6,10m por 40 m, e as casas construídas de acordo com a preferência e o gosto individual de cada morador. A cidade-jardim também contaria com indústrias e mercados, situados na parte externa, ou no entorno da cidade.
A renda da cidade seria obtida mediante o uso do solo e este montante seria revertido pela municipalidade para a benfeitoria da mesma. Desta forma, o valor pago ao senhorio numa cidade como Londres, na cidade-jardim, retorna ao pagante como melhorias públicas. Ao pensarmos de maneira comparada, percebemos que enquanto em Londres o valor pago possibilitava a habitação em espaços modestos e com pouca qualidade sanitária, na cidade-jardim possibilitava amplos espaços e sedes públicas, além do “ar puro do campo”. Ou seja, o mesmo valor gasto em Londres, na cidade-jardim, convertia-se em melhor qualidade de vida. Desta forma, através da autogestão comunitária, a cidade-jardim “beneficiaria uma classe hoje bem embaixo na escala social”, como os “trabalhadores pobres de Londres” (9).
É necessário ressaltar que a cidade-jardim, tal como Howard a concebeu, é formada por células de 32.000 habitantes. Sendo assim, ao completar esta soma, dever-se-ia fundar uma nova célula. Ao conjunto destas células, teríamos o que Howard chama de cidades sociais. Portanto, a concepção de cidade-jardim integraria não só um modelo espacial de cidade, que poderia ser diferente de acordo com as necessidades locais e a morfologia do solo, como “um terceiro sistema socioeconômico, superior tanto ao capitalismo vitoriano quanto ao socialismo centralizador e burocrático” (10). A referida concepção também pode ser entendida como um modelo de urbanização que, oposto ao gigantismo da metrópole, constituir-se-ia de pequenas células, capazes de salvaguardar os valores comunitários e, desta forma, formar cidadãos empenhados tanto na administração local como nacional.
O processo de suburbanização americana e o imaginário do subúrbio-jardim
Assim como a Inglaterra, os Estados Unidos passaram pelo processo de industrialização nos séculos 18 e 19, o que gerou um intenso crescimento demográfico e a rápida urbanização do país. Visando frear o crescimento excessivo, algumas cidades recorreram a cidades-satélites, como Pullmann City, próxima a Chicago, outras à planificação, como no caso de Nova York, em que foi feito um plano de extensão da cidade em 1811, e outras aos subúrbios (11), subordinados ao desenvolvimento dos transportes.
Na segunda metade do século 19, alguns subúrbios são construídos nos Estados Unidos como Llewellyn Park, em 1853, em Nova Jersey, e Lake Forest, 1869, em Riverside, arrabalde de Chicago. Estes subúrbios são planejados em torno de estações ferroviárias e marcam a transferência de setores mais abastados da sociedade para o entorno da cidade. Assim como no caso inglês, nestes subúrbios também serão marcantes a presença do verde, dos jardins, da baixa densidade populacional, do traçado sinuoso das ruas e das casas unifamiliares.
Ebenezer Howard, antes de publicar Cidades-jardins de amanhã, passou uma temporada nos Estados Unidos, o que explicaria em boa parte a confluência de ideias presentes na América do Norte e na Inglaterra. Em ambos os casos a matriz estética passava pelo pinturesco inglês. Dessa forma, após a publicação de Howard na Inglaterra, os Estados Unidos foi o país com a maior aceitação de tais ideias, porém, com uma utilização parcial e adaptada. Isto porque, na Inglaterra, após a publicação de “Cidades-jardins do Amanhã”, Howard materializou sua utopia social através da construção da cidade de Letchworth, projetada por Raymond Unwin e Barry Parker, a partir de 1909. Embora concebida para ser uma cidade autônoma e com finalidades sociais amplas, nos Estados Unidos o conceito de cidade-jardim é utilizado de forma mais seletiva, e sua concretização ocorre através da construção dos subúrbios, e não com a construção de cidades autônomas, em grande medida pela influência do trabalho de Raymond Unwin e Barry Parker.
Esse trecho escrito por Unwin para a revista Garden Cities & Town Planning Association, em 1912, já demonstra o deslizamento de sentido entre a cidade-jardim e os subúrbios-jardim:
“No desenvolvimento das cidades existentes, portanto, o princípio da cidade-jardim tem muito a oferecer, que é de grande valor, pois se baseia nos princípios naturais de organização e daria expressão a materialização para tal organização. Separando as unidades ou subúrbios um do outro, dando-lhes um centro subsidiário em torno do qual eles devem ser agrupados e sobre o qual dependeria, enquanto o centro pode ter que continuar a ser uma unidade maior do que o desejável, ainda seria possível garantir limitação para as unidades mesmo com o crescimento e assegurar entre essas unidades e entre elas e a cidade central alguma definição e divisão através de um cinturão de terra aberta, que seria de valor inestimável” (12).
Unwin fala a princípio da cidade-jardim como meio de separar as unidades ou subúrbios um do outro, ou seja, o princípio da cidade-jardim utilizado para a construção de unidades ou subúrbios ao redor de uma cidade central, em que os próprios subúrbios também poderiam contar com centros intermediários. Embora nesta análise, possamos pensar que este modelo expressaria o conceito de cidades sociais, compostas por grandes arranjos de cidades-jardim, o primeiro parágrafo refere-se a cidades existentes, que mais se assemelhariam, e a experiência histórica provou, aos subúrbios, do que com cidades autônomas. Mais do que implantar um terceiro sistema socioeconômico, Unwin utiliza o princípio paisagístico e o modelo urbanístico de descentralização da metrópole via pequenas células da cidade-jardim Howardiana.
Após as primeiras décadas do século 20, Clarence Stein (1882-1975) e Henry Wright (1878-1936) foram os principais urbanistas a materializar, nos moldes americanos, o ideário da cidade-jardim, com a construção de Sunnyside Gardens, próximo a Manhattan, entre 1924 e 1928 (13); e o projeto da cidade de Radburn, em 1929. Ambos os projetos já incluíam o carro como meio de transporte.
Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial, com a construção de novas estradas, a criação das hipotecas pelo Estado e a explosão da natalidade e a produção de carros em série por Henry Ford (14), o processo de suburbanização americano se consolida. O subúrbio de casas unifamiliares, traçado sinuoso, amplas áreas verdes e racialmente homogêneo (15) torna-se o sonho de consumo e permeia o imaginário das classes médias e altas do pós-guerra americano. Surgem grandes empreendimentos privados, como Levittown, com 82 mil residentes, Lakewood e Park Forest.
O ideário cidade-jardim no Brasil: do bairro Jardim América aos condomínios residenciais fechados
O ideário cidade-jardim foi amplamente disseminado no Brasil. Vários Estados incorporaram essa matriz de pensamento, como o Rio de Janeiro, em 1930, com o plano do urbanista francês Alfred Agache para a Ilha do Governador e a Ilha de Paquetá; em Goiás, com o plano para a zona residencial sul de Goiânia, de Atílio Corrêia Lima, entre outros. Mas será a obra do Jardim América, executada pela Companhia City em São Paulo, uma das melhores expressões da incorporação deste ideário na construção de um padrão residencial para as classes média e alta no Estado de São Paulo.
A extensão de 109 hectares que hoje corresponde ao Jardim América foi adquirida pela Companhia City em 1913, e foi planejado na Inglaterra pelo escritório de Barry Parker e Raymond Unwin, Parker veio ao Brasil em 1917 e permaneceu até 1919 para executar o projeto encomendado pela Companhia City.
Segundo Ottoni (16) o projeto do Jardim América previa lotes de aproximadamente 1.450 m², dispostos em ruas sinuosas, com jardins internos às quadras, para o uso coletivo dos moradores. O bairro era estritamente residencial, fora dois clubes e a igreja Nossa Senhora do Brasil. Os jardins permeavam todas as áreas, com residenciais que não podiam exceder a área de projeção de um quinto do terreno. A separação entre terrenos e rua, foi feita por cercas vivas, o que conferia faixas de verde contínuo. Os jardins internos às quadras não foram aceitos, tendo sido loteados a partir de 1932, menos um que se transformou no Clube Harmonia de Tênis. A novidade do projeto para o Brasil, o rigor de sua implantação e controle, o belo resultado de jardim contínuo e o bom nível geral da arquitetura produzida, conferiram status aos seus moradores, transformando o empreendimento em grande êxito.
O Jardim América, segundo Wollf (17), procurou atender uma nova clientela que se formava na cidade, a da classe média e alta, que buscava se diferenciar de outras classes sociais através de novos modos de vida, o que incluía a residência, tornando-se um empreendimento paradigmático para compreender o estilo de vida da elite paulistana. Segundo a autora, o Jardim América estabeleceu uma setorização das classes sociais pelo zoneamento e criou um padrão diferenciado do resto da cidade através do plano e da arquitetura. Criou um moderno procedimento comercial pautado pela propaganda, que associava ao empreendimento a ideia de conforto, modernidade, sofisticação e exclusividade e um método eficiente de financiamento, através do banqueiro Lord Balfour, governador geral do Banco da Escócia e presidente da São Paulo Railway, e um dos quatorze diretores da Companhia City. Contava com ruas sinuosas, em oposição ao traçado tabuleiro de xadrez, limpas, ajardinadas e arborizadas; as casas eram delimitadas por cercas vivas, e possuíam fachadas similares à das casas da elite tradicional presente na Avenida Paulista, Campos Elísios e Higienópolis.
O Jardim América construído pela Cia. City, para além do seu sucesso comercial, imprimiu uma “identidade paisagística” (18) que irá caracterizar quase todos os empreendimentos imobiliários posteriores destinados às classes média e alta. O padrão anglo-americano incorporado pela Cia. City tornou-se modelo, pelo menos em nome, para 1.200 bairros em São Paulo (19) até meados dos anos 1970 do século 20 e estará presente no desenvolvimento, com algumas modificações e adaptações, do padrão do condomínio residencial horizontal fechado da cidade de São Paulo e das cidades do interior paulista nos anos posteriores.
O ideário cidade-jardim nos condomínios fechados brasileiros
Um dos fenômenos mais marcantes na década de 1990 do século 20, tanto nas principais potências ocidentais como nos países “em desenvolvimento”, foi a emergência e a proliferação das gated communities (nos Estados Unidos e na Europa) e dos condomínios residenciais fechados (no Brasil, na Argentina), seguidos do esvaziamento e da privatização dos espaços públicos de uso coletivo tradicionais e da ascensão de shoppings, parques temáticos, e outra série de espaços privados de uso comum.
Como aponta Beatriz Sarlo (20), nas cidades fragmentadas e desintegradas do final do século 20, o shopping center torna-se o monumento por excelência da sociedade pós-moderna, uma vez que, com as mudanças processadas no último quartel do século 20, entendida genericamente como globalização, a política e os espaços públicos tradicionais perdem seu significado. Assim, como cidade em miniatura e sem história (essa aparece como elemento de decoração, esvaziada de seu sentido), o shopping se adequa ao nomadismo contemporâneo, traz a segurança do lugar aos indivíduos desterritorializados (já que ele é igual em todos os lugares) e torna-se o palco da política contemporânea, entendida como política do mercado, ou como cidadania do consumo. É no shopping que o indivíduo torna-se cidadão, uma vez que a cidadania tem sido cada vez mais associada ao consumo. O sucesso do shopping center também deve ser associado ao seu caráter excludente, pois só superficialmente ele abriga as diferentes classes sociais, e aos seus mecanismos de controle e vigilância.
O modo de produção e o processo civilizatório desenvolvido no final do século 20 produzem uma urbanização que tem como elementos valorativos significativos a segurança, a proteção, a distinção e a separação da cidade. Não se trata apenas de uma urbanização que cinde a cidade em enclaves, que desestrutura a sociedade gerando espaços segregados, mas, sobretudo, a urbanização das gated communities, do shopping center e dos condomínios fechados; trata-se de uma política espacial que redesenha o sentido da cidade moderna e da democracia. Enquanto produção de residências, condomínios, sistemas de controle e vigilância, empresas privadas de segurança, eles são parte de um gigantesco conjunto de indústrias da construção civil, engenharias e tecnologias que realizam enormes ganhos financeiros. Contudo, tal processo de extração de mais-valor está profundamente vinculado com o processo civilizatório que tem como princípio o indivíduo autônomo e competitivo, cuja performance vitoriosa nas relações sociais legitima o direito de se autodefender, isolar-se dos perigos existentes na sociedade e no mundo. A retórica da segurança e a política do medo foram amplamente vitoriosas e proporcionaram dispositivos sociais e políticos que modificaram o sentido da cidade moderna.
A noção implícita no discurso da “segurança total” desses empreendimentos parece repousar no desejo de se viver em uma comunidade socialmente homogênea. Assim, viver em segurança significa viver entre aqueles que são social e economicamente iguais entre si e distintos dos demais. A diversidade e a heterogeneidade inerente à vida urbana tem assumido cada vez mais uma conotação de perigo por vários estratos das classes médias e altas. O problema da segurança pessoal está entrelaçado com o desejo de distinção e com os processos urbanísticos de exclusão e inclusão social.
Como aponta Nicolau Sevcenko, ao observar os processos de urbanização na cidade de São Paulo:
“Dos anos 80 aos nossos dias, as tendências dominantes foram outra vez contraditórias. Por um lado tivemos a organização e politização das comunidades dos bairros periféricos, pressionando as autoridades pela legalização das propriedades e forçando investimentos em transporte, serviços e infraestrutura. Pelo outro, o surgimento de lobbies de planejadores e incorporadores, empenhados na alteração de códigos, estatutos e gabaritos, de forma a capitalizar megaprojetos privados, criando áreas de exclusividade, privilégios de circulação e se especializando na arte da utilização de áreas e equipamentos públicos para fins especulativos, promocionais e privativos” (21).
Assim, as construtoras dos condomínios residenciais fechados incorporaram o imaginário dos subúrbios ajardinados americanos – já disseminados e consolidados no Brasil pela Companhia City, inicialmente com o Jardim América – como meio de distinção e valorização desses empreendimentos. O traçado sinuoso das ruas e a presença de extensas áreas verdes circundando todo o empreendimento são amplamente utilizados nos projetos dos residenciais fechados e largamente enfatizados em seus materiais publicitários.
No projeto gráfico elaborado pelas construtoras desses empreendimentos percebemos a ênfase dada às áreas florestais, o predomínio da cor verde para caracterizar o empreendimento, a oposição entre uma cidade adensada e cinza e a baixa densidade dos seus empreendimentos, repletos de áreas livres e verdes, que remete a tranquilidade e o contato com a natureza. O projeto também exclui os bairros que circundam os condomínios, principalmente bairros socioeconomicamente carentes. As imagens buscam apresentar um projeto de cidade que interessa apenas ao futuro morador dos condomínios, como o centro comercial da cidade, os eixos rodoviários e etc. Esboça-se, assim, uma urbanidade completa e totalmente apartada do resto da cidade.
Como ressalta Teresa Caldeira (22), a cidade-jardim, formulada por Howard no final do século 19, procurava dar respostas aos problemas das cidades industriais, como as péssimas condições sanitárias e o alto custo do solo nas cidades. O ideal das cidades-jardins proporcionaria cidades mais equilibradas, em termos ambientais, e mais justas e democráticas, em termos sociais. Já a incorporação desse ideário pelos condomínios residenciais fechados, segundo Caldeira, assinala, antes, a destruição de seus ideais democráticos, pois, ao invés de promover um ambiente mais justo e igualitário, os condomínios residenciais fechados promovem a distância social e a separação. Logo, o uso do ideário cidade-jardim pelas construtoras busca mais marcar distinções sociais como o poder econômico e o prestígio para promover a valorização dos empreendimentos, do que a promoção de ideais sociais amplos ou soluções urbanísticas inovadoras.
notas
1
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34, 2000, p. 261.
2
MUMFORD, Lewis. The Garden City Idea and Modern Planning. In: HOWARD, Ebenezer. Garden Cities of To-morrow. Cambridge, The M.I.T Press/Massachusetts Institute of Tecnology, 1965, p. 29-40.
3
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Boitempo, 2008.
4
Idem, ibidem, p. 70.
5
MUMFORD, Lewis. Op. cit.
6
Cf. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação as plantas e aos animais. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 247.
7
HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanhã. 2a edição. São Paulo, Hucitec/Annablume, 2002.
8
“Cidade é o símbolo da sociedade – da ajuda mútua e da cooperação amigável, da paternidade, da maternidade, da fraternidade, da sonoridade [...]. O campo é o símbolo do amor e do zelo de Deus pelo homem”. HOWARD, Lewis. Op. cit., p. 110.
9
HOWARD, Ebenezer. Op. cit., p. 134. Mas como ressalta Peter Hall: “Howard, na esteira de Marshall, não via suas cidades-jardim como colônias para pobres indignos. Pelo contrário: elas deveriam ser fundadas e administradas pelo stratum imediatamente superior – a classe C de Charles Booth –, que assim se haveria de libertar da servidão do cortiço urbano. Sua solução não era paternalista – fora, talvez, algumas poucas nuanças residuais; ao contrário, estava firmemente assentada na tradição anarquista”. HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo, Perspectiva, 1995, p. 107.
10
HALL, Peter. Op. cit., p. 111.
11
Cabe ressaltar que no século 19 os subúrbios eram locais de passeios campestres onde a aristocracia e a burguesia possuem castelos e casas.
12
UNWIN, Raymond. Nothing Gained by Overcrowding!: how the garden city type of development may benefit both owner and occupier. Garden Cities & Town Planning Association 3, Gray’s Inn Place, W. C, 1912, p. 2.
13
Segundo Hall, “de 1924 a 1928, tomaram eles Sunnyside Gardens, área intra-urbana de 77 acres ainda não urbanizada, a apenas 5 milhas de Manhattan, e fizeram seu planejamento com base em grandes superquadras livres de trafego, criando assim vastos espaços de jardins internos [...]. Lewis Mumford, que foi um de seus primeiro moradores, testemunhou, muito tempo depois, a qualidade de vida, tanto física quanto social, que o lugar propiciava; só que não era uma cidade-jardim”. HALL, Peter. Op. cit., p. 146.
14
Segundo Hall, “o boom suburbano alicerçou-se em quatro pontos principais, a saber: as novas estradas que penetravam por terras situadas fora do alcance do velho trólebus e do transporte de interligação sobre trilhos; o zoneamento dos usos do solo, que produzia áreas residenciais uniformes com valores imobiliários estáveis; as hipotecas, que, garantidas pelo governo, possibilitavam prazos longos e juros baixos absorvíveis pelas famílias de renda modesta; e a explosão de natalidade que ocasionou um súbito aumento na demanda de casas unifamiliares onde a petizada pudesse ser criada”. HALL, Peter. Op. cit., p. 345, grifos nossos.
15
“Rigidamente segregado por idade, renda e raça. Os que foram ali morar eram preponderantemente casais jovens, de renda média baixa e, sem exceção, brancos: em 1960, Levittown não tinha ainda um único negro e, em meados da década de 80, os que tem não atingem quantia signifcativa.[...] Portanto, Levittown, bem como seus incontáveis imitadores, eram lugares homogêneos: semelhantes viviam com semelhantes. E, segundo mostraram eloquentemente como St. Louis, grande parte da população que fugia da cidade para o subúrbio era branca: aqui, como em outras partes, os negros vinham dos campos para a cidade, enquanto, simultaneamente, os brancos deixavam as cidades pelos subúrbios”. HALL, Peter. Op. cit., p. 351.
16
OTTONI, Dacio Araujo Benedicto. Cidade-jardim: formação e percurso de uma ideia. In: HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanhã. 2a edição. São Paulo, Hucitec/Annablume, 2002, p. 71.
17
WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: o primeiro Bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial, 2001.
18
Idem, ibidem.
19
OTTONI, Dacio Araujo Benedicto. Op. cit., p. 71.
20
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2013.
21
SEVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Revista USP, São Paulo, n. 63, set./nov. 2004, p. 29.
22
CALDEIRA, Teresa Pires. Op. cit.
sobre os autores
Michele R. Bizzio fez licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais Unesp/Araraquara (2012) com intercâmbio acadêmico na Universidade de Coimbra/ Portugal (2011). Mestra em Ciências Sociais pela mesma instituição com a dissertação: Condomínios Residenciais Fechados: a urbanização do Grupo Encalso Damha em São Carlos SP (2015).
João Carlos Soares Zuin possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Araraquara (1989), mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (1994) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é professor doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Araraquara.