No trabalho postumamente publicado, O visível e o invisível, em 1964, Merleau-Ponty desenvolve o conceito de carne, o qual sintetiza a dinâmica relacional daquilo que percebe e daquilo que é percebido, problemática que rodeia toda a sua teoria da percepção. Para construir essa conceituação o filósofo parte de dois problemas básicos, contudo fundamentais: a relação do nosso corpo com as coisas do mundo e do nosso corpo com ele próprio.
A carne não é considerada nem matéria, nem espírito e nem substância. Merleau-Ponty (1) categoriza carne como elemento do ser e do mundo. É aderência ao lugar e ao agora. Possibilidade e exigência do fato. Facticidade. Ser elemento significa estar além da fisicalidade do mundo, é estar entre, é mediar relações.
“É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é moldado no sensível, todo ser táctil está voltado de alguma maneira à visibilidade, havendo, assim, imbricação e cruzamento, não apenas entre o que é tocado e quem toca, mas também do tangível e o visível que está nele incrustado [...] Há topografia dupla e cruzada do visível no tangível e do tangível no visível, os dois mapas são completos e, no entanto, não se confundem” (2).
O filósofo estabelece a primazia da percepção no discurso epistemológico na medida em que para pensar ou refletir sobre algo é necessário olhar e sentir de alguma forma. Isso significa a primazia da estética, da aisthèsis, da sensação como ponto de partida para a constituição do ser e de suas relações com o mundo. Isso se dá através de uma experiência fisicamente e conceitualmente carnal.
A carne é a espessura entre meu olhar e as próprias coisas, é o afastamento do corpo e ao mesmo tempo sua proximidade. “É que a espessura da carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade para ela, como de sua corporiedade para ele; não é um obstáculo para ambos, mas o meio de se comunicarem” (3).
É interessante notar que o filósofo francês Georges Didi-Huberman (4) ao discorrer sobre o problema da percepção, mais especificamente tratando de obras de arte, descreve o conceito de aura benjaminiana como um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado. O poder da distância de que fala Walter Benjamin, o poder da aura da obra de arte, parece ser uma espécie variante específica do poder da carne pontyana. Principalmente considerando que Merleau-Ponty (5) aponta em sequência três condições para o problema da percepção: imbricação, que indica um aspecto visceral da percepção; a espessura, que diz respeito ao grau de abertura ao sensível e ao campo de ação ou interferência sensível de algo; e espacialidade, que estabelece o paradigma da distância ou do espaçamento e é o meio onde as coisas acontecem. Essa enumeração é significativa pois posiciona o problema da percepção como também um problema do espaço. Passados mais de meio século da morte de Merleau-Ponty, isso é ainda discussão emergencial no campo das artes e da arquitetura. É excepcional como os artistas, teóricos e historiadores da arte já assimilaram a problemática da percepção e da potência do pensamento pontyano em relação às questões espaciais. Me preocupa mais a posição desinteressada e apática dos próprios arquitetos com essa discussão, que vai muito além de um prédio bonito ou feio, que de forma estridente, porém pouco ouvida, chega de encontro ao âmago da disciplina. E simplesmente, isso pouco tem importado.
“para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, e porque essa ruptura só pode ensinar-nos o brotamento imotivado do mundo. O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” (6).
Didi-Huberman (7) mostra a necessidade de compreender outro aspecto da aura, “que é o de um poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: ‘isto me olha’”. Parece que a aura benjaminiana funcionaria no sentido de abrir tanto o aspecto quanto a significação de alguma coisa. Isto é, um olhar impresso em um objeto de tal maneira a reconfigurá-lo na medida em que o próprio olhar também é reconfigurado, modificado, pelo objeto. Essa parece ser uma das razões de ser da arte e estabelece o ponto de virada na percepção no instante em o sujeito percebe a devolução do olhar por parte do objeto, a transformação acontece. Eu olho o objeto e ele me olha.
Didi-Huberman reconhece na Fenomenologia da percepção que a questão do espaço passa a ser referida como paradigma da profundidade. Mas o conceito de profundidade se refere a algo além de uma largura ou distância considerada de perfil, como concebia Husserl, ou seja, além de um mundo estável, com relações regulares e objetos inalteráveis.
“Mas o mundo estético – no sentido da aisthèsis, isto é, da sensorialidade em geral – nada tem de estável para o fenomenólogo; a fortiori o da estética – no sentido do mundo trabalhado das artes visuais –, que não faz senão modificar as relações e deformar os objetos, os aspectos. Nesse sentido, portanto, a profundidade de modo nenhum se reduz a um parâmetro, a uma coordenada espacial. Merleau-Ponty via nela antes o paradigma mesmo em que se constitui o espaço em geral – sua ‘dimensionalidade’ fundamental, seu desdobramento essencial” (8).
É nesse sentido que Merleau-Ponty (9) estabelece a relação entre a espessura do mundo e a de nosso corpo: “o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne”. Esse pensamento se constrói e tem validade na medida em que se supõe que o espaço terá influência direta na percepção e na ação das pessoas a partir, fundamentalmente, de seu aspecto físico. Não se trata propriamente de pensar a partir das características físicas, táteis e visíveis do espaço, mas talvez da atmosfera criada pela conformação dessas características. O que pode ser categorizado como atmosfera de um espaço ou lugar tem relação com a impressão geral que se tem da espacialidade e das relações de memória e imaginação atribuídas à experiência sensorial individual e coletiva no espaço. É importante observar que é possível ter diversas e distintas impressões estéticas de um mesmo lugar por pessoas diferentes, que construirão para si uma atmosfera única e que pode ter influências específicas das suas recordações e do seu próprio imaginário – o que não exclui a possibilidade de impressões semelhantes entre indivíduos distintos.
“Por isso o espaço – no sentido radical que essa palavra agora adquire – não se dá deixando-se medir, objetivando-se. O espaço é distante, o espaço é profundo. Permanece inacessível – por excesso ou por falta – quando está sempre aí, ao redor e diante de nós. Então, nossa experiência fundamental será de fato experimentar sua aura, ou seja, a aparição de sua distância e o poder desta sobre nosso olhar, sobre nossa capacidade de nos sentir olhados” (10).
Esse é um ponto importante e decisivo que Didi-Huberman aponta: a experimentação do espaço depende da nossa capacidade de nos sentir olhados, isto é, da nossa sensibilidade de ver o não visto, ou o não visível, de sentir o que não está ali na sua fisicalidade ou visibiliade para ser propriamente sentido. Isso se constitui um grande impasse na relação entre aquele que vê ou experimenta e aquilo que é visto ou experimentado. Se a experiência depende duplamente do espaço – ou da coisa – e de quem o percebe, a equação pode ser nula, isto é, em uma situação de apatia por parte do sujeito em um espaço insosso, isto é, que pouco acrescenta à sensorialidade, a troca simplesmente não acontece. Em uma situação ideal a lógica da dupla distância e da interferência entre a minha carne e a carne do mundo acontecem; no entanto, há o caso de não ver, mas ser visto. É que quando o objeto ou o espaço se configuram ao engajamento e o sujeito está em uma condição indisposta para a troca, sua percepção é minguada. Se minha carne não possui certo grau de plasticidade, o mundo real e o mundo possível permanecem neutros para mim. Assim, a interferência da carne do mundo em mim depende também da extensão da minha carne. Sobretudo, depende da disposição da minha carne para a experiência. A profundidade como conceito radical só acontece quando ela estiver implicada nos objetos, isto é, se “for capaz de produzir uma voluminosidade ‘estranha’ e ‘única’, uma voluminosidade ‘mal qualificável’ que Merleau-Ponty acabou concebendo segundo uma dialética da espessura e da profundidade” (11).
O conceito de quiasma, desenvolvido paralela e indissociavelmente do conceito de carne, elucida exatamente essa questão. O quiasma é fundado da lógica da reversibilidade do ato perceptivo, isto é, a ideia de que quando eu vejo, também sou olhado. Merleau-Ponty (12) diz que “é ela que faz com que nos pareça que a percepção se realiza nas próprias coisas”. Portanto, o corpo pertence simultaneamente à ordem do sujeito e à ordem do objeto. Essa dupla condição do corpo de atividade e passividade é um dos pontos centrais de toda a teoria da percepção. Se isso não acontece, se o entrelaçamento, o quiasma, não toma corpo, a percepção seria superfície plana e não espessura. Em uma analogia, seria pele e não carne. Uma película fina e delicada não deixa impressão que dure e transforme radicalmente. A impressão pode durar mesmo que o espaço ou a coisa deixem de existir. É necessário uma dinâmica visceral carnal para que a percepção seja mais que uma impressão. De outra forma, é como se a vida passasse pelos nossos olhos e não fizéssemos nada a respeito. A carne é, pois, abertura. A carne, enquanto elemento, é possibilidade, é abertura para outros olhares, percepções, experiências e modos de pensar. A distância é considerada por Didi-Huberman como choque: a distância teria a capacidade de nos atingir, de nos tocar, a distância ótica seria capaz de produzir sua própria conversão sensorial.
“O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experienciado ‘único’ (einmalig) e totalmente ‘estranho’ (sonderbar) de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância” (13).
Se, como propõe Merleau-Ponty (14), “é preciso pensar a carne [...] como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral”; isso significa que perceber implica uma intencionalidade corporal (15). Talvez o dilema da carne pontyana seja, portanto, muito semelhante ao da imagem aurática de Benjamin, na medida em que sentir a aura de alguma coisa seria “conferir-lhe o poder de levantar os olhos” a partir da experimentação dialética entre as distâncias contraditórias – simultaneamente próximas e distantes – daquele que percebe e aquele que é percebido (16). Ao ver uma coisa, essa coisa só me lança seu olhar de volta se houver alguma intencionalidade no meu ato perceptivo.
Para Benjamin, somente as imagens dialéticas são imagens autênticas:
“Uma imagem autêntica deveria se apresentar como imagem crítica: uma imagem em crise, uma imagem que critica a imagem – capaz portanto de um efeito, de uma eficácia teóricos -, e por isso uma imagem que critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para ‘trancrevê-lo’, mas para constituí-lo” (17).
Se tomarmos por imagem qualquer possibilidade do visível, tratar-se-ia de coisas, espaços, pessoas, animais, natureza, etc. O que é posto como imagem autêntica e por conseguinte, imagem crítica, pressupõe o olhar de alguém para que ganhe potência e espessura suficientes para que outro alguém possa vê-la como crítica. Primeiramente, isso significa que tal imagem é ou manipulada ou construída, de toda sorte, é uma criação, é algo novo. No mínimo, algo visto ou colocado de forma nova – lembro aqui do urinol de Duchamp. Isso feito, exige-se ainda que tal manipulação seja vista ou experimentada com criticalidade. Nessa conjuntura que Didi-Huberman constrói a partir de Benjamin, a imagem crítica pressupõe um sujeito crítico que possa olhá-la criticamente, o que conforma pelo menos duas questões ou condições problemáticas: 1) esse outro que olha deve ter um olhar atento a fim de ser crítico, isto é, ter uma certa educação formal ou informal que treina o olhar; 2) esse outro que olha deve estar disposto sensorialmente para se implicar no objeto ou espaço. O problema é que a primeira incorre no risco da hermeticidade da obra – e aqui já falamos em obra de arte ou mesmo arquitetura (e por obra de arte podemos ser bem abrangentes e ir da poesia ao teatro, da dança à pintura ou escultura) – o que implica a necessidade de um público específico para apreciação da obra. Esse pensamento já pressupõe a existência do segundo problema, o que pode soar como arrogância, prepotência ou sentimento de superioridade intelectual por parte de quem cria. A crítica que fazemos a essas condições indica um sintoma: o agravamento do embotamento das pessoas, não somente para com as obras e expressões artísticas, mas, e sobretudo, em relação às coisas do cotidiano de modo geral. Se a obra crítica potencializa a construção de outras percepções, ela dispensaria qualquer tipo de preparação ou educação estética: sua pretensão é exatamente a recuperação do corpo reprimido e anestesiado à condição sensível. Nesse sentido, os desconstrutivistas na arquitetura utilizaram estratégias de desfamiliarização através do choque e do excesso, isto é, do confronto – quase que obrigado – do corpo com o espaço estranho, agressivo, torto, “instável” (18).
Henri Bergson já enunciava ao final do século 19 e início do 20 que a percepção varia de acordo com o grau de atenção à vida com o qual as pessoas experienciam seus momentos. Isso é um enunciado importante pois a partir do século 19 uma série de patologistas urbanos como os sociólogos alemães Siegfried Kracauer (1889-1966), Georg Simmel (1858-1918) e o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) passaram a identificar um aumento significativo da apatia das pessoas na vida urbana. Simmel (1979) sugeriu que os sujeitos urbanos tiveram que desenvolver um senso de reserva, uma atitude blasé, como resposta à ultra-estimulação e ao contato incessante com estranhos na cidade moderna. Os problemas mais graves da vida moderna derivariam da reivindicação do indivíduo de preservar a autonomia e a individualidade de sua existência. Em face à desordem da saturada metrópole moderna, Simmel (19) argumenta que a “pessoa moderna sensível e nervosa” exigia um grau de isolamento espacial como um tipo de ação profilática contra a intrusão psicológica. Se tal limite pessoal fosse transgredido, uma deformação patológica poderia ser observada no indivíduo, que apresentaria todos os sintomas do que o autor chamou “medo de toque”, ou o medo do estranho, do contado com o outro, isto é, uma repressão da alteridade. Simmel evidencia que “o homem é uma criatura que procede a diferenciações” (20), isto é, sua mente é estimulada pela diferença entre impressão de um dado momento e a que a procedeu. Assim, a anestesia da percepção decorrente da atitude blasé consiste na neutralização do poder de descriminar. O teórico americano Anthony Vidler (1941-) aponta que foi essa mesma natureza de relações sociais na cidade grande que forçou distância e, por conseguinte, alienação, especialmente para autodefesa e por razões funcionais. Distância era primeiramente um produto da onipotência de visão, em oposição ao conhecimento dos indivíduos baseado em intimidade e comunicação oral em uma comunidade pequena; as conexões metropolitanas eram rápidas, fugidias, e oculares (21).
Se Bergson, em Matéria e Memória, de 1896, anuncia a atenção como habilidade seletora e potencialidade para perceber as coisas de outra forma, ele também aponta que o único dispositivo de que dispomos para construir o alargamento da percepção é nossa imaginação. Carman (22), ao discorrer sobre esse processo na teoria de Merleau-Ponty, reconhece a imaginação como criadora do espaço das possibilidades no qual os objetos podem aparecer para nós como objetos de conhecimento. Isso só acontece pelo entrelaçamento – quiasma – entre minha carne e a carne do mundo: “é que o próprio olhar é incorporação do vidente no visível” (23).
“o vidente, estando preso no que vê, continua a ver-se a si mesmo: há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que, também ele sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como disseram muitos pintores, o sentir-se olhado pelas coisas, daí, minha atividade ser identicamente passividade – o que constitui o sentido segundo e mais profundo do narcismo: não ver de fora, como os outros vêem, o contorno de um corpo habitado, mas sobretudo ser visto por ele, existir nele, emigrar para ele, ser seduzido, captado, alienado pelo fantasma, de sorte que o vidente e o visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e quem é visto” (24).
Na medida em que ao ver, novas relações podem ser estabelecidas, a atenção (25) ultrapassa a função seletora para ser um mecanismo de caráter criador. Merleau-Ponty (26) explica que ela “supõe primeiramente uma transformação do campo mental, uma nova maneira, para a consciência, de estar presente aos seus objetos”. Seria uma ação para além da seleção e distinção das figuras e seus fundos, incorporando a eles uma articulação nova. “Assim, a atenção não é nem uma associação de imagens, nem o retorno a si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então só se oferecera como horizonte indeterminado” (27). Bergson (28) vai dizer que essa mesma percepção que atua na construção de possibilidades de ação é impregnada de lembranças. A memória constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo do conhecimento das coisas (29). Essa argumentação daria suporte à noção de imagem dialética benjaminiana recuperada por Didi-Huberman, a qual não se realiza sem “um trabalho crítico da memória, confrontada a tudo o que resta como indício de tudo o que foi perdido” (30). Isso significa que, a despeito do primeiro problema da imagem crítica discutido anteriormente – o olhar atento e crítico, que a princípio seria um olhar especialista – a partir de um esforço conjunto entre corpo e mente, a percepção, enquanto uma habilidade, é passível de alargamento. A imagem crítica, portanto, simultaneamente exige e força esse alargamento. Esse sujeito de percepção alargada se assemelha à noção de “vagabundo” que Benjamin constrói em Passagen-Werk – “As passagens” (31) – evocando o flâneur urbano, celebrou a arte de caminhar lentamente como o instrumento de mapeamento urbano moderno. Ele complementou a figura “dandificada” daquele que anda vagarosamente (stroller) por outra imagem mais subversiva: a do “vagabundo que, sozinho, criminoso e exilado, possuía a visão marginal que transgrediu limites e os transformou em limiares” (32). Essa visão, ou melhor, essa condição marginal que exige outra sensibilidade – talvez uma de tipo estratégico e de sobrevivência – é um exemplo extremo de alargamento perceptivo em confluência, por exemplo, com o pensamento Situacionista desenvolvido nos anos 1950-60, que interpretou lucidamente as transformações de uma sociedade dedicada ao consumo material em uma cultura que se alimenta de imagens e informação e, finalmente, por ter reclamado o espaço público como um locus de criação cultural e ação política.
Dessa forma, a grande contribuição de Maurice Merleau-Ponty às teorias da percepção foi reposicionar a natureza do problema estético, não somente na filosofia, mas na vida de modo geral. O problema da estética é o problema do corpo e da sua relação sensível com as coisas e o mundo, que envolve a construção de memórias, imaginações e possibilidades de ação. O filósofo atribuí ao fenômeno da percepção o poder criativo do homem e, por conseguinte, o ponto de origem da produção do conhecimento. Quando houver um entendimento coletivo de que o conhecimento se dá primeiramente por sensação e sentimento, que “movimento, tato, visão aplicam-se [...] ao outro e a eles próprios [...] e, no trabalho paciente e silencioso do desejo, começa o paradoxo da expressão” (33), será possível que o embotamento e a anestesia coletivos sejam superados. A abertura para o estético potencializa a alteridade e pode ter importantes implicações políticas, culturais e mesmo ecológicas para a vida em sociedade.
notas
1
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo, Perspectiva, 2009.
2
Idem, ibidem, p.131.
3
Idem, ibidem, p.132.
4
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 2010.
5
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit).
6
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 10.
7
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 2010, p. 148.
8
Idem, ibidem, p. 163.
9
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit), p. 132.
10
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 164.
11
Idem, ibidem.
12
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit), p. 238.
13
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 148.
14
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit), p. 143.
15
Cf. CARMAN, Taylor. The Body in Husserl and Merleau-Ponty. Philosophical Topics, vol. 27, n. 2, outono 1999. p. 206.
16
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. p.148.
17
Idem, ibidem, p. 171-172.
18
Para aprofundamento sobre estratégias desfamiliarização, cf. VIDLER, Anthony. The Architectural Uncanny: essays in the modern unhomely. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1992. Verificar em particular as estratégias disjuntivas do arquiteto Bernard Tschumi In TSCHUMI, Bernard. Architecture and Disjunction. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1996.
19
SIMMEL, Georg; VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 133 p.
20
Idem, ibidem, p. 14.
21
VIDLER, Anthony. Op. cit.
22
CARMAN, Taylor. The Body in Husserl and Merleau-Ponty. Philosophical Topics. vol. 27, no. 2, outono, 1999, p. 205-226.
23
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit), p. 128.
24
Idem, ibidem, p. 135.
25
Cf. KELLY, Sean Dorrance. Seeing things in Merleau-Ponty. Princeton University, 2003. 29p. Husserl usa o termo atenção para explicar a distinção entre aqueles objetos que são experienciados como figura e aqueles que formam o fundo, ou o espaço ao redor, de modo a destacar a figura em questão.
26
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção (op. cit), p. 57.
27
Idem, ibidem, p. 59.
28
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
29
Bergson inverte todo o paradigma da teoria da memória ao criticar a visão metafísica de que existiria apenas uma diferença de intensidade, e não de natureza, entre a percepção pura e a lembrança. “Fazendo-se da lembrança uma percepção mais fraca, ignora-se a diferença essencial que separa o passado do presente, renuncia-se a compreender os fenômenos do reconhecimento e, de uma maneira mais geral, o mecanismo do inconsciente”. BERGSON, Henri. Op. cit., p. 70.
30
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 174.
31
Cf. BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf; BOLLE, Willi.; MATOS, Olgaria C. F.; ARON, Irene. Passagens. Belo Horizonte, Editora UFMG; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
32
VIDLER, Anthony. Warped Space: Art, Architecture and Anxiety in Modern Culture. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 2001, p. 74.
33
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível (op. cit), p. 140.
sobre o autor
Diogo Ribeiro Carvalho é arquiteto urbanista pela UFMG. Professor Assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Coordenador do Eixo de Teoria e História e do Ciclo Básico. Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG.