O Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (Nutau USP) vêm considerando desde 2011 os concursos públicos como uma de suas principais estratégias de pesquisa e inovação, buscando a adoção de um novo paradigma de projeto que se baseia nas seguintes considerações conceituais:
– o paradigma funcionalista/racionalista está em crise há pelo menos sete décadas e é incompatível com a sociedade atual, mais livre, conectada e fluida espacialmente, que busca ser menos impactante com relação ao meio ambiente;
– há a necessidade de novas possibilidades tecnológicas, espaciais e formais para o desenvolvimento sustentável;
– há urgência na adoção de linguagens novas, originais e não imitativas adequadas à era do conhecimento, da complexidade e da sustentabilidade.
Acredita-se que os concursos de projetos permitam melhor reflexão e exercício da arquitetura e do urbanismo. Esses certames são costumeiramente acompanhados por polêmicas, muito saudáveis, pois raramente há unanimidade, tornando-se campo fértil para exploração de novos modelos de pesquisa e inovação, fundamentais no âmbito universitário, superando a estagnação conceitual e de realizações.
Apesar de apenas uma pequena parte das propostas vencedoras dos concursos públicos (menos de 10%) serem efetivamente realizadas, o simples processo competitivo avança a compreensão e o conhecimento numa área dinâmica como a da Arquitetura e Urbanismo, que se nutre das inovações científicas, tecnológicas e conceituais do mundo atual, em rápida transformação socioeconômica e territorial.
Em termos internacionais os concursos sempre tiveram significado como geradores de rupturas conceituais e transições entre épocas. No Brasil também marcaram referências novas, que refletiram o momento cultural, consolidado ou emergente. A responsabilidade do júri nos concursos é enorme, seja confirmando o paradigma dominante ou, no caso de crise no âmbito deste, identificando o emergente que supera o anterior, numa alusão à teoria sobre ciência de Thomas Kuhn (1).
Recentemente foram motivo para participação e reflexão da equipe do Nutau USP dois concursos realizados em Brasília e em Curitiba. Ambos apresentaram oportunidades arquitetônicas e urbanísticas ao intenso estudo e proposição dos pesquisadores do núcleo, em parceria com oriundos de outros centros universitários e técnicos. O objetivo de todos participantes é produção de uma arquitetura e urbanismo embasados em paradigma contemporâneo emergente e inovador do conhecimento, baseado na complexidade e sustentabilidade, conforme idealizado por Blasi e Padovano, professores do Poltécnico de Milão (2) e o método de projeto inspirado no movimento de seres vivos do professor Anthony Viscardi da Universidade Lehigh dos EUA.
No concurso de Brasília promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil do Distrito Federal (IAB/DF), a demanda era a concepção de passagens subterrâneas para pedestres e ciclistas no grande eixo norte-sul. Para tanto, a proposta da equipe internacional dominada pelo Nutau USP desenvolveu a sua proposta “Sucuri”, inspirada na pele “descascada” dessa serpente, típica do ecossistema Cerrado de Brasília.
A proposta arquitetônica e urbanística possui cobertura e estrutura em aço cortén, com malha com geometria orgânica e membrana de etileno fluoroetileno. Desenvolve-se sobre os trechos abertos da passagem subterrânea, com mais de 200 metros de extensão, com lojas, quiosques e outros equipamentos urbanos, mostrada nas figuras, numa retomada de valores mais orgânicos sobre os dominantes do Plano Piloto, onde domina a racionalização da trama urbana, rodoviária com grandes distâncias a serem percorridas formando estrutura urbana dilatada e pouco flexível.
A proposta do Nutau, que preenche os vazios entre estreitos corredores sob as vias estruturais das asas norte e sul foi premiada com uma menção honrosa e elogiada pelo júri pela solução dada à cobertura, porém considerada como portadora de uma “linguagem equivocada” pelo júri, demonstrando sua estranheza com o novo paradigma.
Reconhece-se que esta solução certamente não é alinhada com as características arquitetônicas e urbanísticas originais do Plano Piloto, com edifícios isolados em formato de blocos ou torres distribuídos em imensos espaços abertos, que isolam as funções da cidade. Pelo contrário, numa analogia com a natureza entendida por “mãe e professora” (natura mater et magister) como defendeu Santiago Calatrava, buscou uma alternativa ao desenho de inspiração maquinista do paradigma racionalista/funcionalista.
Outro concurso, recentemente julgado, que o Nutau participou é o da estruturação do Campus Cabral da UFPR – Universidade Federal do Paraná em Curitiba, pequeno centro universitário voltado ao design, música e o cunho cultural, promovido pela própria universidade.
A proposta elaborada pelo Nutau USP em estreita colaboração com o Laboratório de Arquitetura e Território Sustentável do Politécnico de Milão é também embasada no paradigma da complexidade e sustentabilidade, e é assim sintetizada:
– desenho inspirado num corte de uma árvore Araucária, espécie típica do ecossistema da Mata Atlântica, especialmente na região de Curitiba;
– adoção de uma arquitetura bioclimática;
– as novas tecnologias utilizadas são voltadas à sustentabilidade;
– há uma clara ruptura com o paradigma anterior, sincrônica com as teorias pós-fordistas defendidas por arquitetos contemporâneos como Zaha Hadid e Daniel Libeskind.
As figuras mostram o espaço universitário concebido, que convive com as fronteiras do conhecimento, gerando espaços de grande força plástica e espacial, em oposição com as linguagens normalmente empregadas em concursos, com soluções imitativas dos modelos racionalistas, funcionalistas e desatualizadas com relação às pesquisas mais avançadas e atuais.
Neste concurso o trabalho do Nutau USP foi aprovado na primeira fase de julgamento, mas em seguida eliminado pelo júri na etapa final.
Entendem os pesquisadores do Nutau USP que, mesmo com esses resultados parciais sofríveis, é preciso continuar a investir numa postura mais corajosa e criativa, necessária na cultura arquitetônica e urbanística brasileira para romper com práticas obsoletas e imitativas, próprias do paradigma superado.
Claro que não se deve generalizar esta conclusão ampla, pois há exceções louváveis de arquitetos e urbanistas locais que tem a coragem de procurar caminhos mais condizentes com a sociedade atual.
Como conclusão, espera-se que em futuros concursos novas ideias continuem a surgir no Nutau, com a participação de seus pesquisadores, consultores, professores e estudantes da USP, lado a lado com aqueles oriundos de outros centros internacionais e nacionais de pesquisa.
Esta corrente deve voltar-se para a atualização do ensino, pesquisa e o exercício profissional das fronteiras da arquitetura e do urbanismo brasileiros, no lugar privilegiado que a universidade deve ocupar na geração de novas concepções para enfrentarmos os grandes desafios do nosso momento histórico.
notas
NE
Versão sintética da seguinte publicação: PADOVANO Bruno Roberto; RIGHI, Roberto. Campo fértil para a criatividade. Jornal da USP, São Paulo, ano XXVIII, n. 974, seção Ensaio, 24-30 set. 2012, p. 12-13.
1
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1987.
2
BLASI, Cesare; PADOVANO, Gabriella. Teorie do Progettazione e Pianificazione. Milão, Etas Libri, 1989.
sobre os autores
Bruno Roberto Padovano é professor adjunto da FAU USP e coordenador científico do Nutau USP.
Roberto Righi é professor titular da FAU Mackenzie, professor doutor da FAU USP, pesquisador e conselheiro do Nutau USP.
ficha técnica
Equipes de pesquisa:
1. Projeto Sucuri
autores
Sidney Schwindt Linhares (coord.), Bruno Roberto Padovano
colaboradores
Davide Burgazzi, Federica Motta, Stefano Baggio
consultores
Issao Minami, Ivan Rumenov Shumkov*, Suzana Mara Sacchi Padovano e Viviane Milaus Nassif
*PRATT – Institute of New York
2. Projeto Araucária
autores
Roberto Righi (coord.), Attilio Nebuloni*, Bibiana Carreño, Bruno Roberto Padovano, Cesare Blasi* e Gabriella Padovano*
colaboradores
Davide Burgazzi, Federica Motta, Galileo Morandi*, Silvia Bortolotti* e Stefano Baggio
consultor
Sidney Schwindt Linhares (Paisagismo)
*Politécnico de Milão