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MENEGUELLO, Cristina. A preservação do patrimônio e o tecido urbano. Parte 1: A reinterpretação do passado histórico. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 003.05, Vitruvius, ago. 2000 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.003/992>.

A preservação dos antigos centros ou de partes da cidade, seja no Brasil ou no exterior, exige a revisão de conceitos fundamentais como a preservação do patrimônio, o novo uso conferido às áreas preservadas e, especialmente, as diferentes interpretações do passado histórico urbano. Seja pelo fato de estas áreas terem admitido diferentes utilizações em função do crescimento das cidades, seja pelos usos que edifícios tombados assumem dentro da trama urbana hoje, é difícil tratar a questão em toda sua complexidade se optarmos por um olhar nostálgico que valorize apenas a preservação per se.

O uso dado aos imóveis tombados pelo patrimônio histórico muitas vezes leva a uma elitização de sua fruição; e por vezes é difícil negar sua incompatibilidade com o crescimento voraz da cidade. Por este motivo a questão da reinterpretação do passado se impõe. Somente uma conceituação complexa de um passado histórico descontínuo e reconstruído pode ultrapassar as materialidades mais imediatas e alinhar a preservação do patrimônio às questões prementes trazidas pela globalização, como o uso turístico dado a edificações e regiões da cidade e a necessidade de redefinir os centros urbanos em função das exigências do capitalismo financeiro. Finalmente, cabe questionar para quem se preservam áreas e imóveis, por que e em nome de que passado. Afinal, embora a preservação urbana tenha sido realizada em nome da manutenção de uma linha de continuidade com o passado, "a preservação deve ser pensada como trabalho transformador e seletivo de reconstrução e destruição do passado, que é realizado no presente e nos termos do presente" (2).

As estratégias de preservação do patrimônio e de tombamento de edifícios ou regiões afetam não apenas o traçado urbano das cidades mas os usos dos mesmo locais. O fato de as práticas de preservação terem sido transformadas em "tema favorito" dos meios de comunicação e do discurso político é um dado alarmante exigindo que essas sejam questionadas para além de sua faceta "positiva" e no que concerne o estabelecimento da identidade e pertencimento conferido pelo patrimônio.

A apropriação da história deve vir não apenas como "citação material" (e necessariamente visual) do passado, mas como trazendo em si a possibilidade de transformação. O patrimônio, noção que em Roma definia apenas o direito de herança, adquire seu caráter público a partir do Renascimento, valorizador da herança artística legada pela Antigüidade; e seu caráter de direito de memória quando o Estado, a partir do século dezenove, registra a materialidade do passado e estabelece a identidade nacional. Já a noção de patrimônio urbano, preconizada em países como a Itália apenas a partir da década de 60 de nosso século, atinge o status de bem de significação cultural e humana a ser conservado e restaurado (Carta de Veneza, 1964), embora práticas difusas de preservação já existissem, também no Brasil, desde a década de 1910, incrementadas com a rápida urbanização do início do século.

A preservação do patrimônio surge como uma necessidade exatamente no momento de desaparecimento dos traços urbanos do passado. Os países europeus, ao enfrentarem o processo de industrialização acelerada que descaracterizava, demolia e alterava as conformações das antigas cidades, foram os primeiros a proclamarem a necessidade de "proteger" edifícios e regiões do desmedido crescimento da cidade que demandava mais e mais espaços. Segundo Françoise Choay, a Inglaterra preconizou ainda no início do século dezenove o movimento pela preservação de edifícios, num processo que conquistaria a participação do grande público durante o fenômeno das demolições maciças dos anos 1960 e 1970 (3).

A primeira conferência internacional para a conservação dos monumentos históricos aconteceu em Atenas em 1931, reunindo países da Europa; a segunda, em Veneza em 1964, contou com a participação de Tunísia, México e Peru; por fim, em 1979, 24 países dos cinco continentes participaram do estabelecimento do conceito de um patrimônio mundial. Desde os primórdios estabelecia-se a tensão entre, de um lado, os arquitetos que criticam a conservação intransigente pois almejam marcar o espaço com novas construções; de outro lado, os defensores da proteção das características da cidade contra as marcas trazidas pelo criticado "progresso urbano". Um terceiro grupo, os proprietários dos imóveis tombados, passou a reivindicar o direito de dispor de seus bens para proveito próprio (4).

A compreensão do patrimônio está atrelada à compreensão da idéia de monumento histórico. O monumento é uma interpelação da memória; não apresenta nem carrega em si uma informação neutra, mas traz uma memória viva. Choay trabalha com a distinção entre monumento e monumento histórico. O sentido inicial do monumento é o de rememoração, para uma comunidade de indivíduos, de outras gerações de pessoas, eventos, ritos, crenças; faz o passado vibrar dentro da existência do presente, é um universal cultural cuja função é mobilizar a memória coletiva e afirmar a identidade do grupo. Entretanto, essa função de memória vai sendo progressivamente apagada, e o monumento torna-se a partir do século dezenove primordialmente uma experiência estética. Quatremère de Quincy designa que o monumento é construído para estabelecer o que é memorável (o monumento deixa de ser evidência da memória e passa a criá-la), ou seja, o monumento histórico é um agente de embelezamento das cidades. Ele passa a ser também a afirmação do design público, dos estilos, de manifestação estética. Como conceito estético, ele existe, assim, para o consumo imediato (5).

Logo, o monumento histórico não é um dado sempre existente, mas uma invenção ocidental datada que ganha força a partir da segunda metade do século dezenove (na França, por exemplo, a expressão monumento histórico vai entrar no dicionário na segunda metade daquele século). No mesmo momento em que Guizot cria o posto em 1830 de inspetor de Monumentos Históricos, na Inglaterra John Ruskin publica um panfleto sobre a inauguração do Crystal Palace, em que discute a importância da preservação dos edifícios históricos. O Palácio de Cristal, edificação em ferro e vidro concebida para a Exposição Universal de Londres, surgia como um marco da arquitetura industrial.

Portanto, a consagração do monumento histórico surge na Inglaterra e na França ligada ao evento da era industrial, justamente como testemunha do varrer de áreas inteiras das cidades em função do crescimento urbano, seja ele em forma de celebração – grandes edifício públicos que atestam a riqueza – seja no crescimento desordenado proporcionado pela construção de habitações operárias (os cortiços, os slums) feita por empreiteiros (6).

De modo geral, a noção de patrimônio urbano se constitui contra o processo de urbanização dominante, numa relação de contínua reinterpretação do que seria a cidade antiga – inclusive com as idéias de uma esfera pública ideal. No entender de Ruskin e William Morris, a cidade em si possuía o papel de monumento, cujos habitantes estariam alheios ao espaço e tempo da transformação industrial. Foram os primeiros a defender a sobrevivência ou o retorno da vida pré-industrial – a nostalgia inglesa – que alimentou, em parte, os planos de comunidades ideais que culminaram, um século mais tarde, no ideal da cidade jardim. A cidade antiga e suas ruínas, visitadas e revistadas pelos arquitetos e artistas do século dezenove, começam neste momento a ter um caráter de museu "ao ar livre".

Vários autores já reconheceram em nosso século a transformação de todos os objetos do passado em testemunho histórico, mesmo que em seu princípio não fossem destinados à memória histórica. Isso deu origem em países da Europa a concepção de que todo artefato humano pode ser investido de uma função de rememoração, de uma vontade de escapar à ação do tempo. Na síndrome do patrimônio vivida a partir dos anos 1970-80, e denominada por Pierre Nora como "fúria preservacionista" (7) ou por Choay como "complexo de Noé", a preservação fez-se em nome desse "passadismo". Os edifícios autênticos e seus simulacros, justificados por um vago conceito de democratização cultural, funcionam mais como uma satisfação dada ao intelecto (uma vontade de arte) do que uma experiência artística em si, ou seja, a fruição é dominada pelo afetivo e pelo crivo do nostálgico.

Em suma, o "fato patrimonial" é dotado de três características: o destino das obras e objetos, a representação da coletividade e a interpretação do passado (8). A essência do monumento está exatamente nesta relação entre o tempo vivido e a memória, onde o restante é contingente enquanto ele é um valor universal.

A "necessidade por passado" pode ser entendida então como do reino da nostalgia, a "memória subtraída da dor" como o definiu David Lowenthal (9). Os traços do passado da cidade - suas ruínas - são, simultaneamente, sinais de um passado imaginado que tem o poder de nos reconfortar, como sinônimo de uma proximidade; sinais de um passado artístico; marca de uma continuidade e de um finalismo (como obra terminada, acabada, nos dão a segurança e o apaziguamento do momento em que o passado se deixa captar como modo estético). Os monumentos históricos funcionam então como representações ou ícones de um passado atemporal, uma criação artística do passado e simbólica do presente, dentro de um sentido de eternidade.

notas

1
A segunda parte deste artigo pode ser lido em: MENEGUELLO, Cristina. "A preservação do patrimônio e o tecido urbano. Parte 2. Manchester, Dublin e São Paulo: reflexões a partir de três estratégias para a recuperação do passado urbano". Arquitextos, Texto Especial nº 008. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2000 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp008.asp>.

2
ARANTES, Antonio Augusto (org). Produzindo o Passado. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.

3
CHOAY, Françoise. L’Allégorie du Patrimoine. Paris, Éditions du Seuil, 1992.

4
No Brasil a legislação dificilmente privilegia o interesse privado e a mera isenção de impostos não tem sido suficiente para a manutenção da construção, que finda por sofrer a ação do descaso.

5
Cf Quatremère de Quincy.

6
POULOT, Dominique. "Le sens du patrimoine: hier et aujourd’hui" in Annales ESC, Armand Colin, nov-dec, nº 6, 1993. Poulot contesta a datação fornecida por Choay considerando que o trabalho dos antiquários no século dezessete já anuncia a preocupação com o patrimônio, além de considerar que a cronologia cultural é autônoma em relaçao ao evento da revolução industrial.

7
NORA, Pierre (org.) Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.

8
POULOT, Dominique. Op cit.

9
LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

sobre o autor

Cristina Meneguello é doutora em História, e professora do IFCH Unicamp (cursos de história e arquitetura).

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