Caminhando em direção à segunda metade da última década do século, a ansiedade característica de épocas de transição se torna mais explícita e coloca para nós, arquitetos, a necessidade de se alcançar novas alternativas fora das dicotomias das críticas de arquitetura e desenho urbano convencionais. Depois das a-geografias do urbanismo moderno e das intervenções pontuais e contextualizadas do pós-modernismo, um conjunto de discussões sobre novas formas de urbanidade têm emergido, mesmo que provavelmente haja apenas um único denominador comum compartilhado por elas: a cidade, objeto de pensamento e sítio de uma intervenção, é agora colocada como uma tentativa de se revelar, compreender, e transformar os vários estados de realidade que as limitações políticas, estilísticas, e tecnológicas de arquiteturas passadas foram incapazes de propor. Se tais discussões gerarão melhores padrões de organização urbana é ainda um fato duvidoso, mas cabe alentar que ao menos está-se forjando novas possibilidades para a resolução do predicamento das cidades.
Dentro dos mais recentes debates sobre a relação cidades/novas tecnologias emergentes, o mais sedutor parece ser o que diz respeito às cyber-cidades: a manifestação das últimas conseqüências da ‘compressão espaço-tempo’,(1) onde as condições de espacialidade e temporalidade são radicalmente transformadas no mundo da realidade virtual. Estas novas ‘cidades’ - dizem seus entusiastas – transformam a noção do tempo e do espaço (agora visualizado em redes de computadores), interligando lugares fisicamente distantes ao redor do mundo, e comunicando vastas concentrações de informação estocadas como códigos eletrônicos.(2)
Conceitualmente, a principal diferença entre a cyber-cidade e as cidades tradicionais reside na idéia de matriz. A noção universal de espaço que predomina até os dias presentes é dominada pela malha cartesiana, o sistema de coordenadas que define o espaço e o lugar arquitetônicos segundo as noções clássicas de geografia e matemática. Por outro lado, a matriz não possui presença física nem lugar. Ela é exemplificada como pontos em uma superfície que não têm necessariamente nem tamanho, nem dimensão, e nem distância, possibilitando a emergência de estruturas urbanas imanentes e definindo, ao invés do lugar, o qualquer lugar, o lugar nenhum, a singularidade.(3) A matriz do cyber-espaço é o cerne das novas geometrias da cidade-informação e possibilitará, para alguns autores, o surgimento de um conceito que está ligado à auterídade da teoria crítica pós-moderna: o lugar que é sempre outro, sempre diferente, o sítio de uma individualidade não mais passível de pertencer ao âmbito das generalidades. É o lugar que desafia os princípios de classificação científica, algo como a tradução espacial das considerações metafísicas de Jean Baudrillard à respeito de seu ‘objeto como atrativo estranho’.(4)
Em outro campo dos estudos culturais, Paul Virilio e suas imagens niilistas da cidade em desaparecimento coloca que as ‘topografias cronológicas’ substituem espaços geográficos construídos, onde transmissões eletrônicas decompõem e erradicam o senso de lugar. A cidade de Virilio perde sua forma exceto como um ponto de conecção onde o aeroporto determina papel primordial, a periferia se transforma no centro, e as praças são substituídas pelos telejornais e monitores de computadores.
Algumas narrativas dos textos de ficção científica assumem explicitamente que uma profunda mutação tem acontecido nas cidades contemporâneas, envolvendo a passagem da cidade-máquina para a cidade-informação. A ‘netrópolis’ do escritor de ficção científica William Gibson parece ser um meta-espaço, ou hiper-espaço, superimposto acima do nível da realidade, cujo efeito visual, segundo o próprio Gibson, é o mesmo de uma vista noturna de Los Angeles a 1500 metros de altura.
Mas afinal, aonde a cyber-cidade nos levará? A uma conectividade total que promete a estruturação de novas comunidades não-hierárquicas, multicentralizadas e abertas? Ou estas inovações técnicas cairão, mais uma vez, sobre os controles massivos dos aparatos de poder e conhecimento, relegando todos os avanços tecnológicos às corporações retrógradas e reacionárias? Estamos em direção a uma cidade mais democrática que se viabilizará graças à internet e ao correio eletrônico, ou à imagem onipresente e totalitária do big brother de George Orwell ? Quais serão as conseqüências geradas por esse imaginário eletrônico que simula, ao invés de refletir ou representar as interações da realidade?
Parece que certas intervenções concretas ocorridas recentemente dividem certas características com a cyber-cidade, e nos apontam uma das facetas materializadas do mundo da telemática. Tentar cruzar as fronteiras da prática e teoria em território tão pouco delimitado é tarefa delicada, mas penso que não seria exagero comparar a reestruturação dos vazios urbanos das cidades desindustrializadas com a cidade-informação, e tomo como exemplo a experiência de Docklands em Londres.
Aqui, a desregulamentação da área onde se situavam as antigas docas deu lugar a uma gigantesca empresa cujo intento seria fortalecer a imagem de Londres como a principal capital financeira da Europa compondo, juntamente com Tókío e Nova York, os três maiores pólos de concentração das grandes corporações multinacionais. A construção de uma imagem que atraísse o flutuante capital internacional se tornou, desde os anos oitenta, um aspecto vital na competição entre cidades européias, um processo cujo objetivo seria forjar as condições específicas das Cidades Mundiais: as cidades dos centros dos transportes e comunicações globais; da produção e distribuição de notícias, informações, e cultura; dos escritórios projetados para suprir as demandas da nova época do comércio; dos espetáculos que atraem anualmente milhões de visitantes ávidos por novidades. Para que tudo isto fosse realizado, o governo Margareth Thatcher retirou todos os poderes das comunidades locais e, em nome do neo-liberalismo pós-welfare state, apostou cegamente nas conseqüências da teoria tríckle-down (segundo a qual benefícios financeiros provindos das grandes empresas chegariam às empresas menores e aos consumidores). Os resultados da ressaca do thatcherismo podem ser verificados facilmente nas centenas de escritórios vazios de Docklands e nos edifícios que tiveram que ser demolidos mesmo antes de serem ocupados devido aos seus altos custos de manutenção.
Não poderei descrever com detalhes a experiência de Londres, mas parece claro que a intensa taxa de circulação financeira e de informações tem provocado, paradoxal e simultaneamente, uma progressiva dissolução de fronteiras culturais e territoriais, e uma cultura de sabores locais sintéticos que transforma a intenção de se edificar espaços diferenciados em replicações seriais de homogeneidade.(5) Nesse sentido, torna-se difícil acreditar nas promessas do espaço da auteridade da cyber-cidade e no futuro otimista da vila global. Hoje, o impacto dos processos de globalização sobre a cultura da arquitetura deixou de ser simples especulação: o maior arranha-céu de Canary Wharf em Londres, de autoria de Cesar Pelli, possui um clone perfeito no Battery Park de Nova York -, a maioria esmagadora dos blocos de La Defence, em Paris, é completamente inexpressiva; e os edifícios construídos nas antigas docas de Sydney poderiam ter sido implantados em qualquer outra cidade. No mundo do desenho urbano contemporâneo, o excesso de comunicações tem levado a um certo tipo de inércia estética, algo que não pode transcender-se e que portanto volta a si mesmo, repetindo-se a uma taxa cada vez mais rápida. A fascinante super-conectividade mundial tem produzido, ironicamente, a fabricação de lugares pseudo-diferenciados, reflexo talvez da fragilidade das ideologias e instituições que seriam capazes de rearticular e suportar uma nova arquitetura para uma nova era.
Curiosamente, enquanto a experiência do espaço vivenciada pela presença e movimento do corpo humano é radicalmente negada na cyber-cidade, Londres está agora dominada pelos corpos dos sem-teto que habitam as soleiras de The Strand e Charing Cross Road; corpos muito mais presentes que os nossos porquê marcados pelos traços das dificuldades da vida urbana. Assistimos, portanto, a uma espécie de vingança do corpo: quanto mais se ignora a relação entre espaço e corporeidade, mais o próprio corpo indica sua marginalização pelos discursos intelectuais e políticos. Sinal sintomático. Se a matriz da cyber-cidade nos permite estar em um movimento virtual constante que nos liberte das máquinas espaciais repressivas descritas por Michel Foucault, suas alternativas ainda não indicam uma fundação que possa substituir o espaço da cidade do século vinte. Enquanto raças, credos, culturas e rituais pululam pelas cidades e esbarram em nossos carros, os computadores são uma ótima solução : nas redes de trabalho, podemos recusar demandas corporais e mergulhar nas conecções onde o corpo, a tecnologia, e as comunidades são fundidas - mas fundidas apenas nas metáforas embriagadoras da cyber-cidade.
Se existe algum futuro plausível em toda esta discussão, ele reside na fusão efetiva, e não na separação entre corpo e máquina. Nas cidades brasileiras, espaços por onde tantas culturas circulam, se devoram e se fundem, as possibilidades da fusão máquina-corpo parecem ser muito mais promissoras! Nossas cidades são os centros do maior cadinho de raças do planeta, a tradução da diversidade pós-moderna que tem sido pós-moderna desde suas origens... Por quê não esperar que aqui, a evolução da telemática leve a uma super-integração cultural e social, capaz de suportar a emergência de novas institucionalidades e democracias, e de desenvolver estratégias para uma arquitetura heterogênea que reflita todas as classes sociais e expressões culturais da sociedade brasileira?
notas1
‘Compressão Espaço-Tempo’, uma expressão cunhada pelo geógrafo inglês David Harvey, se refere aos efeitos dos ritmos acelerados dos tempos de produção, dos avançados sistemas de fluxo de informação e comunicação ,das racionalizações das técnicas de produção, e da emergência e serviços financeiros mundiais.
2
Boyer, Christine M: The Imaginary World of CyberCities, in Assemblage no.l8, MIT, Cambridge, l992.
3
Eisenman, Peter : K Nowhere 2 Fold, in Anywhere, Rizzoli, Nova York, 1992.
4
Baudrillard, Jean:: The Transparency of Evil, Verso, Londres, 1993.
5
Boyer, M Christine, citado em Harvey, David : From Space to Place and Back Again : Reflections on the Condition of Postmodernity, Conferência na UCLA, 1991.
sobre o autor
Carlos M Teixeira é arquiteto em Belo Horizonte e autor do livro "Em obras: história do vazio em Belo Horizonte"