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architexts ISSN 1809-6298


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Compreensão do espaço urbano atual, procurando fazer uma leitura da cidade contemporânea de diversos pontos de vista, entre eles a produção do espaço urbano como fruto de um projeto coletivo e de um evidente individualismo e fragmentação


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ABASCAL, Eunice. Cidade e arquitetura contemporânea: uma relação necessária. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 066.06, Vitruvius, nov. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.066/410>.

O presente trabalho visa construir uma argumentação capaz de consolidar a estreita e necessária relação entre a cidade contemporânea e as arquiteturas que as constituem.

Para esta empresa, trilharemos o caminho de estabelecer e discutir parâmetros e fundamentos para a compreensão do espaço urbano atual, procurando fazer uma leitura da cidade contemporânea de diversos pontos de vista. Entre estes, abordaremos a produção do espaço urbano não somente como determinação topográfica, histórica e social, mas como fruto de um projeto coletivo (a idéia de espaço público e democrático) e de um evidente individualismo e fragmentação, opostos que parecem conviver como pressupostos do pensar a cidade hoje.

Neste espaço de oposição, em que convivem um projeto político que aponta para a sociedade e o ideal democrático e o espaço da fragmentação e do não-lugar, para usar a expressão instigante de Marc Augé, surge a arquitetura contemporânea.

Uma arquitetura que se afigura eminentemente urbana, parte ativa constituinte do espaço da cidade, é o que procuraremos esboçar como argumento.

A relação cidade e arquitetura: visão histórica

Uma relação estreita e necessária entre cidade e arquitetura pode ser evidenciada desde o Renascimento. No dizer de Giulio Carlo Argan (1), a arquitetura do Renascimento consagrou o edifício como monumento, como obra de arte instauradora do espaço urbano. Conforme este autor, Vasari referiu-se à magnífica cúpula de Santa Maria del Fiore, obra notável de Bruneleschi, observando com precisão que “Vendo-se ela elevar-se em tamanha altura, que os montes ao redor de Florença parecem semelhantes a ela” (2).

Neste período, os desenhos da arquitetura e do espaço da cidade nasceriam conjuntamente do traço dos arquitetos, que concebiam o espaço real como espelho de seu simulacro perspéctico e matemático. A arquitetura e o desenho da cidade se encontravam relacionados à perspectiva e à racionalização proporcionada pela geometria e interpretação matemática da realidade, que constituíam as bases e os fundamentos para a atuação do arquiteto.

O assinalar desta relação encontramos também nos Tratados, começando no Renascimento e chegando ao século XIX. Os tratados militares (séculos XVI e XVII), que proveram normas para os traçados urbanos, muralhas e estratégias de defesa também pensaram as relações entre a forma da cidade e o estabelecimento da arquitetura.

Ignasi de Solà-Morales (3) argumenta em favor da presença histórica do objeto de nosso interesse, ao lembrar que as catedrais, os templos, os grandes conjuntos públicos dos séculos XVII e XVIII sempre incorporaram a forma dos edifícios a intencionalidade urbana. Este autor menciona a imbricação entre cidade e arquitetura como uma relação inapelável, própria da natureza social de uma e de outra.

No entanto, embora seja possível realizar este trajeto histórico, em se tratando da cidade contemporânea o entendimento da relação de que nos ocupamos parece nem tão evidente, pois é necessário precisar os termos cidade e arquitetura.

A cidade contemporânea

Torna-se, por conseguinte, um objetivo a alcançar a conceituação do que se pode hoje compreender por cidade.

A partir dos clássicos estudos de Saskia Sassen (4) pode-se afirmar que os referenciais conhecidos de um ponto de vista histórico para a análise dos espaços urbanos se transformaram. Assiste-nos um novo imaginário para definir o espaço urbano contemporâneo, no qual a cidade, fonte histórica do assentamento e da permanência, constitui hoje mais do que nunca o espaço símbolo da mobilidade.

Mobilidade e fluxos configuram imagens paradigmáticas de redes digitais e aceleração, que se concretizam com a ênfase e os investimentos em infraestruturas e interconexões de massa. A preponderância dos fluxos, de informações, pessoas ou mercadorias em redes cuja máxima função reside na aceleração logística do sistema territorial e econômico, parece colidir com a lógica tradicional dos lugares e com o discurso da identidade.

As representações da cidade contemporânea

Octavio Ianni (5) descreve a grande cidade, cuja representação nasce com a modernidade e se estende à pós-modernidade como uma síntese do sistema por meio do qual a sociedade constrói a imagem de si mesma e de suas relações com o espaço e o território. A vida contemporânea torna-se acirradamente urbana, e expressa a coexistência das diversidades e das desigualdades.

Sustenta igualmente nossa visão de cidade contemporânea a idéia de que a cidade atual é um campo experimental por excelência, sejam estas experimentações (culturais, produtivas, teóricas, artísticas ou arquitetônicas) bem-sucedidas ou geradoras de frustrações.

A condição experimental e em constante mudança, a fugacidade e a transitoriedade das relações sociais e a ausência ou impossibilidade de representar a cidade como uma totalidade, bem como entender a vida urbana ocorrendo num território fragmentado que é a negação da territorialidade se tornou imagem recorrente.

Paradoxalmente, Ianni afirma que historicidade, progresso, emancipação, evolução e desenvolvimento, legados do século das luzes, constituem ideário integrante do sistema de representação ou modelo da cidade contemporânea.

Imaginamos São Paulo como uma totalidade impossível de representar, fragmentada e palco de profundas desigualdades, dilacerada por sistemas de vias e acessos. Entretanto, buscamos a identidade, o reconhecimento na diversidade, o lugar em meio à rede de nós ou fragmentos urbanos.

Contraditoriamente, definimos uma nova forma de abordagem espacial, aquela que faz conviver o estranhamento e o lugar. Trata-se de uma duplicidade conceitual não excludente que requer ser trabalhada, significando no discurso teórico a convivência das representações daqueles espaços que, voltando-se aos fluxos de capital e deslocamentos humanos estão impregnados da lógica destes fluxos e não se configuram como lugares, e aqueles outros dotados de arquiteturas que dizem respeito ao usufruto do espaço urbano e à vida cotidiana.

Há um problema que então se define: o de saber qual é o papel e quais são as características, limites e possibilidades que a arquitetura contemporânea desempenha nestes novos lugares, que são a uma só vez ausência e território, pois a vida cotidiana segue nestes se desenrolando.

Cidade contemporânea e globalização

A cidade contemporânea não é tão somente a dualidade entre lugar e não-lugar, mas urbe que funciona como pólo de atração econômica e cultural. Concentra não apenas massas de populações, mas desigualdades sociais e territoriais.

A partir da década de noventa do século findo, assistiram os principais centros urbanos uma expansão intensa do caráter metropolitano, revelando transformações ocorridas no curto intervalo de tempo dos 80 e 90.

Presenciou-se a um processo de crescimento difuso em direção às regiões em que se integram, evidenciando uma fluidez ou dissolução dos limites urbanos. A cidade passou a configurar um nó num sistema em rede ou de fluxos.

Transformações nas bases econômicas e produtivas estão relacionadas a este processo de metropolização. Deslocadas para as bordas ou limites urbanos as instalações industriais remanescentes ou inovadoras ocuparam tecnopólos e permitiram a expansão metropolitana.

Por outro lado, áreas tradicionalmente industriais ou portuárias se fizeram degradadas, tornando-se obsoletas ou em processo de abandono e descaracterização, os assim chamados terrain vagues, para utilizar a denominação de Solà-Morales (6).

Acompanhando as mudanças produtivas, uma revolução tecnológica digital possibilitou um sistema de comunicações transnacionais, bem como a cidade-rede. Modificou igualmente a concepção e produção da arquitetura, que vem absorvendo o impacto destas inovações digitais.

Alterações significativas das relações de trabalho e estabilidade do emprego industrial derivaram do quadro de mudanças descrito. Incentivou-se o setor terciário e de serviços avançados, concentrados em áreas dotadas de infra-estruturas e de arquitetura que seja capaz de abrigar empresas e profissionais qualificados.

Anthony Giddens (7) define a globalização como a conjunção destas mudanças tecnológicas e mercantis e a consolidação de mercados de natureza planetária, proporcionando a circulação global de dinheiro e informações, historicamente coincidentes com o desaparecimento da URSS e o esgotamento da divisão moderna do mundo bipolar. Por sua vez, Néstor Canclini (8) a identifica com a transnacionalização, em que há internacionalização do dinheiro e da cultura, gerando empresas e movimentos cuja sede não se encontra territorializada numa só nação.

Desta forma, a presença transnacional da economia e da cultura globais requer a disseminação de capital e de linguagens, intensificando a dependência de lugares e acelerando redes econômicas e culturais. Segundo Canclini, filmes, jogos, música, arquitetura, produtos simbólicos globais determinam esta dimensão icônica, fluida e migrante que marca a forma globalizada de produzir o tempo e o espaço, que é também discutida por Arjun Appadurai (9), Mike Featherstone (10), Anthony Giddens e Saskia Sassen.

O mesmo Canclini argumenta que a pretensão de que a globalização uniformiza o mundo e a sua produção cultural é um mito. Não há evidência empírica de que a globalização achate a diversidade ou decomponha a ordem social, sendo que a vida urbana consiste ainda em movimentos cotidianos, socialização e produção de espaços coletivos dos quais a perspectiva do arquiteto e urbanista não pode prescindir.

A globalização, segundo Canclini, não constitui um único modo de efetivação, não determina uma ordem mundial única, mas instaura uma dinâmica de movimentos contraditórios e que permitem distintas formas de conexão entre local e global, local e local. A idéia de um processo único e homogêneo é mais uma de nossas representações, uma globalização imaginada, e não fator absoluto para uma análise geral.

O que leva a concluir que uma relação entre cidade e arquitetura contemporâneas passa necessariamente pela geração de políticas públicas que enfrentem as diferenças e particularidades de cada um dos lugares. Políticas que incorporem o ouvir atento da sociedade e manifestação desta no processo de opção pelos bens culturais e arquitetônicos que devem ser inseridos no território.

A cidade como sistema de fluxos e redes simultâneos: o lugar da arquitetura

Sistemas complexos de circulação, redes e fluxos coexistem com os espaços cotidianos, estabelecendo a simultaneidade e a heterogeneidade da experiência urbana contemporânea.

Solà-Morales chama a atenção para o fato de que nesta mudança de milênio surgem arquiteturas que possibilitam interconexões e intercâmbios entre diferentes redes: “son estas yuxtaposiciones las que deben facilitarse, constituirse, hacerse visibles a través de estructuras arquitectónicas” (11).

Estas redes definem acúmulos de lugares, de pontos que concentram o encontro de distintos fluxos quer de sistemas de circulação e transportes, quer de malhas urbanas que necessitam se conectar a fim de permitir a vida econômica e a reestruturação do território. Espaços subutilizados e degradados, que guardam a ambigüidade de significado entre passado e presente ficam à margem desta lógica de fluxos e organização utilitária.

Tais espaços ociosos devem ser resgatados e reintegrados à vida urbana, sendo paradoxalmente simulacros ou imagens e geradores de projetos de subjetividade, dotados de contradição e potencialidades do estar urbano.

Cabe à arquitetura dar forma a estes lugares, dotando-os de uma flexibilidade até então desconhecida, uma fluidez ou natureza capaz de moldar-se às exigências de um espaço dinâmico e mutante. A matéria essencial talvez seja a futurista noção de velocidade e simultaneidade. Matéria e fonte esta de onde a arquitetura contemporânea bebeu e impregnou-se da ambição de espelhar leveza, precisão e de proporcionar múltiplas percepções e visões. Uma arquitetura que deseja respirar os mesmos conceitos de justaposição, simultaneidade e convivência da heterogeneidade e que em suas propriedades intrínsecas está totalmente voltada e aberta à cidade. A arquitetura transcende a condição solitária da autonomia da concepção e do egocentrismo do arquiteto enquanto artista criador e responde às necessidades urbanas e sociais.

A cidade contemporânea é bem mais do que sua arquitetura

A experiência urbana atual é bem mais do que simples aglutinação das arquiteturas presentes na cidade. O domínio urbano deve ser compreendido como um sistema capaz de abranger as mencionadas conexões. Transportes, telecomunicações, armazenagem, logística e localização industrial, serviços, cultura, lazer e turismo, eventos, negócios nacionais e internacionais, transcendendo o espaço intra-urbano e conectando-se à experiência metropolitana estão presentes. Estes domínios e a visão integrada à arquitetura ainda parecem escapar a prática projetiva, e a cidade global necessita de uma nova abordagem por parte dos arquitetos.

Os parâmetros e os meios de representação do espaço provindos das experiências clássica e moderna não mais são suficientes. A megalópole contemporânea deixa de ser representada como o espaço de uma democracia compreendida enquanto acesso e garantia ao mínimo necessário.

O modelo do espaço ordenado, tomando a natureza como enquadramento de edifícios “dispostos no verde”, em que uma renovação formal alimenta-se do ideário iluminista de “fé no progresso e na razão” veio sendo repensado.

Jorge Mário Jauregui (12) menciona que um novo paradigma para o que poderia conformar o relacionamento entre natureza e arquitetura, espaço público e privado, indivíduo e sociedade, sem subordinação ao mercado, mas articulando demandas sociais e o potencial tecnológico atual se faz necessário, constituindo o legado que a modernidade estendeu a sua face contemporânea.

Se por um lado melhoria da qualidade de vida e a ênfase na revitalização do espaço público estão na ordem do dia, materializando a imagem de resgate do espaço coletivo e de construção do lugar que nos parece fugidio, a presença dos fluxos e diversidade urbana impele para a constituição de outro paradigma, que questiona a espacialidade estática e a homogeneidade de tempo e espaço modernos.

Um novo tratamento conferido à arquitetura, alimentando-a por meio de parâmetros tais como leveza, transparência, desmaterialização do objeto, elaborando a correta inserção e articulação volumétrica e espacial deste na cidade estão incorporados à contemporaneidade.

A atualização dos ideais de vanguarda e experimentalismo modernos agilizados pela potência que as novas tecnologias digitais conferem ao projeto arquitetônico é realizada por meio de geometrias complexas (dobras, fractais e sistemas de representação assistidos por computador).

Uma nova topologia se faz inerente, para a qual o tratamento de superfícies exploradas como peles e revestimento dos edifícios é preponderante. Arquitetura e cidade passam a instituir a relação entre objeto arquitetônico e lugar, implicando na atuação específica e empírica que explora cada projeto em sua condição particular, estudando as formas de inserção e criação de vínculos com a cidade real. Global e local exibem consubstanciação arquitetônica, expressa na diversidade e heterogeneidade das manifestações dos arquitetos contemporâneos.

Não é estranho, sob esta perspectiva, que campos tais como recuperação de edifícios e sua revitalização e mudanças de uso surjam como perspectivas de trabalho, concomitantes com a inserção de objetos arquitetônicos de grande densidade estética e linguagem vanguardista.

A arquitetura se realiza de modo a propor objetos abstratos, negando toda referência a expressividade semiótica, em versões que passam pela fragmentação de Daniel Libeskind, a reinterpretação abstrata do lugar de Álvaro Siza, o ecletismo experimental de Rafael Moneo ou exploração das peles que determinam volumes em relação urbana, como no trabalho de Frank Gehry. Esta inusitada heterogeneidade de linguagens e seus desdobramentos caracterizam o que o crítico catalão Josep Maria Montaner (13) denomina posição arquitetônica, que vem a significar o desenvolvimento de metodologias projetuais distintas e personalizadas pelos arquitetos que atuam no circuito global.

As possibilidades inusitadas abertas para a arquitetura no que tange à linguagem e expressão possibilitam inexploradas manipulações volumétricas as quais permitem um outro grau de abstração e um enriquecimento da paisagem urbana.

Cria-se um horizonte insuspeitado de elaboração, tanto dos objetos arquitetônicos quanto do ambiente urbano, relacionando de forma estreita o entorno e a criação arquitetônica. Reconstrói-se a paisagem urbana, tornando fluidos os limites entre forma, espaço e contexto. Um novo sistema de pensamento, não-conservador e inclusivo, o qual admite flexibilidade e espaços urbanos cuja harmonia se faz pela coexistência de um jogo de antagonismos substitui aquele embasado nos ideais de unidade e equilíbrio.

No entanto, ao mesmo tempo em que a linguagem da arquitetura se transforma e se reposiciona no espaço urbano, as concepções urbanísticas alinhadas pelo movimento moderno também passam por aguda revisão crítica.

Intervenções na totalidade da cidade parecem inadequadas, à medida que a concepção para este todo parece fugir ao controle do arquiteto, impróprias para enfrentar a complexidade urbana atual.

Hoje, inúmeros são os países que em nome da elevação da qualidade de vida e necessidade de revitalizar espaços esvaziados de seus usos ou obsoletos buscam ações cujo objetivo último é o de resgate da condição de lugar, reintegrando-os à vida social e à cidadania.

Seguindo a múltipla representação da cidade contemporânea, a de conviver com a dualidade entre uma arquitetura de fundo global e outra singular, buscam hoje as cidades promover ações que permitam esta harmonia dissonante entre o que é exógeno e o local.

Ao mesmo tempo em que obras ou objetos arquitetônicos de feição global despontam, ações de revitalização de áreas centrais, criação e promoção de espaços públicos e de participação, bem como o objetivo de estender a urbanização às periferias comparece, no intuito de continuar expressando a feição cotidiana da arquitetura.

As cidades e as ações urbanas contemporâneas

A partir dos anos setenta, uma nova forma de abordagem que integrava a edificação inovadora e a conservação do patrimônio veio sendo desenvolvida e os seus resultados aplicados em cidades européias.

Na Itália, Bolonha, Ferrara e Brescia receberam atenção, com a aplicação de uma estratégia pública de ações que visava atuar simultaneamente em toda a cidade e não somente na área central.

Este tipo de intervenção, denominado conservação integrada por Silvio Zancheti, passou a constituir uma nova abordagem para o planejamento, embasado numa cultura qualitativa, para o qual o principal objetivo residia num ”urbanismo de qualidade” (14).

O novo planejamento abdicava da pretensão modernista da ação genérica no todo da cidade, privilegiando ações locais com potencial transformador.

Criticava-se igualmente a expansão ilimitada das cidades, voltando atenção à sua transformação, resultante de ações capazes de redesenhar a economia urbana.

A prática destes anseios demandava pactos que permitissem todos os tipos de ações nas cidades, realizados entre múltiplos atores envolvidos. Tais práticas deveriam proporcionar conexão lógica entre inovação e conservação.

Pode-se depreender que os objetivos da conservação integrada expõem o modo operativo de como atingir a teorizada coexistência das diferenças e a harmonia dissonante.

Os casos italianos citados revelam um dos problemas inerentes à valorização de áreas centrais, o da gentrificação, ou valorização de terrenos e da propriedade imobiliária nas áreas trabalhadas, bem como conseqüente deslocamento e expulsão de habitantes.

Nos EUA, em Lowell, a gentrificação residencial se converteu em um dos objetivos do processo, e a mudança do perfil econômico local a base para a elaboração de um plano. Antigos edifícios antes destinados à indústria com suas infra-estruturas (canais e estradas) foram recuperados a fim de abrigar serviços e funções ligadas ao turismo cultural.

O caso de Lisboa revela aspectos inusitados no modo de gestão urbana e na maneira de priorizar as arquiteturas emergentes. Trata-se, conforme Zanchetti, de um bem-sucedido esforço de ampliar a toda cidade o processo de ação e conservação integrada.

Uma abordagem múltipla, ocorrendo simultaneamente nas áreas históricas e periféricas permitiu aliar a edificação de novas arquiteturas e proteção e conservação do patrimônio e áreas históricas. Na Baixa e no bairro do Chiado e Av. da Liberdade tratou-se de empreender ações de recuperação de edifícios para serem convertidos para o uso comercial e de serviços. Grandes projetos de renovação e edificação nova foram realizados por arquitetos de renome internacional do circuito global. Parcerias entre poder público municipal e investidores privados possibilitam a gestão (o poder público melhora as infra-estruturas e os espaços públicos, bem como a rede telemática).

Em Lisboa, a gentrificação constitui uma das bases da ação urbana, no entanto, há escritórios gestores em cada um dos bairros populares em torno das áreas centrais (Alfama, Castelo, Bairro Alto e Madragoa). Os mencionados bairros, geridos por esses escritórios, empreendem ações monitoradas por uma administração paralela criada pela Câmara Municipal, a qual deve elaborar projetos, estudos e negociação com atores, bem como implantar os projetos. Nas periferias e áreas degradadas viram-se concretizados programas de renovação, tais como a área para a Expo 98 e docas de Alcântara.

Na Espanha, o processo mais discutido tem sido o de Barcelona, cidade que investiu na transformação do ambiente local aliado a especulação da terra urbana. A Vila Olímpica, projeto de Oriol Bohigas (1992) apostou em obras de arquitetos renomados no circuito global.

Mais recentemente, Bilbao empreendeu forma de recuperação urbana igualmente calcada na valorização de terrenos ocupados historicamente pelo Porto e suas instalações. Cabe, entretanto, frisar que a gentrificação vem sendo utilizada como instrumento de requalificação, com forte presença do poder público nas negociações com investidores privados. Outro ponto de destaque é o fato de os projetos para as principais áreas de intervenção, como Abandoibarra (antiga área portuária e dos estaleiros Ibarra) receberem modificações e atualizações, de modo que o desenho final resulta de diálogos e intermediações da sociedade civil organizada e órgãos de representação dos arquitetos e urbanistas locais.

A gentrificação em Bilbao não resultou em deslocamentos populacionais, uma vez que se encontrava a área renovada esvaziada e em ruínas. O projeto e o desenho urbano resultaram em instrumentos capazes de gerir as tensões e conflitos do processo, permitindo que constituíssem uma síntese das exigências e demandas urbanas. O Museu Guggenheim (1992-1997) de Gehry constitui apenas uma das obras de caráter emblemático e que desempenham função de rearticulação e integração das malhas urbanas tradicionais e renovadas.

A arquitetura veio sendo diligentemente relacionada ao desenho urbano, de modo que desempenha um caráter de singularização da área de Abandoibarra. É capaz de criar uma heterogeneidade arquitetônica diluída na área, de modo a proporcionar grandes espaços públicos e aumentando a qualidade do ambiente construído e remodelando a paisagem urbana.

Os excedentes obtidos pela intermediação do poder público na venda de terrenos e de cotas de construção investem-se na recuperação de áreas e bairros degradados, tais como Bilbao La Vieja e na reabilitação do patrimônio histórico.

Na América Latina, várias frentes de ações urbanas vêm sendo desenvolvidas. Buenos Aires assistiu a intensa metropolização, o que demandou atualização de suas infra-estruturas urbanas obsoletas, bem como investimentos em tecnologia a fim de atuar na vasta periferia que circunda a área central. Estudos relativos à produção e forma dos espaços públicos e desenho de cenários locais capazes gerar uma re-significação urbana (15) se apresentam como tônica. Assinale-se a experiência de reconversão da área portuária de Porto Madero, em que se mesclou a presença de novas edificações e recuperação e reciclagem de antigos galpões remanescentes do uso histórico.

O espaço público como elemento ordenador e a cidade como rede espacial em que se atua, a partir do espaço público, impõe-se como forma crítica das ações que transformam a cidade apenas num grande cenário midiático.

No Brasil, depois de uma experiência histórica no centro de Curitiba em meados dos setenta, o Rio de Janeiro consolidou o processo de aplicação de um planejamento dito estratégico com o Corredor Cultural. Vicente Del Rio afirma que, após pouco mais de duas décadas, a área passou a contar com 3.500 imóveis e diversos centros culturais (16).

Conforme Silvio Zancheti, o processo de planejamento de natureza integrada e que requer a gestão das relações entre as ações demanda a concretização desta gestão. Requer estratégias para conduzir a dialética inovação/conservação e instrumentos capazes de operacionalizar a estratégia, tais como o plano estratégico.

O Pelourinho em Salvador e o Bairro de Recife, na cidade do mesmo nome, exemplificam casos de interesse que abordam a utilização de planejamento estratégico em nosso país. Nestes casos, a recuperação urbana constituiu parte de estratégias de desenvolvimento local, geridas de modos totalmente distintos.

Enquanto que em Salvador optou-se por gentrificação de natureza desmobilizadora, transferindo a população de baixa renda que ocupava o Pelourinho, o processo foi totalmente gerido pelo Governo do Estado. Este obteve a propriedade de todos os imóveis abandonados, realizando a totalidade dos investimentos necessários para a recuperação física das edificações e infra-estruturas.

Os imóveis foram então cedidos ou alugados a empresas de serviços e comércio, a preços abaixo do mercado. Muitas das primeiras cessões fracassaram e os empreendimentos foram substituídos por outros mais adaptados aos mercados de Salvador.

A experiência demonstra a necessidade de realizar melhor avaliação das necessidades e demandas para que o investimento em arquitetura e recuperação de edifícios obtenha retorno. Como nos diz Silvio Zanchetti, Salvador exibe ainda a face de um processo no qual o poder público investiu pesadamente, transferindo vultosos fundos a negócios privados.

O Bairro de Recife tem sido recuperado por meio de uma estratégia diferenciada, na qual o poder público investiu pouco e de forma precisa, gerando assim efeitos multiplicadores.

Obteve-se, com a intermediação do poder público municipal, a participação expressiva de investidores privados. O Estado agiu como negociador oferecendo vantagens e isenções para os que realizassem investimentos, processo este regulado em lei.

Sua atuação restringiu-se a melhorar as infra-estruturas, requalificar os espaços públicos e recuperar diretamente alguns edifícios históricos que funcionassem como marco de um processo o qual deveria ser potencializado.

A Lei 15.840/93 regulamentou a criação de uma Zona Turística do Bairro de Recife, a ZET 1, concedendo incentivos fiscais que visariam a estimular a instalação de estabelecimentos voltados para o turismo, cultura e lazer. O objetivo assinalado pela Lei reside em criar uma dinâmica econômica capaz de reabilitar o bairro (17).

Desta maneira, arquiteturas preservadas e elementos de estrutura física e paisagem de reconhecido valor histórico e cultural faziam parte da estratégia de instalação de atividades produtivas voltadas para turismo, lazer e cultura. Isenções de IPTU e ISS, bem como de taxas de licença de localização e funcionamento seriam oferecidas, à guisa de os proprietários realizarem a Conservação Total ou Parcial do imóvel, recuperando fachadas, coberturas, estruturas afetadas, elementos destruídos ou descaracterizados, instalações internas e retirando quaisquer elementos estranhos.

Transformações dos usos existentes podem acontecer, contanto sejam efetuadas as ações reparadoras e de conservação previstas.

A atração de investimentos privados tem sido tarefa de negociação entre a municipalidade e proprietários e investidores. Projetos pactuados por investidores distintos e integrados à melhoria das infra-estruturas e ações no espaço público têm merecido igualmente atenção.

Conclusões

As estratégias de recuperação e revitalização urbanas vêm priorizando ações de natureza holística e integrada, de forma que a cidade como um todo possa outra vez estar inclusa na pauta das preocupações e atuação do arquiteto e urbanista.

O movimento moderno trouxe à baila a intenção de desenhar a cidade se como um objeto controlável fosse, como se o arquiteto e o urbanista pudessem determiná-la a partir de um desenho mediação da totalidade urbana.

As complexas transformações urbanas e metropolitanas que vem ocorrendo, sobretudo a partir dos noventa, trazem-nos a dualidade dialética entre expansão/concentração, totalidade/fragmento, inovação/conservação, projeto/estratégia.

Na atualidade, ações em áreas degradadas ou obsoletas relacionam-se à necessidade de gerar efeitos multiplicadores da dinâmica econômica da cidade, bem como atrair investimentos. O que parece ser apenas uma ação pontual num tecido urbano na verdade se encontra relacionado à cidade em sua totalidade, suportando estratégias de alimentação e recuperação de periferias, patrimônio histórico, promoção de habitação e ações diretas sobre os espaços públicos. O poder público, na maior parte das vezes municipal ou estadual atua intensamente no objetivo de captar recursos gerados por meio de sua intermediação junto a investidores e proprietários, gerindo e equilibrando (ou não) a valorização de terrenos urbanos (gentrificação).

Em meio às estratégias empreendidas, quer no exterior ou no Brasil, é possível depreender a importância e a força da arquitetura na dinâmica das ações urbanas.

Procuramos indicar esta relação necessária dos campos arquitetônico e urbanístico na atualidade, chamando a atenção de que o papel contemporâneo do arquiteto se encontra relacionado ao desenho responsável, uma vez que vinculado a estratégias socialmente defensáveis ou passíveis de crítica.

A complexidade da cidade contemporânea torna a arquitetura realizada numa de suas partes fator de desenvolvimento ou abandono de outras, uma vez atrelada ao objetivo de potencializar a economia e a geração de recursos locais.

Como conclusão final, cremos que estas considerações abrem caminhos para a discussão da formação do arquiteto, bem como da fundamentação da disciplina projetual. O ato solitário de dar forma ao espaço careceria do compromisso com a cidade e sua gestão, para o que se conclamaria uma revisão dos pressupostos do fazer arquitetônico.

notas

1
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico. O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel. São Paulo, Cia. das Letras, 1999.

2
VASARI, Giorgio. Apud ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 95.

3
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territorios. Barcelona, Gustavo Gili, 2002.

4
SASSEN, Saskia. The global city. Nova York, Princeton, University Press, 1991.

5
IANNI, Octavio. “Cidade e modernidade” , em SOUZA, Maria Adélia de et al. (org.) Metrópole e globalização. São Paulo, CEDESP, 1999.

6
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Op. cit.

7
GIDDENS, Anthony. UNRISD News, “The United Nations Reaserch Institute for Social Development Bulletin”, n.15, 1997.

8
CANCLINI, Nestor García. A globalização imaginada. São Paulo, Iluminuras, 2003.

9
APPADURAI, Arjun. Modernity at large: cultural dimensions of globalization. Minneapolis/Londres, University of Minnesotta Press, 1996.

10
FEATHERSTONE, Mike. Cultura global. São Paulo, Hucitec, 1999.

11
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Op. cit., p. 8.

12
JÁUREGUI, Jorge Mário. “No lumiar do século XX”, em www.jauregui.arq.br/portas.html. Acessado em jan. 2002.

13
MONTANER, Josep Maria. Después del movimiento moderno. Arquitectura de la segunda mitad del siglo XX. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1997.

14
ZANCHETI, Silvio Mendes. “Conservação Integrada e Planejamento urbano na atualidade”, in: Espaço e Debates - Cidade, Cultura, (in) civilidade, Revista de Estudos Regionais e Urbanos, v. 23, n. 43-44, jan/dez 2003, p. 97.

15
JÁUREGUI, Jorge Mário. Op. cit.

16
DEL RIO, Vicente. “Em busca do tempo perdido. O Renascimento dos centros urbanos”. Arquitextos, Texto Especial nº 028. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2000 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp028.asp>.

17
SECRETARIA DE FINANÇAS DO RECIFE, “Código Tributário do Município do Recife, Legislação Complementar – Lei n. 15.840/93” <www2.recife.pe.gov.br/pcr/secfinancas/legislação/lei15840.html>. Acessado em 16 abr. 2005.

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sobre o autor

Eunice Helena Sguizzardi Abascal é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP. Professora de História e Teoria da Arquitetura da FAU-Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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