Um dos aspectos sempre associados à arquitetura moderna é a busca de transparência, cujo objetivo principal é criar uma possibilidade maior de integração visual com o meio circundante. A obtenção de transparência implica uma alteração significativa das superfícies verticais das edificações, antes maciças e pouco vazadas, cada vez mais abertas e expostas a partir das primeiras décadas do século XX, com a conseqüente ampliação das superfícies envidraçadas.
O interesse pelo aumento da transparência, no sentido de permeabilidade visual, surgiu em países europeus de clima frio, resultando em que amplas superfícies envidraçadas constituíssem as faces dos prismas elementares que caracterizaram a arquitetura moderna nos seus primórdios. A partir do momento em que a busca da transparência começou a ser empreendida em climas tropicais e temperados tornou-se clara a necessidade de considerar simultaneamente a proteção dos planos transparentes.
A solução mais comum, em todo o mundo, tem sido o emprego de quebra-sóis verticais e horizontais para controlar a quantidade de luz solar a ser admitida nos edifícios. A história do brise-soleil a partir da sua introdução no Brasil em projetos como o MES, a ABI e o aeroporto Santos Dumont é por demais conhecida; não haveria muito sentido em voltar a trilhar caminho tão percorrido nos últimos tempos. O que me interessa abordar neste breve texto é um outro modo de favorecer a existência da transparência, obtida por meio de sombras profundas criadas por um ou mais planos horizontais superiores. Em termos muito elementares, a estratégia deriva daquela situação elementar e imemorial em que uma árvore frondosa oferece abrigo ao homem em situações climáticas adversas [figura 1].
A intenção deste texto não é identificar uma teia de relações nacionais e internacionais que comprove afiliações e influências. O que se busca aqui é comentar a utilidade projetual de uma determinada estratégia de projeto. Entretanto, não me parece ocioso tratar da conexão que parece haver entre o emprego dos planos horizontais na arquitetura paulista da segunda metade do século XX e alguns precedentes relevantes: por um lado, os chamados ‘pavilhões diáfanos’ de Mies van der Rohe e por outro, as estruturas ‘arbóreas’ de Frank Lloyd Wright (1). Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha aparecerão aqui como representantes dessa prática, pois é nas suas obras que se podem encontrar as principais variantes da estratégia; o seu emprego por outros arquitetos não parece oferecer nenhuma novidade em relação ao que já foi feito por eles.
Mies desenvolveu duas alternativas para o problema dos grandes espaços livres de apoios intermediários. A primeira se caracteriza por uma estrutura unidirecional externa, da qual a laje é suspensa, com apoios sobre os lados maiores de um retângulo, coplanares com a caixilharia. Seu exemplo canônico é o Crown Hall, em Chicago, de 1950-56, mas a idéia veio à luz no projeto não construído para o restaurante Cantor, de 1947 [figuras 2 e 3].
A segunda solução consiste em uma laje quadrada, nervurada nos dois sentidos, apoiada em oito colunas, duas por lado, deixando os cantos da laje em balanço, enquanto o vidro que delimita o interior está recuado em relação à projeção da cobertura. Seu exemplo mais notável é a Galeria Nacional de Berlin, 1962-68, embora a idéia tenha surgido na casa 50x50, de 1950 [figuras 4 e 5].
A conexão Frank Lloyd Wright, ou pelo menos a sua possibilidade, é plenamente justificada pelo conhecido interesse de Artigas por suas obras. No contexto deste trabalho, o aspecto relevante da obra de Wright é o emprego de estruturas em balanço, já evidente em 1907, ano em que vários telhados se projetam sobre os terraços da Casa Robie sem qualquer apoio em um dos seus extremos. A investigação inicial de Wright resulta no projeto para as torres St. Marks, de 1929, no qual aparece pela primeira vez uma estrutura tipo “árvore”: um núcleo central vertical suportando lajes sem apoios nos extremos e cujas secções vão afinando à medida que se afastam do centro [figuras 6 e 7].
Essa linha de raciocínio conduz à excepcional Casa da Cascata, concebida em 1935, em que vários planos horizontais em balanço são ancorados em um núcleo de pedra [figura 8], e a dois edifícios verticais: a torre de pesquisa das Ceras Johnson, de 1943 e a Torre Price, de 1953 (2) [figuras 9 e 10].
O que fica claro desde o primeiro exame dos projetos de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, talvez um dos seus aspectos mais interessantes, é que não estamos diante de transposições diretas de um procedimento projetual. Considerando que Artigas e Mendes da Rocha tenham tido conhecimento dos projetos mencionados acima, o que encontramos na obra de ambos são edifícios com personalidade própria, fruto de transformações e adaptações relacionadas a uma cultura muito diferente da norte-americana. O que se vislumbra na obra dos dois arquitetos paulistanos é o desenvolvimento de uma série de temas essenciais que podem ser extraídos dos precedentes:
1. A noção de um grande plano protetor horizontal apoiado em um reduzido número de suportes verticais, localizados na sua periferia;
2. O balanço como extensão da laje superior em apenas uma direção;
3. Apoios internalizados, a modo de tronco, suportando lajes que se estendem em todas as direções.
Qualquer que seja a real conexão entre os precedentes citados e a obra de Artigas e Mendes da Rocha, do ponto de vista da habitabilidade faz todo o sentido proteger o interior dos edifícios com uma grande superfície horizontal, como costumava acontecer nas casas antigas, em que os grandes beirais definiam galerias que envolviam e protegiam o espaço interior.
Nas obras comentadas a seguir, serão identificadas quatro estratégias de projeto relacionadas ao uso dos planos horizontais superiores como elemento protetor da transparência. A primeira delas, representada por duas escolas de Vilanova Artigas, se caracteriza por uma estrutura unidirecional externa que define a grande cobertura sob a qual são distribuídos todos os componentes programáticos. Em nenhum dos casos se trata de uma laje nervurada mas de uma sucessão de pórticos paralelos unidos por um número reduzido de vigas longitudinais.
Em Itanhaém, cada pórtico é composto por dois vãos e a cobertura é contínua, com a exceção de uma pequena incisão que define um pátio [figura 11]. Já em Guarulhos os pórticos são formados por três vãos, dois menores nos extremos, onde se localizam as salas de aula e outras dependências menores, e uma faixa muito maior no meio, utilizada para os componentes maiores do programa e para os pátios para os quais a escola se volta [figura 12].
A segunda estratégia é a que evidencia mais claramente a idéia do grande plano horizontal protetor. Os exemplos principais consistem em uma laje nervurada nos dois sentidos, de grandes dimensões, sob a qual são dispostos alguns volumes independentes do ponto de vista construtivo. O seu representante mais claro, até pela simplicidade do seu programa, é o Pavilhão do Brasil em Osaka: uma grande área sombreada que protege uma topografia artificial ondulada, que oculta os poucos espaços fechados requeridos [figura 13]. Versões ampliadas da mesma idéia são a Estação Rodoviária de Jaú – dezoito pilares espaçados regularmente, combinados com clarabóias, são o seu traço mais evidente, pois a enorme laje tipo ‘caixão perdido’ não é a protagonista do espaço — e a sede do Jockey Clube de Goiás, cuja laje nervurada aparente cria uma métrica importante no entendimento das reais dimensões desse grande salão [figuras 14, 15 e 16]. Em ambos os casos a grande cobertura define o âmbito no qual o programa é resolvido, abrigado em volumes que mantém total independência do plano superior.
Na terceira estratégia projetual a ser extraída da produção de Artigas e Mendes da Rocha o plano de cobertura torna-se habitável, ou seja, contém espaço no seu interior. São edifícios de forma retangular em que há uma laje nervurada superior abrangente, apoiada nos dois lados mais longos. Sob ela aparecem trechos de lajes, ou lajes inteira porém mais curtas do que a superior, que constituem o piso dos espaços interiores. Na sua aplicação mais comum os dois lados longos apresentam empenas parcialmente cegas, ficando as aberturas para os lados curtos. A esta descrição correspondem as casas Mário Taques Bittencourt e Ivo Viterito, assim como o Clube da Orla [figuras 17, 18 e 19].
Dois casos excepcionais merecem referência. O primeiro é da garagem de barcos do Santa Paula Iate Clube, pela sua extensão (70 metros) e pelo fato de que as empenas são mais vazadas que o normal. O outro, da casa Mendes André, é uma variante por inversão dessa estratégia, na qual o retângulo está disposto paralelamente à rua, e os lados maiores são abertos e constituídos por vigas treliçadas [figuras 20 e 21].
Uma característica específica importante e presente em alguns exemplos de aplicação desta estrutura formal é o avanço da laje superior sobre os lados abertos, o que garante maior proteção contra o excesso de sol e de luminosidade. Se as casas Martirani e Mário Masetti [figuras 22, 23] constituem exemplos ‘ortodoxos’, a casa Nitsche nos surpreende ao constatarmos que no interior do volume maior há uma outra caixa, desvinculada das paredes laterais e apoiada em um único pilar. [figura 24] Esta casa remete a dois outros projetos interessantíssimos pelas variações que introduzem no sistema, as casas Ometto e de Cristofaro. Na casa Ometto os quatro apoios são colocados assimetricamente, adequando a casa à topografia e fazendo com que apenas um lado do volume esteja em balanço [figura 25]. Na casa de Cristofaro os apoios se reduzem a dois, em posição excêntrica em relação às empenas laterais e, devido à inclinação descendente do terreno, o volume praticamente não toca no terreno [figura 26].
Por fim, um quarto modo de materializar a idéia do plano horizontal protetor, que consiste em plantas retangulares cujos elementos de apoio, em número reduzido, são internalizados em relação aos seus limites, e cuja laje superior avança sobre as demais. Este é o modo mais aproximado às estruturas ‘arbóreas’ de Wright, no sentido em que há um núcleo estrutural mais ou menos centralizado que sustenta a projeção dos pavimentos. A descrição corresponde a um grupo de residências –Bento Ferreira, Malta Cardoso e Mendes da Rocha – em que o plano superior é quadrado (ou quase) e é sustentado por quatro apoios que tendem a formar uma figura análoga [figuras 27, 28 e 29]. Uma ligeira variação dessa estrutura formal é a casa Newton Carneiro, em quase tudo similar às outras a não ser pela existência de seis apoios em vez de quatro [figura 30].
O número considerável de variações certifica a fertilidade deste partido, presente em projetos de tamanho muito diferente. Na pequena casa Domschke, de Vilanova Artigas, a laje superior se projeta em balanço sobre os quatro lados do retângulo definido pelas oito colunas [figuras 31 e 32]. Nos projetos de Paulo Mendes da Rocha para o concurso do Centro Pompidou e para o MAC/USP há soluções similares porém a escalas muito maiores. No Centro Pompidou, há duas linhas de pilares duplos sustentando pavimentos superiores que chegam a se projetar 50 metros do núcleo central (com o auxílio de planos inclinados que funcionam como mãos francesas) [figura 33]. No MAC/USP, um edifício bem menor, reaparecem as duas linhas de apoios, desta vez simples, e os generosos balanços –neste caso limitados a aproximadamente 20 metros – a partir da faixa central [figura 34].
Este breve texto demonstra, uma vez mais, que a maioria dos projetos constrói uma ordem nova a partir de matéria prima arquitetônica verificada empiricamente. Nos casos analisados, como de resto em toda a obra de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, as relações com os precedentes não acontecem pela utilização de modos completos de resolver um problema, mas de uma série de estruturas formais, elementos e soluções parciais subordinadas postos à serviço de uma nova intenção. Esse procedimento não implica uma recaída nos processos de imitação pré-modernos, por duas razões. Por um lado, aqueles elementos e critérios de ordem entram como ingredientes de uma composição mais abrangente, relacionada aos aspectos específicos de cada problema, não como soluções padrão transpostas diretamente. Por outro lado, porque “a identidade específica do novo artefato pressupõe haver transcendido tanto a consistência formal como o sentido histórico característicos da arquitetura de referência, de modo que o resultado – se for arquitetura – é totalmente distinto da realidade tomada no projeto como matéria prima” (3).
notas
1
Agradeço a Carlos Eduardo Comas por me apontar essa conexão writghtiana.
2
Dois projetos similares realizados no continente europeu no início dos anos 1950 também se inscrevem nessa linha de interesse pelos grandes balanços: a sede da Cia. Jespersen, de 1953, e a Prefeitura de Rodovre, de 1954, ambos da autoria de Arne Jacobsen e construídos na Dinamarca.
3
PIÑÓN, Helio. El proyecto como (re)construcción. Barcelona, Edicions UPC, 2005.
referências bibliográficas
ARTIGAS, Rosa (org). Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Cosac Naify, 2000.
ARTIGAS, Rosa et alli (org). Vilanova Artigas. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi / Fundação Vilanova Artigas, 1997.
CARTER, Peter. Mies Van Der Rohe at work. Londres, Phaidon Press, 1999.
HOFFMAN, Donald. Frank Lloyd Wright’s Fallingwater: The House and Its History. Nova York, Dover, 1978.
KONYA, Allan. Design primer for hot climates. Londres, The Architectural Press, 1980.
LIPMAN, Jonathan. Frank Lloyd Wright and the Johnson Wax Buildings. Nova York, Rizzoli, 1986.
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura Brasileira, Escola Paulista e as casas de Paulo Mendes da Rocha. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PROPAR/UFRGS, 2000.
sobre o autor
Edson da Cunha Mahfuz, arquiteto (UFRGS), AADipl (Londres), PhD (Penn), Professor Titular da UFRGS.