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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Eduardo Subirats apresenta neste artigo considerações sobre o estado atual do ambiente acadêmico, as pesquisas desenvolvidas na área de literatura, filosofia e estética luso-hispânicas


how to quote

SUBIRATS, Eduardo. O Juízo Bufo. Da demolição pós-humanista do cânon literário luso-hispânico, seguido de outras calamidades. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.00, Vitruvius, dez. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.079/283>.

"Much literary criticism comes from people for whom extreme specialization is a cover for either grave cerebral inadequacy or terminal laziness, the latter being a much cherished aspect of academic freedom." John Kenneth Galbraith

 – Insultou-nos! You are a bully! You threatened us with your slanderous remarks! Faz críticas ad hominem! What you say is nonsense! Violento! You should by no means have sent this letter to the students!...

Durante alguns segundos deixei-me balançar por seus olhares excitados e pela paixão que inflamava suas palavras. Admirava-me a veemência de seus gestos irados,

– Tua carta é humilhante! You have damaged the department! Dividiu o departamento! Despicable! Agressivo! You attacked us personally!...

O entusiasmo e o calor de seus comentários indicavam, sem dúvidas, uma ocasião especial. O pequeno concílio, para chamá-lo de algum modo, tinha sido convocado formalmente como uma maratona intelectual na qual ia-se debater a estratégia departamental, seus objetivos logísticos e seus planos de batalha. O chair tinha aberto a sessão de pé, algo inusual nesta classe de performances. Falava com o tom de voz sentencioso e solene de quem preside um tribunal eclesiástico contra os crimes de um relapso. A emoção contida de suas palavras anunciava algo tenebroso. Depois de um par de frases protocolares, floreadas e vazias, sobre os fins e instrumentos departamentais, apontou a causa e o corpo do delito, acentuando-o com uma entonação mais severa. Explicou à audiência que meu informe acadêmico tinha sido ofensivo e que eu tinha colocado em dúvida a inocência de todos os professores ali presentes. Realçou o mal-estar que minha atitude de distanciamento intelectual com respeito ao corpo departamental havia gerado e, como corolário final, assinalou com seu dedo indicador o caráter gratuito, além de violento, de minhas teses, cujas categorias nem sequer considerou dignas de serem mencionadas.

Terminada sua declamação abriu-se o turno às denúncias e recriminações da audiência. Rapto emocional, tensão nervosa, arrebato ou frenesi são palavras que descrevem em certa medida o clima dominante naquela sombria farsa, o que contrastava com o tom vital mais para lânguido que costuma coroar o tédio rotineiro deste tipo de reuniões acadêmicas. Supus que haviam aguardado durante várias horas, ao longo das reuniões burocráticas precedentes, para assaltar-me agora de surpresa com toda sua audácia.

Why did you send this letter? This is offensive! Os depoimentos dos estudantes são falsos! – começou a bombardear um coro de vozes. A escabrosidade das afirmações, que contraponteavam as recriminações floreadas do preâmbulo, conseguiu alterar meus nervos e durante alguns minutos cheguei a pressentir um verdadeiro perigo. Tratei de balbuciar algumas respostas automáticas com voz entrecortada. Em vão. Longe de proteger-me das acusações, minhas argumentações bravejaram mais aos meus fiscais. Era evidente, por outro lado, o caráter desordenado e até contraditório das acusações que se lançavam atropeladamente contra minha pessoa, e isso me fez compreender que aquele julgamento era uma improvisação de escassa definição conceitual, exceto no que se referia a um par de linhas de ataque provavelmente cochichadas nos corredores algumas horas antes de celebrar-se.

A principal frente do primeiro assalto veio à tona de imediato. Em minha declaração havia citado algumas observações dos estudantes de doutorado. Eram comentários brilhantes, com cujo espírito de sofisticada rebeldia estava plenamente identificado. “Pretender que um par de sessões sobre Lacan significa fazer teoria é irresponsável” – dizia-se em uma destas declarações. “É necessário o questionamento das definições existentes e a proposição de novas formas por parte dos estudantes, e não cair no receituário sobre como escrever um proposal bem sucedido para tese de doutorado. Isto é, tem que haver uma discussão aberta sobre as limitações nas formas existentes e nas possibilidades de redefinição de um gênero tão infeliz como a tese” – apontava outro dos testemunhos. “O workshop para teses de doutorado é um exercício de uncreative writing destinado a mutilar a imaginação, submeter os estudantes a modelos controláveis de uniformidade intelectual e atemorizá-los sob o ultimato do profissionalismo”, havia expressado um terceiro estudante por um precavido anonimato.

Estes depoimentos são expressões de generalizado mal-estar frente a uma academia que em nome de um profissionalismo implicitamente definido como adequação do conhecimento às demandas de um mercado predominantemente lingüístico, fecha as portas à reflexão literária e filosófica num sentido rigoroso, e bane as dimensões intelectuais e espirituais inerentes a todo estudo humanístico em nome de seu valor de compra-venda. São também manifestações de sua angústia frente a alguns estudos literários que no âmbito do espanhol e do português se vêem cada dia mais pressionados por uma concepção instrumental da língua que, em última instância, degrada a literatura e a arte à categoria de pretexto, e a reflexão ao significado de uma ameaça para os campos vigiados do conhecimento departamentalmente sancionado.

You quote your students without their permission! – alfinetou o star-professor de plantão, brandindo no ar com um gesto implícito as perigosas conseqüências legais que podiam cair sobre mim. Inflamado por minha indiferença ante semelhante desafio, o acadêmico seguinte encaixou a acusação contrária: – Você divulgou sua carta a todos os estudantes! Isto é ignominioso! –. Alguns segundos mais tarde, e sem deixar que se repusesse a minha perplexidade, outro fiscal me incriminava, com um humor ainda mais brumoso, que divulgar minha carta aos estudantes que citava era desnecessário, e que teria sido de toda forma suficiente mostrar-lhes o depoimento meramente desconstruído.

Foi naquele instante em que percebi que o corpo departamental havia fechado um círculo físico ao meu redor, deixando-me praticamente em seu centro geométrico. Como se fosse um réu. Isso aumentou ainda mais meu temor. Nunca pude livrar-me desses pesadelos espantosos de julgamentos inquisitoriais que pintava Goya. E nunca pude deixar de identificar-me com esses convictos aos que o corpo eclesiástico arrancava a língua porque tinham algo a dizer. Também foi neste momento em que me dei conta que a sempre reiterada ladainha de uma privacidade protegida sob a qual essa academia legitima seu tenaz secretismo administrativo é na realidade uma lei do silencio. Neste iluminador instante compreendi, enfim, que a única preocupação de meus improvisados fiscais era que eu rompesse o círculo mágico de mutismo institucional que haviam levantado cuidadosamente ao meu redor ao longo dos últimos anos.

No entanto, é preciso reconhecer que a verdadeira questão sob todo aquele palavreado recriminador era outra. O problema real, que os espaços academicamente controlados não permitem suscitar, é a condição tragicômica do pós-intelectual da universidade corporativa na era da guerra global. O homo academicus, hoje de forma muito mais ofensiva que na época em que Pierre Bourdieu pintou o retrato de sua decadência intelectual e moral, é um sujeito subalterno que vive no meio de uma cultura inteiramente artificial, com todas as vantagens que lhe oferecem a proteção econômica, sua segurança administrativa e o entrincheiramento urbanístico de seus campus, mas com todos os inconvenientes também de uma existência política e socialmente enclausurada, e um isolamento lingüístico e existencial que bem poderia se definir como o estado mental de um autismo corporativamente organizado e micro-politicamente legitimado. Privado de toda conciliação com uma vida pública, que só representa em suas classes como caricatura narcisista de sua própria imagem especular, seu trabalho de crítica literária, suas análises políticas, sua visão histórica, ou sua reflexão meta-científica se convertem fatalmente num exercício formalista e fragmentário de intertextualidades departamentalmente reguladas, nas quais o único diálogo intelectual possível se reduz, no melhor dos casos, a ser citado pelo colega de plantão em troca de citá-lo por dizer o mesmo e também não dizer nada. Estes acadêmicos pós-intelectuais se identificam com as regras de jogo de um espaço institucionalmente vigiado e intelectualmente escasseado, no qual constantemente se repetem, como nas ladainhas monacais, as mesmas parcas letras, os mesmos estreitos modelos de pensamento e o mesmo vazio. Tudo isso acrescido pelo clima asfixiante de guerra e competição por postos de trabalho, patrocínios administrativos e aumentos salariais que de todos modos se estipulam sobre a base de algumas categorias de produtividade totalmente voláteis, e dos consabidos valores de compostura política dignos de um colégio de dominicanos do século 16. Nestas condições, o mais superdotado não pode levar a cabo se não uma obra intelectual, literária e humanamente gregária e, por conseguinte, irrelevante. Por mais que esta mediocridade organizada tenha sido guarnecida com galões acadêmicos e estrelas de sua indústria editorial associada.

Claro que é preciso reconhecer a peculiaridade do hispanismo neste sistema universitário pós-moderno. O pequeno mundo dos departamentos de espanhol e português que pude conhecer como professor em Princeton e na New York University, e em minhas visitas às universidades de Harvard, Duke ou Yale, incrementa de fato esta condição viciada com as peculiaridades distintivas das culturas ibéricas e latino-americanas. Refiro-me à tradição clerical e “letrada” que ao longo de séculos outorgou a estas culturas seu inconfundível estigma de obscuridade e atraso. Refiro-me também ao seu acesso tardio e irregular à modernidade filosófica e estética cristalizada na Aufklärung européia, na Independence norte-americana e na tecnociência da era industrial. E me refiro, não em último lugar, à ausência de pensamento e pensadores rigorosos, ou na predominância de autores formal e conceitualmente inconsistentes neste vasto território lingüístico e geopolítico. E me refiro, em outra ordem inter-relacionada de coisas, aos permanentes colapsos políticos que definem a condição pós- ou neocolonial dos países latino-americanos, e à decadência pós-imperial das culturas ibéricas.

Lembro a este propósito de um poeta nova-iorquino que em uma recente reunião do Literature Festival de Berlim pronunciou em viva voz e em frente a um grupo de escritores mexicanos que os departamentos de espanhol nos Estados Unidos eram bastiões da ignorância. E ainda que recusei no mesmo instante sua desagradável sentença, dificilmente poderia assinalar ao menos um hispanista capaz de examinar intelectualmente questões globais sobre o lugar do intelectual na sociedade pós-industrial, a crise de legitimidade da tecnociência pós-moderna, o papel dos meios de comunicação na degradação das culturas luso-hispânicas, ou que pudesse realizar uma análise da teologia política da colonização ou da crise da razão filosófica moderna a partir de sua própria realidade cultural e social, histórica e política. E se por acaso, algum pobre escritor exilado no meio destas culturas hispânicas ou do hispanismo em geral tivesse o descaramento de pensar estas questões, os profissionais do Spanish&Portuguese logo cuidariam de liquidá-lo com citações ventríloquas de qualquer autor forçado do departamento de francês ou inglês, com banalidades hibridistas e logos pós-colonialistas de segunda ou de terceira mão, ou com o predileto de seus exercícios antiintelectuais, que é o silêncio. Quanto a todo o resto, são raras as ocasiões em que esses hispanistas são capazes, sequer, de realizar uma análise das obras literárias canônicas de seu próprio “campo” que esteja estruturado por uma perspectiva filosófica original capaz de superar as curtas ambições de suas micro-culturas departamentais.

O hispanismo nos Estados Unidos é uma indústria lingüisticamente proeminente e um campo intelectualmente irrelevante. Na realidade, é uma especialidade que não produz conhecimento. Só reproduz, difunde e rebaixa esquemas conceituais previamente sancionados por outros departamentos. E só aplicam irreflexivamente a suas territorialidades literárias esses modelos e idéias prêt-à-porter para transformá-las em províncias subalternas de imaginários universais produzidos e empacotados nas escalas superiores da organização corporativa do conhecimento. Uma interpretação desconstrutivista de Lugones, uma reconstrução lacaniana da Vanguarda antropofágica, e uma teoria deleuziana sobre Rulfo, ou a corrente coqueteleira desconstrutivista que vemos todos os dias na maioria das defesas de teses de doutorado: essa é a classe de aproximação que nos subúrbios hispânicos do conhecimento se propõe e se impõe como rigor do método e exemplaridade profissional. Nem sequer existe entre a maioria dos professores de Spanish&Portuguese uma clareza conceitual sobre o significado e os limites próprios desse “hispanismo” cujas fronteiras pudicas certamente tinha feito estourar alegremente pelos ares em meu Informe para a academia.

Tem-se que fazer de todo modo uma exceção frente a uma corrente humanista que estes subalternos do hispanismo contemplam em geral com petulante desdém. Refiro-me à velha guarda de professores da escola tradicional, aos quais inclusive tive a honra de conhecer em Harvard e Princeton, e que representam ou representaram certamente um conhecimento arquivista, configurado conforme os critérios de um humanismo literário e filosófico conservador, e que contou entre seus mestres com intelectuais da geração crítica dos exílios latino-americanos e espanhóis da importância de um Américo Castro ou de Ángel Rama, por exemplo. E sublinho este comentário com o maior respeito, pois mesmo não sendo discípulo desta geração de hispanistas norte-americanos, por ter me formado em Paris e em Berlim, e num meio diferente da filosofia e das ciências da religião, posso dizer que deles aprendi, pelo menos o pouco que sei sobre estas matérias hispânicas.

Mas os efeitos subseqüentes a um desconstrutivismo degradado a citações caprichosas e slogans legitimadores de uma fragmentação esquizofrênica nos opacos labirintos burocráticos da academia e nas conseqüências de uma teoria da cultura entronada sobre esquemas repetitivos e com freqüência mal formulados de feminismo, multiculturalismo ou direitos humanos, sempre reduzidos à mínima expressão intelectual que exige a etiqueta do politicamente correto em tempos de barbárie, e para não me estender mais, os danos colaterais de uma definição corporativa da cultura e do conhecimento como mercadoria volátil e espetáculo, enfim, o resultado deste “great divide” da academia anglo-saxônica das últimas décadas é um “hispanismo débil”, órfão de todo projeto intelectual consistente, e portanto carente de um rigor filosófico, num mundo ou mundos culturais luso-hispânicos que, caso isso fosse pouco, está caindo-se neoliberalmente em pedaços.

“Seu saber não se autoriza sobre a base de seus conhecimentos nem de um projeto intelectual, nem sequer sobre um pedagógico – Sofía tinha me antecipado já a propósito da miséria deste hispanismo –. Tudo o que têm como arma de sanção é uma posição dentro da instituição que dá ao acadêmico uma preponderância moral e um poder intelectual sobre seus estudantes. Não sabem nada, não têm que sabê-lo. Tudo o que necessitam é assegurar a reprodução do sistema, e que não se note que o imperador está nu…”

Por isso me colocavam agora no banquinho dos acusados e me submetiam a um humilhante interrogatório. A reunião tinha sido convocada formalmente para discutir as diretrizes intelectuais e organizativas do departamento a longo prazo. No entanto, ninguém ousava sair de sua estrita função administrativa no mais imediato e no mais limitado. Sugerir a possibilidade de uma reforma, por mínima que fosse, das premissas filosóficas, e dos métodos de trabalho, e discutir abertamente os horizontes históricos e políticos do hispanismo, e suas categorias programáticas, significava desafiar o silencio dos que não dizem nada a respeito porque nada têm a dizer. Por também em evidência a ausência de categorias históricas, estéticas e filosóficas de uma mínima envergadura intelectual nos estudos hispânicos, das quais meus próprios fiscais eram as provas de acusação, supunha um ato de verdadeira insubmissão. E, caso isso fosse pouco, me colocavam sob o fogo de suas acusações por ter-lhes recordado com um gesto risonho que a posição departamental dos estudantes, ou de sua minoria intelectualmente mais inquieta e criativa, era também mais inteligente que a de seus professores, pelo simples fato de ter chegado à universidade com expectativas mais verdadeiras.

Porém o julgamento só tinha começado e ainda me esperavam cenas bem mais aguerridas que a imputação de uma conjura intertextual fraudulenta com meus estudantes. Mal tinha tratado de balbuciar um par de desencargos em minha defesa, quando uma voz digna de um juiz de última instância pronunciou as três ou quatro sucintas palavras de uma condenação severa: – Your criticism undermines academic ethics! – exclamou, com um ar de quem governa soberanamente o espírito departamental. Depois do primeiro ataque legalista contra meus depoimentos fraudulentos, pretendiam colocar-me na forma de um conceito loyoliano de ética como voto de silêncio e de obediência.

Nestes anos de guerra não se fala de crítica nos corredores da academia norte-americana. Muito menos se emprega a palavra reflexão. E os nomes de filosofia ou de teoria se esgrimem sob seus significados mais triviais e com certa mágoa. Em troca se insiste até a náusea nos princípios inalienáveis da moral institucional. Tratei de explicar a mim mesmo este curioso fenômeno sem conseguir compreendê-lo. Em alguns casos pressinto que este tom moralista não está isento de um mau alento clerical. Sem espaço para dúvidas deve relacionar-se com as normas de um profissionalismo cujo princípio de obediência à disciplina da academia se encontra muito mais próximo da profissão de fé eclesiástica do que seus promotores secularizados desejariam admitir.

É evidente quanto ao demais que uma das razões desse ascendente ético nas instituições educativas é a fogueira sacrificial aos valores de reflexão filosófica, à purificação neoliberal de todo projeto de emancipação política, e à grande fossa comum do humanismo secular e crítico que os clérigos do postmodern cavaram à tradição crítica européia, de Giordano Bruno a Ernst Bloch, sob a bandeira da resistência contra o eurocentrismo. Tudo isso tinha sido enterrado confortavelmente em uma operação de limpeza intelectual sem que ninguém se preocupasse em saber muito o verdadeiro saber que é o que realmente ardia nas novas fogueiras do “great divide” pós-moderno. Mas ninguém melhor que um hispanista para assumir precisamente esta visão trivial de uma “Ilustração” rebaixada a positivismo lingüístico, reduzido a um absolutismo estatal ou diminuído às exóticas instalações psiquiátricas do século 18, e às quais se tinham subtraído de resto todas as suas dimensões estéticas, pedagógicas e políticas revolucionárias, já que em seu campo academicamente delimitado nunca ninguém soube com clareza o que esta palavra “ilustração” podia significar. E meus hispanistas levantavam no alto o crucifixo da moral por ter colocado em questão precisamente esse inefável vazio profissional e professoral.

Não tentarei explicar aqui as causas deste maligno “voided void” que inaugurou o século 21 e que infecta a maquinaria acadêmica assim como os campos da cultura industrial. Seus signos, de todo modo, se encontram por todas as partes, desde os mais altos arranha-céus até os cenários mais sangrentos de nossas guerras contra o Mal. Porém me permitirei duas definições para efeitos pragmáticos e imediatos. Primeiro: ausência de uma perspectiva histórica real de futuro, mais além das bagatelas que se vêm vendendo nas duas últimas décadas sob os universais do Postmodern e do Global: desde a redenção hibridista até a salvação multiculturalista, sem deixar de lado a emancipação triunfante dos sujeitos subalternos. Segundo: as múltiplas expressões de um pensiero debole programadamente impotente frente às violentas crises sistêmicas de nosso tempo e em desordenada retirada aos campos de refugiados dos cultural studies.

Na prática acadêmica cotidiana este vazio se traduz numa verdadeira fobia à reflexão. Traduz-se subseqüentemente numa incapacidade estrutural de pensar e discutir abertamente tanto os problemas mais concretos como os mais abstratos: seja ele conceito trágico de destino na poesia de García Lorca ou a legitimação administrativa do genocídio através da desconstrução midiática do real. Mas este niilismo histórico de nosso tempo também se evidencia nas estratégias de seu encobrimento. Com as mãos postas no timão de um barco naufragante, que navega à deriva, o hispanismo trata em vão de cegar as brechas abertas em seu mal definido território lingüístico com discursos da diferença e da subalternidade, consignas da salvação da cultura no reino do espetáculo, e micro-análise micro-políticas e microtextos que não saberiam responder à mais elementar pergunta do porquê nem para que. Com o conseguinte extravio institucionalmente dirigido dos estudantes nas micro-culturas departamentais que definem os logos e slogans de uma teoria prêt-à-porter e das subseqüentes cosméticas de compensação narcisista melhor ou pior empacotadas. Em troca de uma perpétua minoria de idade, cega a sua profissionalizada condição infra-intelectual, e muda frente aos dilemas da política e da literatura contemporâneos.

Sofía já tinha me alertado a este propósito: “A ‘teoria’ é apenas uma forma de evitar dar nome ao vazio e preenchê-lo com jogos de palavras: Não nos falta nada porque, igualmente, não sabíamos o que é”.

Decidi então enunciar ante meus juízes as três ou quatro teses de minha proposta de reforma do hispanismo que tinha insinuado em minha ignominiosa Epístola departamental, proclamado em minhas pérfidas Sete Teses contra o Hispanismo, e desenvolvido mais tarde no infamante Informe para a Academia e nos diabólicos Cento e Treze Paradoxos: um, reabilitar e restaurar um horizonte espiritual e filosoficamente complexo no mundo hispânico, com nomes como Maimonides, Ibn’ Arabi ou Ramón Llull por um lado; dois, o reconhecimento da centralidade de projetos artísticos e políticos como os de Simón Rodríguez, Blanco White e Augusto Roa Bastos, eliminados parcial ou totalmente do cânon literário departamental e da indústria editorial global; três, restabelecer um conceito de tradição intelectual e cultural hispânica que tinha sido estreitado artificialmente pelo nacionalismo católico espanhol por um lado, e seu descendente predileto e direto, o nacionalismo colonial e pós-colonial latino-americano, por outro; quatro, repropor, repensar e reconstituir o decapitado projeto reformador de ilustrados, liberais, independentistas e republicanos condenados ao exílio; cinco, redefinir as vanguardas a partir precisamente da experiência, marginal com respeito às metrópoles industriais e coloniais do século 20, das culturas luso-hispânicas; seis, repropor as categorias gerais de interpretação histórica desde o renascimento e a idade colonial até as revoluções do século 20… Mesmo assim devia-se questionar o ritual litúrgico segundo o qual há que se passar por uma prova de bendição sob as águas turvas de uma teoria sem conceito de si mesma, e que na prática se reduz a um par de sucintas referências ao pós-estruturalismo, teoria performática e hibridismo como paradigma dos estudos culturais, depoimentos consabidos de um feminismo trivial, um pós-colonialismo de duvidosa filiação no mundo hispânico, e alguma referência sumária a três páginas de Platão ou dos parágrafos de Foucault a título de fast food filosófico. Tudo isso devia ter pronunciado em minha defesa. Mas compreendi que só ia acender ainda mais e inutilmente as paixões fiscalizadoras de meus hispanistas. E apertei os lábios.

– Você menosprezou nossa dignidade! You are an instigator! The students were outraged by your letter! – seguiram execrando-me, sem me dar sequer tempo de respirar. –You undermined the academic code of honor! – repetiu outra voz com um tom de voz ainda mais insolente. A agitação da arena departamental fazia-se asfixiante. Senti que estava submetido a um autêntico linchamento acadêmico no qual nenhum dos membros do corpo professoral queria desperdiçar a oportunidade de lançar-me sua pessoal imprecação sobre minhas costas. Suas advertências variavam quanto ao seu significado e categoria condenatórios. Muitas delas se pronunciavam com o gesto firme de quem está decidido a uma fogueira disciplinar. Inclusive podia perceber, apesar de meu aturdimento, diferenças no tom emocional que as animava. As frases que aludiam ao caráter violento de minha Epístola departamental se acentuavam com uma severidade autenticamente militar que me faziam imaginar drásticos castigos de expulsão e técnicas de tortura psicológica, enquanto as incriminações sobre a dignidade ofendida de meus hispanistas se pronunciavam com a mesma suavidade viscosa de um confessor generosamente disposto a perdoar minhas heresias sempre que acatasse formalmente minha culpa. O mais curioso era, contudo, que em nenhum caso se pronunciara argumento algum, e muito menos se punha em questão a natureza de minha proposta. Atuavam como se minhas Teses, meu Informe e minha Epístola fossem atas tão intelectualmente vazias como seus protocolos administrativos.

Teve de qualquer jeito pelo menos uma reprimenda que reunia os significados de uma pitoresca patranha. O acadêmico em questão reclamava que tinha se apresentado pessoal e propositalmente em meu escritório, e, com a maior gentileza de sua parte, me havia explicado com minuciosa escrupulosidade que meu projeto de introduzir um seminário de estética no âmbito da aprendizagem teórica dos doutorandos de literatura não era pertinente, porque uma coisa era estética e outra teoria literária. Em seguida me incriminava porque eu o tinha coagido a abandonar iminentemente meu escritório com um gesto displicente, pois, de fato, não me acreditava na obrigação de escutar necedades se, de todo modo, a única coisa que queria a administração departamental era vetar esses seminários chamados teóricos, com a certeza de que não ia transmitir os quatro preceitos capitais dos cultural studies, mas os dois princípios fundamentais do hibridismo, mais os três axiomas sagrados dos estudos subalternos, mais os postulados do conceito de cultura como expediente corporativo e outras fraudes administrativamente sancionadas. E que também não ia predicar alguns gender studies que se repetem ad nauseam na academia como as ave-marias dos conventos católicos de freiras, para conjurar os demônios que desde a manipulação genética, até os novos sistemas e redes de exploração sexual e feminicídio ou feminismo corporativamente acolchoado nem quer, nem é capaz de por em questão.

– Você não se dá conta, homem! Que não! Que te digo que não! – me alfinetou outro professor, aproximando-se tanto dos meus ouvidos que tive que me afastar para não sentir seu hálito. – Que one thing is aesthetics, e outra coisa a literary theory! Homem!

“No fundo de sua alma – me tinha dito Sofía – temem ou sabem que o que não tem a menor possibilidade de sobrevivência é a universidade como instituição. A fusão entre saber crítico e saberes práticos que supunha esta em sua versão moderna é insustentável. A universidade se converteu em seu oposto: um centro de preparação de corpos técnicos. A crise se manifesta, naturalmente, nas assim chamadas humanidades.”

Nas faculdades científicas a reflexão sobre as implicações humanas da produção de conhecimento já há muitas décadas foi eliminada lingüística e administrativamente: esta é a real situação institucional de uma ciência irreflexiva, e em muitos campos, como a biologia e a genética, e todas as pesquisas relacionadas com a indústria militar, uma ciência agressiva que as epistemologias pós-modernas ocultaram sob suas performances neodadaístas e neo-anarquistas de discursos híbridos, realidades virtuais, desconstruções sistêmicas e modernidades gasosas ou líquidas, ou do simples cinismo do “tudo vale” enquanto não coloques nada em questão. Mas como no campo das humanidades este conflito humano é mais difícil de subtrair e de abstrair, é aqui também onde têm que se aplicar estratégias complementares de vigilância lingüística e castigo administrativo. E onde uma crescente trivialização intelectual anuncia um próximo dia em que sua desaparição não signifique então outra coisa que se liberar efetivamente de um dejeto.

Os recortes e depreciações do conceito de “teoria” são parte desta questão. Ainda mais: constituem sua real estratégia. E as imaginárias muralhas departamentais entre estética e teoria literária não eram a este despropósito senão uma citação corrente de graciosa ignorância. O problema não reside, em todo caso, em oferecer um menu com Foucault ou outro, alternativo, com Adorno. Ou doutrinar os estudantes com estudos subalternos para evitar os perigos de uma crítica da teologia política colonial que em suas últimas conseqüências políticas ou poéticas pudesse pôr em dúvida, por mencionar um exemplo, o genocídio de índios no Amazonas colombiano sob os auspícios da Guerra global e da subseqüente destruição de mitos e deuses milenares de tradição oral. O problema que meus magistrados pretendiam ocultar a si mesmos por meio de suas recriminações morais é muito mais grosseiro e elementar. É a mesma eliminação da teoria como reflexão rigorosa sobre um texto literário quer se trate do conceito de natureza, cosmos e destino na obra de José María Arguedas, ou na teoria das civilizações de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. O objetivo implícito da condenação de toda autêntica reflexão filosófica e estética no ensino das humanidades é ignorar e fazer ignorar os conteúdos e as tradições artísticas e intelectuais que possam possuir uma dimensão transcendente com respeito às definições corporativas da cultura como espetáculo e expediente burocrático. A demolição das humanidades: esta é a questão.

Não faz falta dizer que nada de tudo isso se propõe em si e por si mesmo na academia. Fazê-lo presumia abrir espaços para a reforma dos estudos humanísticos cujos potenciais de crítica e cujas possibilidades intelectuais pudesse pôr em questão o tedioso estado de coisas em cujo meio vivemos. Frente a este ostensivo processo de desumanização do ensino, de trivialização de seus conteúdos reflexivos e de anulação de qualquer dimensão crítica do pensamento a burocracia acadêmica que conheci, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa e América Latina, tudo o que sabe fazer é cruzar os braços. O certo é que em todos os curricula da academia se põe em cena, e a miúde com verdadeira ostentação, algo que brilha da maneira mais arrogante e pedante, a etiqueta de teoria. Porém em raras vezes se deixa construir esta teoria como pensamento próprio e como um processo reflexivo autônomo, construído ademais ao longo de um processo de maturação moral da pessoa e dotado de uma dimensão autenticamente intelectual. A teoria se concebe senão como algo que se deixa cair do céu a título de modelo conceitual prévia e exteriormente estabelecido e sancionado. Não é uma visão das coisas construída ao longo de uma experiência reflexiva e individual da realidade. Identifica-se essa teoria com uma simplíssima superposição de esquemas preconcebidos a fragmentos textuais correspondentes a um campo literário de limites e intensidades ademais mal definidos. Teoria como colonização lingüística de uma realidade fragmentada e distorcida a partir dos ready mades categoriais filtrados pelos departamentos de inglês e de literatura comparada, e patrulhados pelos agentes da indústria editorial. Por isso não se fazem nem se podem fazer teses de doutorado que tratem de analisar sistematicamente as grandes obras canônicas de arte e literatura, nem as grandes linhas de pensamento filosófico, nem as tradições verdadeiramente intelectuais e autenticamente críticas do mundo ou dos mundos luso-hispânicos. Por isso se tende a encerrar a vida acadêmica em visões de mínimo alcance intelectual e autores os mais secundários possíveis. Por isso se descarta departamental e sub-departamentalmente a própria possibilidade de ensaios nos quais se pudesse construir experimentalmente um autêntico pensamento. Até que algum dia algum global guru solte lacônica e simplesmente “there is no such thing as theory", e entre risos e aplausos anuncie uma idade pós-teórica com o mesmo gesto estúpido que os administradores da cultura global já proclamaram o final da arte ou da política, ou o final do direito à sobrevivência, na infinita ladainha agônica de um niilismo corporativamente legitimado.

Quanto a todo o resto, esse dia final já chegou. Os mesmos hispanistas que condenavam minhas Teses e meu Informe atuavam como seus porta-vozes subalternos. Eram eles os que proclamavam, com a ingenuidade que lhes outorgava sua profissão, de profissionalismo a banalização do pensamento, o desmantelamento do cânon literário, a eliminação da consciência intelectual, o fim de toda dimensão espiritual do pensamento, a redução da obra de arte a espetáculo, a reinvenção de uma teoria literária que na realidade era uma sociologia idiossincrásica da literatura, a redefinição financeira da cultura como expediente administrativo e, como corolário final, a elevação do conhecimento aos altares do valor do livre mercado e sua subordinação às mãos invisíveis que o regem: os seis ou sete pontos cardinais da demolição corporativa das humanidades e a abdicação do pensamento em nossas universidades.

You are attacking us! – repetiu então outra voz. –You don’t propose anything! You say nothing! What do you mean by void of theory?! – ressoou na sala com agressividade ainda mais prepotente. E, sem deixar-me recuperar o fôlego, meus fiscais seguiram me batendo com fúria renovada: – You offended us! Este informe é uma crítica ad hominem! Your letter is a personal attack! Violento! Your assertions are outrageous!

As acusações se sucediam num precipitado tropel. As censuras ao caráter meramente pessoal de minha Epístola, das Sete Teses contra o Hispanismo, e do Informe para a Academia se repetiam com um assombroso entusiasmo. Parecia que tinham aprendido a lição elementar da propaganda de guerra global: à força de repetir a mesma insensatez mil e uma vezes seus predicadores acabam por acreditar nela. Resultava muito óbvio, por outro lado, que a função psicológica destas reprimendas era evaporar qualquer conteúdo, qualquer idéia, qualquer projeto que escapara ao seu controle. O que eu tinha colocado em questão ao longo de uma infinidade de intervenções certamente polêmicas não eram as pessoas de meus hispanistas, mas a impessoalidade do sistema de ensino. O que criticava era a destituição anti-humanista de toda dimensão espiritual na compreensão da obra de arte, a eliminação da busca individual da verdade na experiência exemplar da realidade que deveria ser o objetivo sagrado da educação humanística. Mas meus fiscais não queriam ouvir esta crítica à estandardização do conhecimento e ao esterilizante predomínio do formalismo sobre a experiência individual. Nem queriam saber nada de meu não ao tedioso princípio de repetição que o dirigia, e à anulação da espontaneidade e de toda originalidade que o acompanhava. Não queriam reconhecer minha crítica à desinversão intelectual da universidade em tempos de barbárie. Esta tinha sido precisamente também a visão que a doutoranda Danielle Carlo tinha levantado apenas algumas semanas antes naquele mesmo departamento com seu manifesto No to silence/Não ao silêncio: uma denúncia da ausência de um espaço de expressão intelectual no qual os estudantes pudessem cristalizar uma voz e um pensamento próprios.

Sofía havia me advertido de todas as maneiras: “Aqui tive que passar por uma situação semelhante. Alguém apanhou algumas páginas minhas e as destroçou com uma sucessão incontrolável de comentários ad hominem, que eu era isto e aquilo, meu tom arrogante, minhas asseverações mandarinescas. Basicamente, pus em dúvida minha posição como sujeito pensante e falante para referir-me a qualquer tema, e inclusive meu direito a fazê-lo. Num gesto típico meu – no qual revelei toda minha arrogância e meu desprezo – lhe pedi desculpas por se em algo minhas elucubrações sobre o romantismo na América Hispânica tinham tocado algum ponto que lhe ofendesse. Isto é, me neguei a seguir uma discussão intelectual com ele e pus o problema no nível puramente pessoal. Muito tonto para notar minha perspicácia, o adviser terminou explicando que o que lhe tinha ofendido era que eu tivesse escrito algo sem lhe consultar, isto é, sem invocar sua soberana autoridade intelectual. Narcisismo ferido em todo seu esplendor. Não tinha lhe ofendido o que eu dizia, mas o fato de que pudesse dizê-lo sem incluir um suposto aporte seu. Tinha-me atrevido a apresentar coisas que não tinham sido sancionadas por sua autoridade…”.

Uma lógica esmagadora percorre toda esta injúria. Em uma organização do conhecimento na qual todo o peso recai nos códigos lingüísticos pré-estabelecidos e em modelos de pensamento pré-definidos, na qual ninguém pode questionar individualmente os magnificados “petit recits” e micro-análises departamentais sob pena de ser silenciado, e na qual a assim chamada ética institucional aviva e avaliza comportamentos plenamente gregários, questionar sua vacuidade sistêmica por um ponto de vista reflexivo ligado a uma experiência pessoal e a um pensamento próprio supõe a pior das afrontas. Melhor dizendo, é um crime. E o é, nada mais nem nada menos, porque significa por em evidência a real ausência de um projeto intelectual que sustente reflexivamente este sistema.

É necessário recordar a este respeito que a atitude distintiva do acadêmico nestes anos que precederam à Guerra global, e seu próprio princípio de identidade e de dignidade institucionais partiram de um sacrifício primordial: sua renúncia como consciências intelectuais autônomas em favor dos órgãos corporativos da ciência e seus discursos sancionados. E seu traço psicológico e intelectual mais característico foi, em conseqüência, um sombrio ascetismo que se encobria muitas vezes com o ar pedante de quem está desiludido de tudo, mas que de todo modo se traduziu num funesto silêncio, inclusive naquelas questões que afetavam de maneira imediata a seus campos departamentais: da demolição das humanidades ao derrubamento dos direitos humanos. Tudo havia sido pós e tudo haviam sido finais para esta geração de pós-intelectuais pós-humanos. A responsabilidade política da ciência? Uma vã ilusão esquerdista! As desconjuntadas tradições intelectuais do século 20, o mesmo na Europa que na América Latina? Romantismo passé! A crítica do real? Ficção de ficções! A crise do intelectual como homem e mulher públicos? Assunto arquivado! Até o precioso momento no qual as guerras do fim do mundo caiu sobre eles, e com elas a derrogação do pensamento tout curt. E pretendem que seus pupilos sigam a mesma reta vereda de sua profissionalizada falência para coroá-la com novos silêncios.

Ali onde os méritos institucionais do homo academicus não podem se medir em termos de sua participação real num diálogo social aberto, nem em um projeto intelectual consistente, nem de um horizonte político transparente, o único e o último que lhe resta efetivamente por defender é seu próprio narcisismo. O culto ao star professor que a academia norte-americana pratica como uma de suas mais conspícuas insígnias deve entender-se também neste sentido. Esse estrelato é a expressão de uma individualidade e um conhecimento que se voltaram opacas a si mesmas e só por isso podem se elevar à categoria de fetiche comercial. Sua performance como espetáculo do conhecimento permite ocultar à reflexão seu real sacrifício como autêntica experiência coletiva num sentido humanista que de toda forma é preciso redefinir. Ocorre a estes profissionais do show acadêmico o mesmo que aos atores de teatro que da noite à manhã se transformavam em estrelas de cinema segundo a análise da moderna sociedade do espetáculo que Benjamin antecipou nos dias esplendorosos da indústria fílmica alemã. O que aqueles atores perdiam nos cenários teatrais quanto à unidade da criação a partir do centro espiritual de sua personalidade criadora, ganhavam na montagem da produção mecânica e industrial da realidade fílmica, isto é, no aparato. Por isso o ator de cinema tinha que compensar com os prazeres ostentosos dos flashes e o fashion sua real renúncia à criação artística e à reflexão intelectual autônomas. O star professor reitera tragicomicamente esta involução espiritual na era do desmantelamento das humanidades.

Mas as recriminações seguiam chovendo sem parar. E a tensão psicológica ligada a sua insidiosa veemência começava a abater-me psicologicamente. Sentia que minhas respostas não eram capazes de romper a firme barreira das acusações departamentais, que meus fiscais não estavam dispostos a escutar outra coisa que o doce eco de suas reiteradas repreensões e que, em suma, estava perdendo terreno. Ademais, uma das imputações da qual havia sido objeto tinha-me inquietado em particular até o ponto de fazer-me oscilar a voz. Durante toda a sessão se falava de minha carta departamental como uma lista de insultos pessoais combinados com declarações fraudulentas dos estudantes. Ocultava-se escrupulosamente que minhas propostas se sustentavam num volumoso trabalho crítico, e inclusive que eram sua última e predizível conseqüência. As acusações implicavam uma rotunda negação de meu trabalho intelectual inclusive dentro dos muros departamentais.

Meus ensaios de interpretação das premissas filosóficas e teológicas do colonialismo americano e sua relação constitutiva com o sujeito moderno como “continente vazio”: Tal coisa não existe! Minha crítica da modernidade insuficiente dos mundos luso-hispânicos e seu radical significado para a teoria crítica da civilização moderna: Non sense! Minha longa discussão sobre as vanguardas artísticas brasileiras, sua radical originalidade e seu caráter paradigmático: Isso não interessa! A crítica das falsificações das transições pós-fascistas na Espanha e América ao longo de uma série de artigos, conferências e livros: Bullshit! Minha análise da cultura do espetáculo: Delírio! A teoria crítica das vanguardas européias: Vã glória! Minha reconstrução histórica da violência numa era de guerra e escárnio: Cala a boca! A crítica da razão moderna que arrastei desde meus anos de doutorando: Quem você crê que é! Minha presença intelectual na imprensa latino-americana. Ridículo! A analítica da “existência sitiada” de nosso tempo: Não é nada! Todo experimento ou presença intelectuais que ultrapasse conceitual e politicamente os marcos de referência micro-departamentalmente sancionados, tudo o que não seja simples clonagem de sempre as mesmas citações, os mesmos autores e os mesmos colegas, tudo o que não seja dejà vu, tudo o que possua uma força intelectual própria, tudo isso não existe nos espaços rarefeitos da academia. Tal é o significado sub-estrutural de sua blasonada ética. Reduzir à condição de subalternidade forçada àqueles que não a abraçam como dogma de fé, nem como princípio de identidade.

Sofía tinha me alertado também a este propósito: “Este fim de semana tive que viajar em trens e metrôs, e levei de leitura teu livro Viagem ao fim do paraíso. Li com cuidado suas Teses contra o hispanismo. Notei algo, ou me pareceu notar algo: o que você propõe é um debate sobre a definição e delimitação dos estudos hispânicos. Postula os dilemas históricos desta delimitação. Suscita o problema fundamental do que contêm os nomes, a carga de sentidos que carregam. A minha maneira de ver, esse assunto é a pergunta com a qual deveria começar toda reflexão. Isto é, o que você esboça é o próprio projeto ao qual deveriam se dedicar os estudos hispânicos, a enfrentar de maneira real e contundente o sentido histórico desses povos, seu posicionamento geopolítico, seus pretextos discursivos de negação e repressão de seu papel histórico, sua covardia para assumir sua realidade ante os desafios que lhe foram apresentados ao longo de cinco séculos…”.

O que meus fiscais queriam evitar era uma discussão aberta que manifestasse sua ausência de categorias críticas frente a uma honesta revisão do cânon exposta nessas Teses e redefinidas um ano mais tarde em meu Informe para a academia em termos claramente didáticos. A perseguição daqueles manifestos que, no entanto tinham burlado as censuras departamentais transbordava ademais anedotas intrincadas. O secretário geral tinha interceptado a difusão eletrônica das Teses aos estudantes. Quando entreguei o Informe ao chefe departamental e a um comitê sub-departamental designado com o objetivo de ampliar e revisar um velho e esburacado cânon, a resposta foi um apertado silêncio administrativo. Ou ainda pior: quando tiveram notícia de que as coisas podiam colocar-se em semelhante grau de complexidade, meus hispanistas cancelaram a operação prevista de uma ampliação das listas de leituras para os estudantes. Enquanto tinha apresentado minha proposta em uma série de universidades, desde Londres e Berlin, até Florianópolis, passando por México. As Teses foram publicadas numa infinidade de revistas locais. Quanto ao Informe acabei apresentando-o solenemente no Reitorado da Universidade de Oviedo que o publicou de imediato no formato de um livro de poemas.

– Leia este Informe para a Academia! – respondi ao improvisado fiscal que tinha recriminado minha ausência de reais soluções construtivas a minhas críticas barbarescas. – Aí você tem a descrição bem detalhada de minha proposta!

Tive que dar às minhas palavras o ar insolente de um Galileu insistindo a seus verdugos eclesiásticos que vissem por seus próprios olhos através de seu recém-criado telescópio que os satélites de Marte não giravam ao redor da Terra. De outro modo não me explicou sua resposta: – Não tenho tempo para ler esses informes! Seus colegas assentiram com risos e caretas.

Porém a jactância de semelhante declaração não me impediu um sentimento interior de alívio. Aquilo parecia uma sentença final e já estava na hora de acabar com semelhante farsa. O corpo departamental decretava o veredicto concludente de minha atividade acadêmica e extra-acadêmica como nula. Pelo ponto de vista da ética corporativa minha personalidade ficava cognitivamente rebaixada à categoria negativa de anticorpo. Em termos administrativos supunha a condenação indefinida a um absoluto silêncio. Tinha que assumir a culpa e acatar a humilhação que o tribunal tinha colocado em cena como a verdadeira redenção de minhas ofensas. Mas me equivocava uma vez mais. Meus juízes não se davam por satisfeitos em revalidar sua política de ostracismo. Algo muito pior tinha que cair sobre mim.

Não só tinha proposto uma discussão aberta sobre os crassos dilemas do hispanismo, como tinha jogado os dados em uma aposta concreta e polêmica em quase todos seus aspectos, como o de integrar o passado hispânico-judeu e hispânico-islâmico ao currículo hispânico, ou reconhecer oficialmente as literaturas pré-coloniais da América como momento central de suas culturas de ontem e de hoje. Tinha proposto uma reclassificação dos conceitos de Ilustração. Tinha me atrevido inclusive a assinalar a centralidade das cruzadas medievais na constituição da identidade nacional católica e do processo civilizador americano desde o ponto de vista da teologia política da colonização. Tinha exposto a irredutibilidade das vanguardas latino-americanas ao conceito formalista de um “international style”, e aos conflitos e dilemas das vanguardas européias. Tudo isso e algumas coisas mais já eram por si mesmas razão suficiente para impor-me os votos de silêncio na academia, nas fundações de pesquisa e nos editoriais norte-americanos, nos que sempre tinha chocado com os mesmos fiscais, a mesma intolerância e a mesma opacidade. Mas as coisas também não acabavam aqui. Existia uma barreira política ainda mais espinhosa e de cuja existência não me havia dado conta até a proximidade deste processo.

O problema era, se assim se quiser, simbólico, ou para empregar uma das cartas trucadas do baralho dos cultural studies: performático. Uma espécie de orientalismo adaptado às novas condições geopolíticas da Guerra contra o Mal. Mas dada a capacidade de clonagem e repetição ad infinitum dos slogans e logos difundidos pela academia global norte-americana suas fatais repercussões hemisféricas também não deveriam deixar-se de lado. Para dizê-lo pronto e redondo: tinha-se decidido eliminar o cânon literário luso-hispânico. Num simples expediente expeditivo meus hispanistas tinham evaporado as categorias e as hierarquias que de uma forma mais ou menos precária eram chamadas a reconstruir uma continuidade cultural, uma tradição intelectual e algumas memórias literárias no âmbito geopolítico latino-americano e ibérico, dotadas de um projeto social, um sentido crítico e uma vontade emancipadora.

Em termos fáticos não se fazia mais que suprimir uma incompetente lista de autores hispânicos e latino-americanos que até aquele momento servia, mais mal que bem, como marco orientador na delimitação de um cambaleante campo de investigação literária e filosófica ambiguamente classificada como hispanismo. Sua suspensão burocrática tinha se decidido de todo modo furtivamente. Ninguém quis discutir suas premissas e ninguém assumiu a responsabilidade da deposição. Foi uma medida administrativamente naturalizada com o simples argumento de que “também se fazia em outros departamentos”. Obviamente, não se empregaram ao caso os termos sonoros de invalidação ou derrubada. O assunto se empacotava com o comedimento de quem não mata uma mosca. Um simples truque de um reading list antiquado, por outro individualizado, na medida das idiossincrasias pessoais de cada qual, como se diz também nos anúncios de créditos bancários. Isso permitia, ademais, apresentar aos estudantes a defenestração do cânon com a fanfarra de uma verdadeira revolução anarquista.

Mas seria errôneo considerar a liquidação do cânon literário e das tradições críticas luso-hispânicas como o resultado da simples cegueira ou da má rotina administrativa. Sua decisão surgia no fundo de uma incapacitação intelectual aguda e neste sentido é de toda forma compreensível que meus hispanistas se sentissem pessoalmente ofendidos ao lhes apresentar uma alternativa de enormes possibilidades intelectuais que nem tinham imaginado, nem eram capazes de compreender. Permitirei-me recordar um par de situações incisivas.

Em certa ocasião perguntei malevolamente a um multiculturalista que lugar outorgava ao Zohar ou Livro do Esplendor, a obra máxima da espiritualidade ibérica, nas literaturas hispânicas: – Isso é deles! – respondeu com certo ar de suficiência – Assunto de hebraístas! – caindo de bruços na mesma lerdeza que já tinha denunciado há alguns séculos o bom soldado do Retábulo das maravilhas. E quando, mais impertinentemente ainda, reclamei sobre a relação entre o messianismo da cabala e Dom Quixote, o próprio docente me respondeu que isso era precisamente multiculturalismo, sem perceber nem de longe que minha questão girava em torno de um conceito místico e filosófico de messianismo, não sobre a teologia política da mestiçagem ou hibridação. E, perdida já minha paciência, lancei terminantemente ao subalterno em questão que não pode se compreender o misticismo contra-reformista de Teresa de Ávila sem conhecer o misticismo cabalista que lhe precedeu na mesmíssima cidade de Ávila, o qual repôs com a maior tranqüilidade que uma coisa não podia se mesclar com a outra.

Em outra circunstância, o objeto de minhas aleivosas averiguações foi Pedro Páramo. Importunava-me que esse feminismo academicista tão perfeitamente acomodado ao establishment da cultura corporativa, e inclusive hoje às legitimações da Guerra global, imiscuísse-se também na interpretação deste romance de Juan Rulfo pela simples e ostensível razão de que seus personagens psicologicamente mais complexos e esteticamente mais fascinantes são, efetivamente, mulheres. Porém a tal leitura feminista era em primeiro lugar hermeneuticamente inconsistente porque elevava sem mediação reflexiva alguma os valores da classe média branca e calvinista norte-americana do século 21 a uma universalidade sui generis e os aplicava sem maiores reflexões a uma comunidade rural de campesinos de origem asteca agonizando na profunda miséria pós-colonial dos páramos mexicanos. Na realidade, este aporte feminista não pode considerar-se rigorosamente como uma interpretação, senão como uma projeção urbi et orbi de valores culturais sancionados como politicamente corretos na era do imperialismo cultural global.

Porém isso não era o mais importante, nem tampouco o pior. Por causa de seu perfeito caráter consabido e conciliador, esse feminismo servia, ao mesmo tempo, de cortina de fumaça para encobrir o conflito entre o brutal poder colonial representado pelo caciquismo espanhol e pela Igreja católica, por um lado, e pelas desintegradas comunidades índias por outro. E ainda que o colonialismo cristão é universalmente sexista, a crítica micro-política do sexismo não deveria servir para eludir uma teoria crítica da teologia política do colonialismo cristão, para a qual, o romance de Pedro Páramo brinda precisamente um quadro não somente prolixo, mas precisamente paradigmático.

Não é preciso sublinhar que os conflitos coloniais das Américas, os de ontem como os de hoje, são um tabu raras vezes transgredido na academia norte-americana. Seus significados genocidas, os processos de hibridação e liquidação culturais que os acompanham, ou suas estratégias de espoliação e escravidão são constelações suficientemente claras para por em dúvida o débil cenário de feminismo, direitos humanos e multiculturalismo dos signos que sustenta a boa consciência do pós-intelectual acadêmico. Os hispanistas em particular somente se referem ao assunto desde perspectivas micro-textuais e micro-históricas que possam eximir-se das implicações teológicas, políticas e civilizadoras do processo colonial. E, se em alguma ocasião pronunciam a palavra colonialismo, é sob os auspícios exóticos e esotéricos do pós-colonialismo hindu instaurado na academia como paradigma histórico universal.

Mas também não acabam aqui os desatinos do meanstream latino-americanista. Não só o feminismo se utilizou para liquidar micro-politicamente uma perspectiva teológica e política mais radical, mas sua instrumentalização retórica serviu neste caso, e não somente neste, para ignorar suas próprias dimensões teológicas, mitológicas e simbólicas profundas. Deve se recordar neste sentido, e só a título de exemplo, que as mulheres de Comala não são ativistas feministas de classe média camufladas nos subsolos de um povoado perdido do planalto castelhano. E sim se deve reconhecê-las como epifanias das deusas pré-coloniais meso-americanas que regem sobre a vida e a morte, o infinito poder regenerador da terra, e um tempo cósmico cíclico que também não é feminista, nem cristão, nem mágico-realista. Só que este passado pré-colonial (que de todo modo segue sendo um presente histórico para os povoados sobreviventes de América) é precisamente um não-lugar nesses mesmos cânones oficiosos e oficiais de nosso hispanismo débil. Enfim, e ponho com isto ponto final a estes contos torpes da academia: em ambos os exemplos, o do Zohar ou o da Coatlique e suas deusas irmãs, chocamos graciosamente com a função hermeneuticamente estupidizante de retrógradas exclusões e suas trivializadoras legitimações administrativas, que de todo modo se reduzem a um pós-estruturalismo de bolso e um multiculturalismo de andar por casa.

E me permitirei alongar ainda mais a questão, e de fazê-lo com uma vontade explicitamente didática. O problema mais perturbador que produz este desconcerto departamentalizado não é somente a falta de imaginação, a falsificação e a irresponsabilidade hermenêuticas. Em última instância o dilema que reflete esta situação angustiante é “a falta de espírito da universidade hoje” (K. Heinrich, 1987). Para explicá-lo com poucas palavras: a dimensão estética da verdade inerente ao coração espiritual de toda autêntica obra de arte é inseparável desta radicalidade hermenêutica que no caso do Quixote tem a valentia de desentranhar seus momentos messiânicos ligados à tradição de cabala, e no de Pedro Páramo se atreva a pôr à luz do dia uma cosmologia vertebrada em torno das deusas da vida e da morte, e sua humanidade regeneradora de uma existência tão ferida como nossa assim chamada comunidade acadêmica.

Porém não posso, tampouco, dar aqui por terminados os disparates professorais. Ainda existe uma ulterior motivação burocrática para livrar-se da polêmica entorno à reforma do cânon literário luso-hispânico como quem tira o pó dos sapatos, e optar pelo expediente diligente de sua simplicíssima supressão administrativa. Uma motivação que de todos os pontos de vista resulta mais relevante que a mera preguiça intelectual ou a estrita falta de rigor filosófico. Suas obscuras razões e argumentos se subsumam precisamente a uma categoria universalmente contestada: a santa globalização. Esta pode se descrever positivamente, no que se refere ao âmbito das culturas latino-americanas, e por extensão ibéricas, como uma contração conceitual de suas expressões sociais, artísticas e literárias sob categorias uniformizantes como hibridismos e performances, e desconstrutivismos e micro-políticas, ou estratégias de gênero e identidade; de um ponto de vista negativo, esta globalidade supõe a destruição futurista do cânon ou de seus cânones literários, arquitetônicos e artísticos precisamente naquelas obras-primas que desde Simón Gutiérrez a José María Blanco White, e de Ramón del Valle-Inclán a Augusto Roa Bastos, e de José María Arguedas a Federico García Lorca, e desde os projetos urbanísticos e paisagísticos de Burle Marx, até os projetos de cidade e cultura popular de Lina Bo, e, enfim, da filmografia de Glauber Rocha à crítica social de Gutiérrez Alea – citando só alguns exemplos escolhidos ao acaso – tinham proposto um projeto intelectual e político eliminado sob a mortífera bandeira da Guerra Fria e os aparatos fascistas hemisféricos sufragados em seu nome.

Tratava-se, ademais, não de idiossincrasias literárias individuais, mas precisamente de um projeto intelectual, cultural e político, ou ao contrário, de uma série de projetos em íntimo acordo, que nem coincidiam nem coincidem com os objetivos do colonialismo corporativo neoliberal, nem com as estratégias associadas de desconstrução pós-intelectual das culturas latino-americanas sob o princípio logístico da cultura espetáculo-mercantil e objeto de administração semiótica. A neutralização das grandes tradições intelectuais e artísticas latino-americanas e ibéricas do século 20 se leva a cabo hoje certamente por meios mais ternos que os empregados pelas ditaduras de antes. Que são também métodos mais eficazes. Agora já não se persegue a seus porta-vozes com as armas na mão. Nem os expulsa a inominados exílios. E sim os elimina em nome de uma descentralização pós-moderna da razão globalizadora, da departamentalização e fragmentação administrativa de tradições intelectuais e artísticas, e da pulverização lingüística de saberes – com o que estou chamando a atenção sobre os covardes cegos de um “Postmodernism Debate” que os departamentos de Spanish&Portuguese colocaram abominavelmente à venda nos anos das transições pós-fascistas como o suposto grande debate de e na América Latina para “curto-circuitar” precisamente uma silenciada discussão em torno do projeto político e intelectual decapitado pelos comissários políticos da Guerra Fria. E essa não era de todo modo a única estratégia de liquidação intelectual que se colocou em funcionamento sob a pudica bandeira do politicamente correto. Paralelamente se volatilizou também esta tradição crítica da inteligência luso-hispânica no nome sagrado de uma emancipação surrealista do cânon, epistemologicamente sancionada com o cinismo do “anything goes” empregado pelos Feyerabend e Lyotard.

Mas também não terminavam aqui os enredos departamentais. Implicitamente e com o gesto distraído de quem chega do shopping center, o latino-americanismo preponderante no mundo anglo-saxônico identificou estes escritores canônicos, seja Darcy Ribeiro, seja Augusto Roa Bastos, ou o próprio João Guimarães Rosa com a “cidade letrada”, ou seja, com projetos intelectuais nacionalistas e fundamentalmente reacionários, que a cultura do espetáculo e seus missionários hemisféricos dos cultural studies teriam superado com sua compreensão global das coisas – na realidade outra operação de fraude hermenêutica sobre o projeto intelectual e político que atravessa a obra de Ángel Rama e a tradição crítica latino-americana do século 20.

Sofía tinha me admoestado severamente neste sentido: “Os editoriais anglo-saxões não publicam nada que tenha a ver com as literaturas da América latina. Editam "cultural studies" de algum tipo e qualquer espécime de “teoria". Você sempre se confunde nesse ponto, Eduardo! Acredita que a reflexão é "para" esses lugares e sujeitos que constituem o “objeto” do latino-americanismo. Na realidade o que importa é o que a América Latina é para os Estados Unidos e Europa como espaço de colonização. A "teoria" produzida pela máquina acadêmica serve para deslegitimar os discursos da tradição crítica latino-americana e submetê-la a uma dependência de elaboração teórica desde o centro. Os que não se subsumem a essa teorização como você ficam silenciados. Se estuda da América Latina o que caiba dentro dos preceitos das novas teorizações, por sua vez em permanente estado de re-formulação. Com isso, se lançam periodicamente projetos de reflexão que sempre ficam inacabados, pois a nova tendência teórica exige tornar o olhar para outras coisas. Nessa rápida reconversão das teorias no centro, a América Latina parece sempre ficar atrás. E os latinos-americanistas ficam sempre reclamando uma vozinha num cenário acadêmico global no qual de todo modo estão relegados de antemão ao honroso papel de watch’n wait”.

Pensar reflexivamente o cânon da literatura e das artes nas culturas luso-hispânicas significa, primeiramente, debater seu não-lugar no panorama da cultura global. Significa pensar os antecedentes, as causas e as conseqüências dos fascismos do século 20, e sua prolongação nas renovadas formas de colonização econômica e militarização da América Latina na era da Guerra global. Significa deixar claras as estratégias intencionais de falsificação, deformação e desinformação por parte das indústrias culturais da Europa e dos Estados Unidos, desde suas cadeias corporativas de televisão a suas políticas editoriais. Supõe também e necessariamente uma reflexão das funções da academia global. Mas compreende algo muito mais escandaloso ainda: um conceito radical de literatura e de arte, de estética e filosofia, e dos significados da crítica intelectual – em uma idade de escárnio midiático, censura acadêmica e editorial, e degradação espetacular da cultura.

Em vez de examinar reflexivamente estes dilemas, que encerram com sua riqueza de matizes um potencial imenso de idéias e renovados projetos literários, artísticos e intelectuais, este hispanismo preponderante optou por uma versão anti-humanista de laissez-fair neoliberal: deixar que os grandes autores do século 20 se diluam sob o peso morto de seu esquecimento na trivialidade da produção comercial de ficção, e desmanchar os momentos culminantes do ensaio, da arte e da própria literatura luso-hispânicos no cemitério de automóveis dos cultural studies, onde exercem como material de descarte para um positivismo sociológico sui generis destinado a um irrelevante consumo intra-departamental. Não satisfeito com esta carnificina hermenêutica, o hispanismo anglo-saxônico colocou em marcha outras fraudes complementares: a reconversão da cultura a objeto de administração e espetáculo, a redução da literatura a ficção (ou o que é pior, a sua paródia acadêmica como “creative writing”), a subseqüente colonização das expressões artísticas sob a preeminência anti-artística do Pop nas artes plásticas, e na gasificação da música e da arte populares latinas sob as linguagens e os fluxos monetários globais, para coroar triunfalmente esta orgia da “irresponsabilidade intelectual organizada” (Wright Mills) na evaporação do cidadão como consumidor nas redes de uma sociedade civil eletronicamente volatilizada.

How can you talk about the department as a panocticum? – me alfinetou então um dos mais entusiastas foucaultianos departamentais. Reconheço que sua indignação estava plenamente justificada. Em minha carta denunciava a impostura de tornar obrigatórios alguns cursos de teoria que não tinham conceito de si mesmos, e um workshop para aprender a cozinhar teses de doutorado cuja ostensível função era a homologação de seus produtos sob normas filosoficamente opacas e literariamente duvidosas. Também tinha me negado a participar de uma “review of student performance” que qualifiquei, efetivamente, como “concepção panóptica da criação intelectual que tudo reduz a performance, a todos converte em reviewers de todos, e a todos controla por meio de linguagens e espaços espiritualmente vazios”. Porém chamar a tudo isso panóptico foucaultiano significava de minha parte uma extrapolação epistemologicamente arbitrária e uma palmaria ofensa à dignidade dos pós-sujeitos acadêmicos.

Sofía já tinha me deixado claro a gravidade de semelhante situação com eloqüência muito maior: “No primeiro ano os estudantes entram como borboletas aladas, belas e coloridas, e ao cabo de quatro ou cinco, saem feito umas lagartas que a duras penas se arrastam pelo chão. A academia é uma máquina biopolítica que tecnifica os corpos e quer construir sujeitos bem temperados. Daí a obsessão com o método, com uma concepção tecnológica e tecnocrática de educação, para poder temperar o conhecimento. As teses são um gênero em sua definição mais literal: a reprodução de convenções de escritura que só são possíveis através do disciplinamento. A criação e a criatividade são justamente o que tem que ficar fora. Tratar de incorporá-las é um exercício inútil que se aproxima à tentativa de conseguir a quadratura do círculo: não se encontra dentro de sua definição”.

Mas insisto em que esse acadêmico foucaultiano, mais pedante ainda que os escolásticos de Giordano Bruno, tinha toda a razão em suas mãos. Minha metáfora panóptica era imprecisa, imprudente e imprópria. A havia invocado tão alegremente como costumam fazê-lo os pós-intelectuais da newest left acadêmica, ou seja, a título de gadget legitimatório, e a sabendas de que o sistema de controle corporativo do conhecimento discorre por canais diferentes e muito mais expeditivos. Durante o último ano acadêmico, sem ir mais longe, os estudantes departamentais se queixaram em numerosas ocasiões do controle administrativo de seu correio eletrônico, e protestaram por seus telefones grampeados, e pelas pressões e chantagens pessoais que recebiam por parte do corpo professoral.

Em nossa era orwelliana a crítica dos panópticos é uma artimanha retórica tão piedosa como a defesa dos direitos dos animais em tempos de tortura pós-humana em prime time. Sofía também tinha me avisado sobre este fenômeno. “Um amigo estava proferindo um curso nesse departamento e os estudantes se queixaram porque fazia divagações e se desviava do tema. Fizeram-lhe uma ‘investigação’, submeteram-no a uma ‘vigilância’ das aulas. Estes são os termos com os quais seus colegas lhe explicaram o procedimento, enquanto ele sustentava em sua mão um exemplar de ‘Vigiar e Punir’ de Foucault, um ‘prop’ que tínhamos preparado de antemão para provar até que ponto poderiam se dar conta do duplo discurso que manipulam. Pois, obviamente, os senhores, que com rosto severo e leves inclinações de cabeça para um lado ou outro para indicar seu grau de consternação, nas horas em que não se dedicam a julgar a seus colegas, lêem Foucault, o incluem em seus cursos e se fazem passar por críticos da ordem imperante. Certamente, isto poderia nos induzir a pensar até onde a crítica de Foucault encontra facilmente uma inserção dentro da mesma ordem de vigilância e castigo que supostamente denuncia. Isto é, até onde as ‘teorias’ que encontram uma amistosa recepção e uma frutífera reprodução acadêmica não são apenas alguns paliativos para estes ‘willing executioners’, os quais através delas encontram uma figura para distanciar-se do que fazem. O verdugo do Soviet atuava em nome do partido, um ente abstrato sobre o qual recaía a responsabilidade. Aqui se reclama a ‘obediência devida’ sobre a base de que, hélas, il n'ya pas de dehors”.

Esta abolição primordial de toda alternativa experimental, de qualquer fuga intelectual fosse do reino monolítico de um pensamento único e um único destino apocalíptico da história, o mesmo se trate da guerra de mísseis com cabeças micro-nucleares, que a reclusão de toda crítica nos campos de extermínio intelectual dos cultural studies se efetua, em primeiro lugar, no meio da linguagem, não do panóptico. Tem lugar através de palavras, mediante as construções categoriais e a produção administrativa de modelos de pensamento predefinidos, sobre os quais se fazer perguntas na academia é tão aventurado e exposto hoje como o era se fazer cabalas nos tempos da Inquisição. E cuja função reside também em filtrar a realidade, incapacitar o pensamento, e eliminar qualquer processo autônomo de reflexão e conhecimento.

No entanto, tivesse desejado responder a meu presunçoso ou foucaultiano pelo menos com sua mesma insolência. – Não, não é um panóptico – ter-lhe-ia replicado. – A estrutura deste interrogatório departamental a que Vocês me submetem obedece melhor à regra de ouro dos juízos inquisitoriais: ocultar nos termos do interrogatório disciplinar o real motivo da condenação. Recordem a Luis de León – pudera ter-lhes dito como colofão erudito e pretensioso –. Ainda hoje o ranço hispanismo hispânico se entretém preguiçosamente com a casuística de um mal-entendido pornográfico que os tribunais eclesiásticos invocaram contra sua tradução do proibido Cantar dos cantares. Os frades da Inquisição tinham farejado em um de seus versos a bela penugem do púbis feminino, onde o erudito de origem judia traduzia do hebreu pela sedução do olhar de Sofía através de seus cabelos caídos. Porém o motivo real que os inquisidores não queriam nem podiam deixar claro não eram suas retorcidas fantasias sexuais, mas o significado reparador e restaurador da união amorosa, e suas dimensões místicas e cósmicas de um retorno ao paraíso, o centro espiritual que anima aqueles poemas bíblicos, e cujo sentido a Igreja cristã tinha que destruir se pretendia erigir seu falso messianismo em princípio constituinte de seu imperialismo apocalíptico.

Tudo isso deveria ter de responder a meu vigilante e punidor foucaultiano. Mas não o fiz. Chegado a aquele extremo do interrogatório departamental me sentia abatido e sem forças. A insídia das perguntas, a cegueira de suas absurdas acusações, a prepotência que lhes dava atuar gregariamente como um só corpo, tudo isso tinha me deixado rendido, aplastado, derrotado. Em minha profunda desolação recordava as desesperadas palavras finais que Sofía tinha me confessado: “A academia anglo-saxônica fez todo o possível nos últimos vinte ou trinta anos para declarar a liberação como uma meta não necessária nem desejável. Com uma impostura pseudo-Nietzscheana – e evidentemente, sem ter lido Nietzsche – se dedicou à preparação do "último homem". Coincide nisso com a forma mais descarada do sistema econômico, o qual adotou o desejo secreto do apocalipse e do fim do mundo como horizonte. Nada há que salvar num mundo que se entregou a seu desejo de morte para não ter que envolver-se com a vida.”.

Não desgrudei os lábios. Pelo contrário. Deixei-me afundar na poltrona com um gesto de cansaço e indiferença. Nada havia a dizer a um tribunal que só desejava amortalhar-me em sua cegueira. E deixei que as coisas fluíssem como as águas turvas de um rio depois da tormenta. Aconteceu então o que de toda forma se podia prever. Lenta, morosa, torpemente, como se se tratasse de uma procissão mortuária, as coisas voltavam à normalidade de seus cursos rotineiros. Paulatinamente os pós-sujeitos acadêmicos recobraram suas vozes de ventríloquos. Seus olhares se serenaram. Desapareceu a veemência de seus gestos. Seus rostos recuperaram sua regular palidez mortiça. E se reconfirmou que se deixava o cânon de lado. E falou-se de dinheiro. Aumentou-se o número de juízes para a aprovação de teses de doutorado. Leram-se os novos regulamentos do workshop. E voltou-se a falar de dinheiro. Admitiu-se a dois estudantes destacados pelo diretor para um comitê de seis a título de generosa co-gestão departamental. Passou-se finalmente em revista à performance dos estudantes de doutorado. E se deu por terminada a sessão.

Num gesto de fingido relaxamento tiraram-se então Coca-cola’s e distribuíram-se sanduíches de presunto e queijo. Pus-me de pé. No sórdido ar da sala podiam-se pressentir os vaticínios de um aziago futuro. Durante alguns minutos contemplei em hermético silêncio o deslocamento formigante daquelas pessoas na pequena sala. Nenhuma delas se atreveu a cruzar meu olhar. Talvez restava-lhes algo de vergonha e isso pudesse se interpretar como um último sinal de esperança. Despedi-me com um gesto mínimo que não encontrou resposta. E quando já atravessava o umbral da porta, um dos professores se aproximou de mim, e com um gesto sedutor, quase feminino, me sussurrou ao ouvido: – Foi tudo um mal entendido!

***

Epílogo

“…Gosto de seu juízo bufo e me diverte o uso que faz de meus depoimentos. Te dei minhas razões mais materiais e banais para não querer figurar com nome e sobrenome. Há também razões formais. O juízo gira ao redor do que te passou nessa situação concreta – representativa de todo o establishment, como bem mostra – porém uma situação da qual não participei diretamente. As citações parecem como intervenções minhas diretas. Há uma que diz que "não sabem nada" o que parece inclusive um ataque pessoal. Não quero me meter dessa maneira com eles. Justamente porque o meu não é pessoal.

Minha reflexão procura entender o que está passando dentro destes recintos, não para desqualificá-los como pessoas capazes ou incapazes de fazer seu trabalho. Interessa-me o processo de metamorfose que os converte em funcionários. Produz-me enorme curiosidade entender que tipo de pessoas podem fazer este trabalho sem que isto lhes produza uma crise espiritual, psíquica, emocional.

A academia, meu querido, se converteu num bastião da intolerância. Você e eu herdamos de nossos ancestrais judeus e aprendemos em nossa formação alemã de pós-guerra esse alerta permanente ante o perigo. As situações pelas quais devem ter passado os Adorno e Horkheimer, Benjamin, Bloch ou Arendt fazem-me cada vez mais claras. A diferença é que eles sabiam porque, a razão da perseguição se publicava por todas as partes. No mundo que nos tocou viver, o terror se faz em nome da democracia, dos direitos humanos, da tolerância.

A cólera que suscitaram suas intervenções não têm que ver com os estudos hispânicos, nem sua visão deles. Esse é um ponto menor e a suposta liberdade de cátedra faz que todo debate se dissolva em questão de gostos e preferências. Acredito que os ataques contraditórios, os disparos desde distintos ângulos e em todas as direções têm a ver com o desespero próprio de ver como se rompe a máscara, quão pouco se pode sustentar no mundo de hoje, e como nessas condições se desmorona a pretensão de que alguém trabalha dentro do sistema mas não para ele. Suas analogias com a Inquisição são mais certeiras do que a primeira vista parece. Você compara em termos de forma, eu diria que é questão de conteúdos: o que há nestes processos de disciplinamento é uma expurgação de hereges, de falsos convertidos, de ímpios.

Faz alguns dias tomei um café com um amigo que escreve crítica de economia política e ataques muito bem montados contra os economistas da globalização. Contou-me que na União Européia já se regulou de maneira unificada que NÃO se leciona história do pensamento econômico nas faculdades. Nas de literatura faz um bom tempo que se dissolveu o ensino das dimensões históricas ao converter tudo em jogo de linguagem. Mesmo que não pareça possível, inclusive nos departamentos de história não se fazem trabalhos diacrônicos. Costuma se fazer pesquisa sobre casos específicos em períodos específicos; colocam-se num cantinho do passado e desenterram momentos de coisinhas que compõem nossa realidade presente, mas não se ocupam de processos.

Neste mundo da democracia comunicativa, quanto mais informação tenha sobre cada coisa, melhor. Não há possibilidade alguma de que se produza uma síntese, nem se compreenda um processo. Esta é a censura ao revés. Não proíbem que se diga nada. O que conseguiram é que todo dizer se perca na insignificância. Só tinham que se desfazer de duas coisas: a filosofia e a história. Para isso, a filosofia se reduziu a jogos lógicos e a história se relativizou como se fosse tão somente um relato a mais. Uma vez retirados os obstáculos que exigem que as coisas se pensem com profundidade, estamos no melhor dos mundos possíveis. Se nos asseguramos de que as pessoas não se interem das possibilidades que se pensaram para a humanidade, opções cujo curso talvez não se tomou, mas que estão cheias de potencial criativo, temos todos concentrados na eterna prolongação do presente.

A grande transformação é em duas frentes: o sistema jurídico e o educativo. Ou seja, o mesmo que a evangelização na América hispânica, com seu disciplinamento dos corpos. Como sempre, as diferenças se manifestam de maneiras muito concretas no nível das entradas, mas se constroem no nível das ordens da lei e da cultura. A obsessão com a ética é uma parte funcional deste, na medida em que busca a construção de uma mores, uma Sittlichkeit. O novo sujeito bem moderado da nova ordem está sendo disciplinado por uma Sittlichkeit do consumo, para o consumo. Suas temporalidades têm de ser curtas. Sua necessidade de renovação há de ser constante. O que era uma subversão à ordem burguesa e seu apego à família como unidade social é hoje por hoje uma exigência do sistema: mais individualismo, transformação e mudança permanentes, novo namorado a cada quatro ou cinco anos, tal como se renovam carro, casa, televisor, computador, lavadora, telefone celular ou outras coisas. O que construa continuidades e transcendência no tempo é o que se rejeita... “

Sofía

(7 de Agosto, 2006)

***

Epístola Departamental

Princeton, 11 de maio de 2006

Distintos professores,

Quero apresentar-lhes quatro dilemas. O primeiro tem a ver com o curso de teoria. Este curso nunca teve um conceito de si mesmo. Quando há três anos propus uma introdução estética como alternativa a seu perfil volátil, me disseram que não podia dá-lo porque uma coisa era teoria e outra estética, o que cito a título de obscurantismo departamental. Na prática este curso é uma colagem arbitrária e sem uma função transparente. Esta classe de programas híbridos se podem justificar como um overview elementar. Mas inclusive ou precisamente neste caso não é intelectualmente legítimo fazê-lo obrigatório. É óbvio que os estudantes deveriam realizar cursos teóricos. Constantemente recebi protestos contra a banalidade destas introduções. “Pretender que um par de sessões sobre Lacan significa fazer teoria é irresponsável” – me dizia recentemente um estudante que não quer dar seu nome. E não deixei de receber demandas de autênticos cursos teóricos com problemas intelectuais definidos. Mas em nenhum caso devem ter um caráter compulsório, nem se submeter ao principio de pass or fail.

Segundo: o Workshop. Escutei uma vez de uma professora do departamento dizer que eram verdadeiras orgias coletivas de criatividade. Porém um estudante também o definiu como exercício de uncreative writing destinado a mutilar a imaginação, submeter os estudantes a modelos controláveis de uniformidade intelectual e atemorizá-los sob o ultimato do profissionalismo. Acredito que este workshop deve se substituir por três medidas simples:

1. As normas formais de redação e composição, bibliografias, pontuações e outros requisitos administrativos podem-se redigir num par de cartilhas e distribuir aos interessados sem maiores preâmbulos.

2. As definições sobre o que as teses, a pesquisa e a criação literária acadêmica possam, tenham ou não devem ser têm de fazer-se de forma aberta, como discussões entorno a concepções e critérios diferentes dos diferentes professores e estudantes.

3. As definições de método, forma, composição e estilo das teses doutorais não são únicas, nem unívocas. O estudante pode e deve discuti-las e negociá-las com os advisers que considere mais próximos a sua sensibilidade e consciência intelectual.

Tenho que mencionar neste contexto a limpa proposta do doutorando Chris van Ginhoven:

“O workshop (deve) consistir no questionamento das definições existentes e na proposição de novas formas por parte dos estudantes, e não num receituário sobre como escrever um proposal bem-sucedido. Isto é, tem que ter uma discussão aberta sobre as limitações nas formas existentes e nas possibilidades de redefinição de um gênero tão infeliz como a tese.”

Em terceiro lugar quero apresentar o tema do reading list. Faz um ano se assumiu sua necessidade e se propôs sua reforma. Depois, por algum motivo não específico, o assunto ficou esquecido. Quero recordar que esta lista não tem que ser a instauratio magna do hispanismo. Muito menos é sinônima de um cânon provido de poderes normativos sob os quais se deva submeter o estudante a exames compulsórios dotadas de dimensões punitivas. É, pelo contrário, um instrumento didático. Sua função é orientadora e constitui um horizonte teórico imprescindível entorno de categorias historiográficas, filosóficas e políticas dos estudos latino-americanos, hispânicos e ibéricos. Por isto não o concebo tampouco como um corpus fechado, mas como uma geopolítica literária em perpétuo dinamismo. Não necessito sublinhar que a atual reading list é um monumento à desinteligência.

Por último, assinalarei um conflito aberto. Este ano esteve marcado por uma greve que deixou claro mais sombras que luzes de nosso sistema acadêmico. Contamos, no entanto, com um testemunho privilegiado: o da estudante Danielle Carlo, por mais que alguns de vocês não queiram nem sequer reconhecer sua existência. Recordar-lhes-ei os dois motivos musicais dominantes de seu manifesto. Primeiro: a consciência de um vazio espiritual, o predomínio de um deprimente silêncio e sua manifestação imediata na ausência de uma autêntica comunidade intelectual nos espaços acadêmicos. A insistência desta reunião de professores na categoria de profissão e profissionalismo, cuja arcaica origem confessional é cúmplice de seu pós-moderno sentido antiartístico e antiintelectual, e sua abertura com uma “review of student performance” me parecem problemáticos precisamente por esta perspectiva. Deixam claro uma concepção panóptica da criação intelectual que tudo reduz a performance, a todos converte em reviewers de todos, e a todos controla por meio de linguagens e espaços espiritualmente vazios: em vez de gerar espaços abertos de diálogo transparente, de confrontação real e não performática de idéias e realidades, e de uma criação intelectual não uniformizada.

No to silence, o manifesto de Carlo descreve um segundo e valioso motivo: a reivindicação dos estudantes como vozes intelectuais autônomas em uma idade de uniformidade cultural, escárnio institucional e violência global.

Obrigada por sua imerecida atenção:

E.S.

notas

[tradução de Ivana Barossi Garcia]

sobre o autor

Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização da América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social.

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