Meu primeiro contato com o universo do Islã se deu no Senegal, aos 14 anos, em uma viagem "iniciática" que meus pais fizeram comigo e meus irmãos. Para meu deslumbramento, a primeira noite em Dakar foi justamente numa sexta-feira, quando então, mais ou menos às 3hs da madrugada, o almuadem cantou, de forma magnífica, o chamado às primeiras preces, amplificado pela poderosa acústica da almádena – situada no minarete – da mesquita de Dakar. [1] Esse canto foi para mim fonte de um grande mistério, algo que transcende, em muito, a pequenez das intolerâncias religiosas. Acredito mesmo que minha forte ligação com a África se deu a partir daquela noite. O incrível é que, 34 anos depois, também na madrugada de um sábado, fui pego pela mesma emoção e mistério ao ouvir o canto do almuadem da cidade histórica de Bobo-Dioulasso (fala-se bobô-diulassô), ex-capital do Burkina-Faso, o antigo Alto Volta. As formas da mesquita de Bobô [2] são consideradas exemplares em se tratando de arquitetura islâmica na África d'Oeste, com os torreões atravessando seus dois minaretes – um dos quais é destinado ao recolhimento de homens e, o outro, ao de mulheres.
A mesquita de Ouahabou (fala-se Uarabú) [3], também no Burkina, me chamou a atenção por seu despojamento e elegância de suaves linhas alongadas.
Templos são muitas vezes a expressão maior de uma cultura. Isso vale para as catedrais européias, para os templos budistas do Cambodja, para as pirâmides Maias ou os inúmeros templos gregos. E pode ser também observado na arquitetura das mesquitas. A expansão do Islã na África Ocidental se deu entre os séculos X e XVI, mais pela via do comércio das rotas caravaneiras do que pelas armas. Nunca me aprofundei na religião do Profeta, mas algumas vivências levam a crer que o islamismo possui tonalidades muito próprias em algumas regiões africanas.
Na estrada de Bamako a Djenné, no Mali, encontrei pequenas mesquitas rurais [4], presentes em quase todas aldeias ou vilas e que vivem basicamente do milho e do pastoreio de cabras. A singeleza da escala foi o que mais me chamou a atenção.
Essas formas são certamente muito diversas daquelas que encontramos no imaginário ocidental. Fomos ensinados que o mundo se divide em Oriente e Ocidente, mas a África não é nem um nem outro. É ainda um outro que, curiosamente, está bem dentro da gente, nós brasileiros.
A ocupação do Sul da Europa pelos mouros e as rotas do comércio trans-sahariano formaram um grande e complexo tecido cultural entre países como Portugal, Espanha e Itália, por um lado, e África sub-Sahariana, por outro, tendo Marrocos, Argélia e Tunísia como elos centrais. O surpreendente é que o processo de formação do Brasil compreende diferentes vertentes dessas fortíssimas ligações culturais, históricas e familiares.
No retorno de Djenné a Bamako passei pela cidade de Segou, onde está preservado o bairro histórico de Sekoró, às margens do Rio Niger. Aí encontrei duas mesquitas diferentes e de grande força arquitetônica. A primeira delas [6] chama a atenção por estar ao lado de uma grande árvore de fromagê que, por seu porte e ancianidade, é tratada por "árvore da palavra", local onde os velhos da village se reúnem para refletir e de decidir sobre os temas mais importantes da comunidade.
A escala da árvore em relação à mesquita expressa muito bem o peso da natureza diante da cultura, dentro da mentalidade africana. A força dessa mesquita, a meu ver, está em sua delicadeza rústica e acolhedora [7]. A monumentalidade da natureza – a árvore de fromagê e o rio Niger (que passa em frente) –, integram a sua arquitetura. A outra mesquita da village de Sekoró possui uma grande organicidade ligada à terra [8]. Seria uma outra abordagem de uma cultura fortemente ligada à natureza.
É bastante conhecida a dificuldade de se fotografar pessoas e lugares ligados ao Islã, isso porque existe uma "mística da imagem". No entanto, quase sempre me foi permitido fotografar e, alguns casos, até mesmo filmar o interior de mesquitas na África, inclusive durante rituais. Isso aconteceu durante as filmagens do documentário Moçambique, dentro da grande mesquita da Ilha de Moçambique, a antiga capital do país. Uma outra vez aconteceu na mesquita de Porto Novo, no Benim – terra natal dos orixás –, durante as filmagens do documentário Atlântico Negro – na Rota dos Orixás.
A mesquita de Porto Novo é um caso bem à parte – único! – e que tem muito a ver com o Brasil. Para se entender, será preciso falar sobre algo ocorrido há mais de um século, quando milhares de africanos ou afro-descendentes, alforriados ou deportados pela Revolta dos Malês, saíram de Salvador ou Recife e retornaram à costa ocidental africana, principalmente para o Benim, para a Nigéria e para o Togo. Esses "brasileiros retornados" haviam praticado no Brasil diversos ofícios, tais como marcenaria, contabilidade e construção. Os muçulmanos de Porto Novo resolveram então pedir aos "retornados" para que estes fizessem o projeto e a construção de uma mesquita. Os "brasileiros", recém-chegados e ávidos para poderem se instalar em terras africanas, logo aceitaram o desafio de fazer a tal mesquita. O resultado foi uma típica igreja católica baiana [9]. Os africanos ficaram surpresos com aquela arquitetura diferente e gostaram muito do resultado [10]. Pediram apenas que fosse retirada a cruz e acrescentado o minarete. Essa pérola da arquitetura barroca brasileira está em plena atividade, com suas centenas de fiéis lotando suas dependências, toda santa sexta.
sobre o autor
Renato Barbieri é cineasta com extensa filmografia: Atlântico Negro–Na Rota dos Orixás; A Invenção de Brasília; Malagrida; Félix Varela; Do Outro Lado da Sua Casa; As Vidas de Maria; A Idade do Brasil; Moçambique; Terra de Quilombo; Monteiro Lobato, Vírgula, Ponto e Vírgula e A Liga da Língua, dentre outros. Além de todas as regiões do Brasil, já filmou na Itália, Espanha, Portugal, Benim, Moçambique, Estados Unidos, Cuba e Venezuela. Recentemente desenvolveu pesquisas no Mali e no Burkina-Faso.