Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa. De tuas ruas estreitas, Curtas, Indecisas, Entrando, Saindo, Umas das outras. Cora Coralina
Início do século XVIII. Expulsos de Ouro Preto pelos portugueses, os bandeirantes paulistas, aventureiros em expedições mais ou menos oficiais, adentram como nunca os sertões do planalto central da América do Sul, à procura do cobiçado ouro. Empurravam para oeste a linha do Tratado de Tordesilhas, que dividia as terras do Novo Mundo entre portugueses e espanhóis. Os reflexos da Serra Dourada reaparecem nas lembranças de Bartolomeu Bueno, o filho. Quarenta anos antes, por volta de 1680, ele por ali havia passado com o pai, de mesmo nome e alcunha, Anhangüera. Com cerca de 300 homens e incentivado pelo Capitão-General de São Paulo, Rodrigo César de Menezes, Bartolomeu Bueno vaga durante cerca de três anos por regiões, inclusive onde hoje se ergue Brasília. Intrigas, mortes, decepções, deserções, cansaço. Nada o desanima. Finalmente, com menos de um terço de seus homens e 73 anos de idade, após percorrer mais de 200 léguas, reencontra o Rio Vermelho e a desejada Serra Dourada.
Conta a lenda que Bartolomeu Bueno passou a ser chamado de Anhangüera, "Diabo Velho", na língua dos nativos, quando, para forçar os índios Goyases a lhe indicar outros locais do rio fartos de ouro, teria usado um estratagema. Ateando fogo à aguardente colocada em uma bateia, disse aos índios que da mesma forma atearia fogo aos rios, caso eles não lhe indicassem os veios auríferos. A partir daí, pouco ou nada mais se sabe desses índios, que tinham o corpo adornado com folhetas de ouro e na época do encontro com Bueno já se encontravam em extinção.
Mas, nas bateias ávidas, o ouro resplandece. Inicia-se a corrida ao precioso metal. Corre o ano do Senhor de 1727. Bueno ergue uma capela dedicada à Nossa Senhora de Sant’Ana. É nomeado Guarda-mor das minas dos Goyases, sem saber que iria morrer pobre, apesar de ter ajudado Portugal a incorporar ao futuro território brasileiro alguns milhões de quilômetros quadrados e a exportar mais de 170 toneladas de ouro.
Logo o pequeno arraial recebe o nome de Villa Boa de Goyaz, em homenagem ao descobridor. Em 1748, a Capitania de São Paulo é desmembrada em mais duas, Mato Grosso e Goiás.
Mas, por aquela época, o Rio Vermelho, antes pródigo, torna-se avarento e os resultados da exploração do ouro decaem fortemente. Um longo período de estagnação que adentrou o século XIX, provavelmente colaborou para manter as características da cidade, modesta e encantadora, único testemunho intacto da arquitetura bandeirista, embrião e precursora de duas cidades planejadas e destinadas à ocupação do centro geográfico do Brasil: Goiânia, em 1934, como futura capital do estado de Goiás e Brasília, em 1960, como a moderna capital federal.
É nesta situação que, entre 1819 e 1825, a encontram os viajantes europeus Saint-Hilaire, francês, Pohl, austríaco e Burchell, inglês. Este último, exímio desenhista, nos legou magníficas ilustrações da cidadezinha emoldurada pela Serra Dourada.
Saint-Hilaire e Pohl, por sua vez, deixaram interessantíssimas anotações, não apenas da flora, mas também de personagens e seus costumes. Em certas passagens, as descrições desses sábios do início do século XIX poderiam estar sendo lidas em um jornal de nossos dias.
Vejamos a curiosa conversa entre Saint-Hilaire e o 8º Capitão General da Capitania de Mato Grosso, Dom João Carlos Augusto d’Oeynhausen Grevenberg, que já havia deixado Villa Bella da Santíssima Trindade, capital de Mato Grosso, para assumir o governo de São Paulo, onde se encontraram.
Comentando sobre as dificuldades de se governar em tão longas distâncias, d’Oeynhausen relatava que “na vida administrativa de um Capitão-General havia três fases: febre com delírio, febre sem delírio e prostração. O General partia para sua capitania sem conhecê-la, sabendo unicamente que se tratava de um território novo, onde tudo estava por fazer; traçava grandes planos para debelar o atraso e a miséria; pensava imortalizar-se arrancando aquelas vastidões da barbárie em que se encontravam. Era a febre com delírio. Chegado ao seu governo, percebia imediatamente que aqueles planos concebidos em Lisboa ou no Rio de Janeiro não eram aplicáveis no interior do Brasil. Procurava reformá-los, conformá-los com a realidade, cheio ainda de entusiasmo. A febre sem delírio. Os desenganos, a indiferença total com que eram recebidos seus planos de reformas, acabavam por vencê-lo. Caía na prostração geral, no ritmo sem tempo das capitanias do interior”.O sábio francês anota ainda que, nas várias vezes em que jantou no Palácio do Governador, junto com outros convivas, sempre havia vinho à mesa. Entretanto, somente no primeiro dia o Governador ofereceu-lhe um copo e apenas os dois provaram do vinho.
Nas outras ocasiões a garrafa ficava apenas ornamentando a mesa. Lembra ainda o francês que na mesma oportunidade uma bandeja de esplêndidas uvas moscatel foi inutilmente cobiçada pelos convivas. Ele mais uma vez foi o único favorecido e achou-as excelentes. Observou que esses eram artigos caros e escassos.
Quando chegava um novo Capitão-General havia momentos de terror entre os homens casados, pois os Capitães, sem exceção, chegavam solteiros. Até que ele escolhesse sua amante, todos os homens ficavam em sobressalto. O mesmo Governador, Fernando Delgado (1809-1820), apresentando duas crianças a Saint-Hilaire, comentou: “o senhor acha que eu poderia me casar com a mãe destas crianças, com a filha de um carpinteiro?”
E era apenas o indício do triste fim de Fernando Delgado. Deixando a Capitania, antes de embarcar para Lisboa, entre a dúvida de levar a filha do carpinteiro ou não, acabou pondo fim à própria vida. Saint-Hilaire observou, assim como Pohl, a extrema habilidade dos artesãos de Villa Boa, fato que pode ser comprovado até os nossos dias.
Assim, o escultor maior de Goiás, Antonio Joaquim da Veiga Valle, sem nunca ter deixado a Província, produziu entre 1840 e 1860 aproximadamente, o maior e mais belo acervo de arte sacra do Centro-Oeste, podendo ser admirado no Museu de Arte Sacra, hoje instalado na antiga Igreja da Boa Morte.
A habilidade das doceiras também faz parte da tradição da cidade. Dos alfenins - delicados doces de polvilho e açúcar em figura de flores, animais - de dona Sílvia, no Largo do Chafariz aos doces cristalizados de Cora Coralina, na ponte da Lapa.
Poucas são as cidades no Brasil que mantiveram intactas tanto sua fisionomia, expressa pela arquitetura dos séculos XVIII e XIX, seu traçado urbano espontâneo, sua paisagem natural envoltória tal qual a encontraram os bandeirantes, como suas tradições cotidianas.
As pedras irregulares dos calçamentos, em calma secular, sustentam a pressa dos pés descalços dos farricocos na grande procissão do Fogaréu, na quarta-feira santa. Dezenas desses encapuzados, seguidos de centenas de fiéis carregando tochas, com as luzes da cidade apagadas, em noite de lua cheia, saem à procura do Cristo em centenária tradição, cujas origens se perdem em Portugal e na Espanha da Idade Media. O centro histórico torna-se palco para a dramática encenação e na frente de cada igreja representa-se um ato da paixão de Cristo.
Assim a descreve a poeta goiana, Augusta Faro Fleury de Melo: “Tochas num jogo de fogo/ de batuques doloridos/ de ritmos cansados do humano corcel/ Serpente de Fogo/ clamas de longe/ lembranças e séculos/ Encapuzadas memórias/ quase correm/ percorrem/ esse tempo/ sem tempo”.
Mesmo os sinos, a informar missas, mortes, casamentos, cada um com seu som e badalar característicos, são percussionados em tradição, que passa de pai para filho. O sineiro atual da Igreja de São Francisco de Assis, conhecido como Zé “Tachinha”, é filho de Zé “Prego”, que antes dele, por longos anos, cuidou dessa atividade.
Da mesma forma a tradição musical, que nos trouxe excelente acervo do passado, continua nos dias atuais, produzindo intérpretes e compositores do mais alto quilate.
O apego às tradições, entretanto, não significa algo estático e saudosista, simplesmente. Pelo contrário, a cidade responde com vibrações intensas não apenas no dia- a-dia, mas também quando sua auto-estima coletiva é solicitada.
Na tragédia de 31 de dezembro de 2001, quando as águas do Rio Vermelho, em rápida enchente, destruíram considerável numero de edificações à sua margem, a cidade uniu-se e conclamou os organismos governamentais, inclusive a Unesco, em grande esforço de reconstrução.
Hoje quase tudo foi reerguido. Paradoxalmente, a área atingida está agora melhor do que antes, em sua maior parte. Explica-se isto pelo fato de que, entre as edificações destruídas pelas águas, encontravam-se algumas que destoavam grandemente do conjunto, por razões diversas. Também já não faz parte das lembranças da cidade um outro chuvoso dia de 1937, quando o Governo, de forma traumática, transfere a capital do Estado para Goiânia, cidade nova e para isso construída.
Essa dolorida decisão propiciou a preservação do que hoje conhecemos. E assim, do século XXI, podemos observar como se adaptaram ao cerrado brasileiro, distante e inculto, em lenta e persistente viagem, atravessando oceanos, quer de água ou de vegetação, em caravelas ou carros de boi, trazidos pelos bandeirantes paulistas, o urbanismo e a arquitetura que praticavam os portugueses no século XVIII. Villa Boa de Goyas, a antiga capital, por tradição, volta a ser Capital no mês de julho de cada ano quando o Governador reocupa por alguns dias o Palácio construído pelo primeiro Capitão-General.
sobre o autor
Marco Antonio de Faria Galvão, natural de São Paulo/SP, formou-se em arquitetura pela Universidade de Brasília em 1972. Arquiteto aposentado do Iphan, atuamente exerce a função de Coordenador Técnico do “Programa Monumenta”, do Ministério da Cultura. Coordenou a elaboração dos “Dossiês” para Patrimônio Mundial de Goiás-GO e São Cristóvão-SE e dedica-se também a fotografia.