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architectourism ISSN 1982-9930


abstracts

português
Na entrevista com Renato Anelli, o autor relembra o quando permaneceu um ano em Veneza durante seu doutorado. Saiba como conhecer a cidade e a região do Veneto de uma forma mais profunda, fora dos esquemas turísticos de guias com guarda-chuvas

english
Read the interview with Renato Anelli in which the author remembers when he remained one year in Venice during his doctorate. Learn how to know the city and the Veneto region in a deeper way, away from the touristic tours and guides with umbrellas

español
En la entrevista con Renato Anelli, el autor rememora cuando permaneció un año en Venecia durante su doctorado. Sepa como conocer la ciudad y la región de Veneto de una forma más profunda, fuera de los esquemas turísticos de guías con paraguas


how to quote

ANELLI, Renato. Estudando na República Sereníssima. Arquiteturismo, São Paulo, ano 02, n. 021.03, Vitruvius, nov. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/02.021/1475>.


Como foi sua ida para Veneza?

Fui para Veneza em fevereiro de 1994 e lá permaneci morando com minha esposa, a arquiteta Ana Paula Koury, por um ano, pesquisando nos vários arquivos de arquitetura da cidade. Tive o apoio de uma bolsa de doutorado sanduíche do CNPq e fui recebido por dois professores do IUAV (Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza): Guido Zuconi e Francesco Tentori. Pretendia entender as principais características da arquitetura italiana na primeira metade do século XX, procurando conceitos e procedimentos que teriam sido determinantes na formação de Rino Levi em 1926 e que diferenciariam sua produção arquitetônica no Brasil. Veneza era reconhecida internacionalmente por sua produção historiográfica com Manfredo Tafuri, Francesco Dal Co, Giorgio Ciucci, Massimo Cacciari (então eleito prefeito da cidade) e por isso fui para lá.

Renato Anelli em seu gabinete de estudo, Veneza, 1994
Foto Abilio Guerra


Qual sua primeira impressão da cidade?

Chegamos a Veneza de avião, depois de uma noite de vôo e uma conexão em Frankfurt. Assim, chegamos do norte, após atravessar os Alpes.

Foi impressionante quando as montanhas nevadas acabaram e vimos o território do Veneto lá em baixo. O Aeroporto fica em Jesolo, em “terra firme”, como dizem lá. Vi Veneza pela primeira vez da janela do avião contra o sol da manhã enquanto pousávamos – só identifiquei o Torre do Campanário de São Marco. De lá fomos com um barco que faz o trajeto pela laguna até a ilha. Contornamo-la até a baia de São Marco, desembarcando de frente à praça, ao lado do Palazzo dei Dodge, entre as duas colunas. Mesmo cansados, não pudemos conter nossa emoção com a força arquitetônica e histórica dessa entrada monumental (era ali que encostavam os navios da República Sereníssima vindos das suas expedições ao Oriente). A porta da frente da cidade.

Qual a melhor forma de se locomover na cidade?

Em Veneza o principal meio de locomoção é andar a pé. O transporte coletivo é feito por pequenos barcos chamados de vaporetos, muito agradáveis e eficientes (compre os passes diários – caros, mas melhores do que os avulsos). No entanto, eles só passam pelos principais canais, não servindo a toda malha urbana.


Foto Abilio Guerra

Há caminhos que atravessam a cidade em várias direções e conectam os principais pontos de referência – Rialto, São Marcos, Estação Ferroviária, etc. Com o tempo e a ajuda de um bom mapa você passa a se localizar bem nesses percursos, que são pouco sinalizados. Esses caminhos são estreitos, com pouco mais de 1,5 m em alguns pontos e são chamados de calle, como no espanhol. Mais larga é a fondamenta, as calçadas entre o alinhamento das construções e os canais. Em alguns lugares os canais foram aterrados, dando origem a caminhos bem confortáveis, mas raros. Os esquemas de Gordon Cullen reproduzem bem as situações de surpresa ao longo desses percursos estreitos, com os palácios, igrejas e torres surgindo em meio a um desses caminhos ou após um pórtico. É fantástico ver San Giorgio Maggiore de Palladio através do pórtico da Torre do Relógio. Demora-se um pouco para perceber que entre ambos existe toda a praça e a baia de São Marcos. O outro meio de locomover são as gôndolas, na sua grande maioria turísticas (algumas fazem um rápido serviço de travessia do Canal Grande em locais distantes das pontes, a preços baixos). Vale a pena, pois as fachadas principais dos palácios se abrem para a água, mesmo nos canais menores pelos quais se navega apenas com barcos pequenos.

Como foi se deparar com o mítico IUAV?

O prédio principal do IUAV é o antigo convento dos Tolentini, reformado com competência por Daniele Calabi na década de 1950 para abrigar a universidade. Depois Scarpa projetou um belo pórtico que marca discretamente a entrada. Ocorreu uma coincidência lamentável quando lá cheguei. Marquei um encontro com o professor Zuconi exatamente no dia em que Tafuri falecera e a escola estava em comoção profunda. O IUAV já era gigantesco em 1994. Algo por volta de onze mil alunos de arquitetura abrigados por vários prédios espalhados pela cidade. Santa Marta, o maior deles, era uma antiga construção fabril junto ao porto. Com a adoção do novo modelo educacional do acordo de Bologna, o IUAV se dividiu em várias faculdades mudando de nome – agora se chama Universidade IUAV de Veneza. Além de assistir ótimas conferências, com nomes internacionais intercalados por professores da casa, eu freqüentava diariamente as bibliotecas. A mais equipada era a do Departamento de História da Arquitetura, ao lado da gigantesca igreja do Frari. A Biblioteca Central no Tollentini era a mais concorrida. Também fiz pesquisas na Biblioteca da Fundação Bienal,cujo acervo é fantástico.

Renato Anelli e Ana Paula Koury na entrada da Villa La Rotonda em Vicenza, 1994. Arquiteto Andrea Palladio
Foto Abilio Guerra


Como é o cotidiano diante de obras de Palladio?

San Giorgio Maggiore, Zitelle e Il Redentore são as três igrejas de Palladio ao longo do Canal da Giudecca que pontuam a paisagem que se vê das margens de São Marco e todo o Sestiere di Dorsoduro. São impressionantes pela volumetria e proporções. Palladio não apresenta grandes surpresas quando se vê suas obras de perto ou de longe, pois o equilíbrio e sobriedade são iguais, independente da distância que se olha. Outras obras renascentistas e barrocas marcam a paisagem urbana da cidade em pequenos largos, como as de Mauro Codussi e de Pietro Lombardo, ou em pontos de destaque, como a maravilhosa igreja votiva Santa Maria della Salute, pela qual eu passava todos os dias para ir ao IUAV.

Quais os locais mais agradáveis da cidade?

A presença do turismo é avassaladora. No Carnaval instala-se mão única para os fluxos de pedestres nas estreitas ruas, único meio de viabilizar a massa de visitantes que afluem para festas como essas. Isso se reflete na transformação progressiva das lojas em comércio de souvenires para turistas.

Fiquei chocado com a quantidade de mercearias, açougues e padarias que conheci em 1994 e que haviam se transformado em lojas de souvenires em 1998, quando retornei à cidade. No dia a dia existem hábitos interessantes e agradáveis. Eles costumam tomar de aperitivo no meio do dia um copo de vinho branco, Sauvignon Blanc ou Prosseco, acompanhados de “cichetes”, tira-gosto semelhante aos “tapas” espanhóis.  No centro histórico, o Mercado de Peixes nas manhãs de sábado apresenta a fauna e a culinária veneziana, rica em pescados. Os restaurantes são caríssimos e a maioria não passa de armadilhas de turistas – não coma pizza em Veneza, prefira os sanduíches! Com um bom guia procure um restaurante local e peça um bacalla mantecato, uma das especialidades feitas com bacalhau. Como os restaurantes são muito caros, nos outros dias não hesite em comprar comidas leves nas mercearias e comer nas inúmeras praças, no intervalo dos percursos pela cidade. Vale a pena dormir ao menos uma noite em Veneza. É uma experiência impar pelo som da água e dos barcos e a ausência de carros, que a maioria dos viajantes perde por se hospedar em Mestre, onde os preços são bem mais baratos. Aos finais de semana ocorriam concertos em igrejas e peças dos mais variados perfis.

Os Giardini são um contraponto à pedra e à água?

Ao contrário do que se imagina, Veneza tem bastante área verde. São os fantásticos jardins dos palácios e casarões, portanto, sem acesso público. Os Giardini da Bienal ficam no extremo da ilha, alcançáveis ao final de um longo e belo passeio a pé que começa na frente de São Marco. Lá estão os pavilhões nacionais, que são ocupados pelas delegações nacionais nos anos de Bienal. O pavilhão do Brasil é um dos mais bonitos. Projetado por Henrique Mindlin e Gincarlo Palanti, e construído pelo arquiteto italiano Amerigo Marchesin, situa-se às margens de um canal. Por uma coincidência, nunca estive lá em um ano de Bienal.

Renato Anelli e Ana Paula Koury nos arredores da Villa La Rotonda em Vicenza, 1994
Foto Abilio Guerra


Qual a maior pérola escondida em Veneza?

A cidade oferece várias surpresas. A primeira que tive foi no dia que cheguei. Depois de um pequeno repouso no hotel, acordei com o som dos cantores dos passeios de gôndola e sai para dar uma volta. Quando viro a esquina dei de cara com a ponte de entrada da Fundação Querini Stampalia de Carlos Scarpa. Mas o melhor viria no dia seguinte.

Logo pela manhã fomos conhecer a praça e a Basílica de São Marcos. No cantinho da praça, sob as arcadas, a loja da Ollivetti se apresentava discretamente naquela magnífica cena urbana. Falou-se muito de Scarpa na década de 1980 no Brasil, na voga pós-moderna, sem que se percebesse que ele não tinha nada que lhe permitisse ser enquadrado nesse rótulo. No interior, a luz, os recortes dos planos de materiais, que parecem encapar a pré-existência, e as superfícies com os mosaicos revelam seu moderno que incorpora o saber artesanal.

O que não pode se deixar de ver em Veneza?

O forte de Veneza é sua arquitetura, repleta de obras de artes de todos os tempos. Sem uma boa programação com mapa e trajeto predefinido, perde-se muito tempo. Das coisas novas a Fundação Gugenhein tem um bom museu lá, em uma casa onde morou Peggy Gungenhein. O Palazzo Grassi sempre tem boas exposições temáticas de arquitetura, assim como a Fundação Masiero (que teria um projeto de Wright vetado pela prefeitura local). É importante visitar a Giudecca, ilha de onde se vê a cidade do outro lado da Baia de São Marcos.

E visitar o Lido, a estreita faixa de terra que separa a laguna do mar. Não deixe de subir nas torres dos campanários de São Marcos e de San Giorgio Maggiore, de onde se pode ver a cidade do alto.

Abilio Guerra e Renato Anelli, Palmanova, 1994
Foto Ana Paula Koury


Deve-se visitar quais outras cidades do Veneto?

Ainda na laguna é preciso destacar as ilhas de Murano, Burano e Torcello. Murano é famosa pelas fábricas de vidro – vasos, pratos e outros finos trabalhos em vidro colorido preservam uma cultura artesanal de fortes raízes. Burano é uma ilha de pescadores, com seu casario mais simples e colorido, famosa pelo artesanato de rendado. Nas proximidades existe um pequeno conjunto habitacional projeto por Gaincarlo de Carlo, que tenta dialogar com a tipologia local. De Veneza deve-se partir para um giro pelo Veneto, começando por Padova, a cidade mais próxima. Depois Vicenza, a grande concentração de obras de Palladio merece ao menos um dia. Basilica, as igrejas e os palácios e o pequeno teatro, um paradigma para a tipologia teatral do renascimento em diante. Nos arredores situam-se as principais vilas, como a Rotonda, a mais conhecida delas.

Verona vale uma visita?

Além da Arena romana, no centro da cidade, o Museu de Castel Vecchio é a obra mais fascinante. Com projeto de Carlo Scarpa, as ruínas do antigo castelo no centro da cidade e às margens do Rio Adige foram transformadas em um dos mais interessantes museus do pós-guerra italiano. A partir de Castel Vecchio, pelo Corso Cavour, segue-se para a Piazza delle Erbe, com seu mercado ao ar livre e dali para a Piazza della Signoria, formando  um rico complexo de praça cívica.

Um pouco mais adiante, atravessando a Ponte di Pietra, alcança-se um gigantesco anfiteatro romano, muito bem preservado às margens do Rio Adige. Em vários pontos afloram ruínas romanas, cuidadas com inteligentes projetos arquitetônicos que a protegem da vida cotidiana sem impedir a sua presença na cidade.

Renato Anelli, com guarda-chuva, na praça central de Palmanova, 1994
Foto Ana Paula Koury


Qual seu interesse por Palmanova?

Palmanova fica mais distante a nordeste, perto de Udine e já próximo da fronteira com a Áustria e a Eslovênia. Eu tinha muita curiosidade em conhecê-la, pois havíamos feito um projeto lá na Bienal de Veneza de 1985. É fascinante como estando lá, pouco se percebe da sua complexa geometria. Já concebida para os combates com canhões e armas de fogo, a muralha é oculta por um conjunto de fossos e bastiões com altura crescente. Muito diferente das demais cidades fortificadas que visitei. Internamente à muralha a cidade não oferece grande interesse arquitetônico e a geometria das ruas não se sobressai. Em 1994, quando a visitei, a cidade estava bem preservada, situada em uma região bastante ocupada por pequenas propriedades rurais e servida por uma ampla rede de estradas regionais.

sobre o entrevistado

Renato Luis Sobral Anelli, arquiteto (FAU PUCCAMP, 1982), Mestre em História (IFCH, UNICAMP, 1990), Doutor em Arquitetura (FAU USP, 1995), Livre-Docente (EESC USP, 2001). Com apoio do CNPq realizou viagens de pesquisa na Itália (1994 e 1998) e nos EUA (2008). Professor titular e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da USP. É autor de “Rino Levi, Arquitetura e Cidade” (Romano Guerra, 2001) e “Architettura Contemporanea in Brasile” (24 Ore Motta Cultura, 2008)

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