Como foi sua ida para Veneza?
Fui para Veneza em fevereiro de 1994 e lá permaneci morando com minha esposa, a arquiteta Ana Paula Koury, por um ano, pesquisando nos vários arquivos de arquitetura da cidade. Tive o apoio de uma bolsa de doutorado sanduíche do CNPq e fui recebido por dois professores do IUAV (Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza): Guido Zuconi e Francesco Tentori. Pretendia entender as principais características da arquitetura italiana na primeira metade do século XX, procurando conceitos e procedimentos que teriam sido determinantes na formação de Rino Levi em 1926 e que diferenciariam sua produção arquitetônica no Brasil. Veneza era reconhecida internacionalmente por sua produção historiográfica com Manfredo Tafuri, Francesco Dal Co, Giorgio Ciucci, Massimo Cacciari (então eleito prefeito da cidade) e por isso fui para lá.
Qual sua primeira impressão da cidade?
Chegamos a Veneza de avião, depois de uma noite de vôo e uma conexão em Frankfurt. Assim, chegamos do norte, após atravessar os Alpes.
Foi impressionante quando as montanhas nevadas acabaram e vimos o território do Veneto lá em baixo. O Aeroporto fica em Jesolo, em “terra firme”, como dizem lá. Vi Veneza pela primeira vez da janela do avião contra o sol da manhã enquanto pousávamos – só identifiquei o Torre do Campanário de São Marco. De lá fomos com um barco que faz o trajeto pela laguna até a ilha. Contornamo-la até a baia de São Marco, desembarcando de frente à praça, ao lado do Palazzo dei Dodge, entre as duas colunas. Mesmo cansados, não pudemos conter nossa emoção com a força arquitetônica e histórica dessa entrada monumental (era ali que encostavam os navios da República Sereníssima vindos das suas expedições ao Oriente). A porta da frente da cidade.
Qual a melhor forma de se locomover na cidade?
Em Veneza o principal meio de locomoção é andar a pé. O transporte coletivo é feito por pequenos barcos chamados de vaporetos, muito agradáveis e eficientes (compre os passes diários – caros, mas melhores do que os avulsos). No entanto, eles só passam pelos principais canais, não servindo a toda malha urbana.
Há caminhos que atravessam a cidade em várias direções e conectam os principais pontos de referência – Rialto, São Marcos, Estação Ferroviária, etc. Com o tempo e a ajuda de um bom mapa você passa a se localizar bem nesses percursos, que são pouco sinalizados. Esses caminhos são estreitos, com pouco mais de 1,5 m em alguns pontos e são chamados de calle, como no espanhol. Mais larga é a fondamenta, as calçadas entre o alinhamento das construções e os canais. Em alguns lugares os canais foram aterrados, dando origem a caminhos bem confortáveis, mas raros. Os esquemas de Gordon Cullen reproduzem bem as situações de surpresa ao longo desses percursos estreitos, com os palácios, igrejas e torres surgindo em meio a um desses caminhos ou após um pórtico. É fantástico ver San Giorgio Maggiore de Palladio através do pórtico da Torre do Relógio. Demora-se um pouco para perceber que entre ambos existe toda a praça e a baia de São Marcos. O outro meio de locomover são as gôndolas, na sua grande maioria turísticas (algumas fazem um rápido serviço de travessia do Canal Grande em locais distantes das pontes, a preços baixos). Vale a pena, pois as fachadas principais dos palácios se abrem para a água, mesmo nos canais menores pelos quais se navega apenas com barcos pequenos.
Como foi se deparar com o mítico IUAV?
O prédio principal do IUAV é o antigo convento dos Tolentini, reformado com competência por Daniele Calabi na década de 1950 para abrigar a universidade. Depois Scarpa projetou um belo pórtico que marca discretamente a entrada. Ocorreu uma coincidência lamentável quando lá cheguei. Marquei um encontro com o professor Zuconi exatamente no dia em que Tafuri falecera e a escola estava em comoção profunda. O IUAV já era gigantesco em 1994. Algo por volta de onze mil alunos de arquitetura abrigados por vários prédios espalhados pela cidade. Santa Marta, o maior deles, era uma antiga construção fabril junto ao porto. Com a adoção do novo modelo educacional do acordo de Bologna, o IUAV se dividiu em várias faculdades mudando de nome – agora se chama Universidade IUAV de Veneza. Além de assistir ótimas conferências, com nomes internacionais intercalados por professores da casa, eu freqüentava diariamente as bibliotecas. A mais equipada era a do Departamento de História da Arquitetura, ao lado da gigantesca igreja do Frari. A Biblioteca Central no Tollentini era a mais concorrida. Também fiz pesquisas na Biblioteca da Fundação Bienal,cujo acervo é fantástico.
Como é o cotidiano diante de obras de Palladio?
San Giorgio Maggiore, Zitelle e Il Redentore são as três igrejas de Palladio ao longo do Canal da Giudecca que pontuam a paisagem que se vê das margens de São Marco e todo o Sestiere di Dorsoduro. São impressionantes pela volumetria e proporções. Palladio não apresenta grandes surpresas quando se vê suas obras de perto ou de longe, pois o equilíbrio e sobriedade são iguais, independente da distância que se olha. Outras obras renascentistas e barrocas marcam a paisagem urbana da cidade em pequenos largos, como as de Mauro Codussi e de Pietro Lombardo, ou em pontos de destaque, como a maravilhosa igreja votiva Santa Maria della Salute, pela qual eu passava todos os dias para ir ao IUAV.
Quais os locais mais agradáveis da cidade?
A presença do turismo é avassaladora. No Carnaval instala-se mão única para os fluxos de pedestres nas estreitas ruas, único meio de viabilizar a massa de visitantes que afluem para festas como essas. Isso se reflete na transformação progressiva das lojas em comércio de souvenires para turistas.
Fiquei chocado com a quantidade de mercearias, açougues e padarias que conheci em 1994 e que haviam se transformado em lojas de souvenires em 1998, quando retornei à cidade. No dia a dia existem hábitos interessantes e agradáveis. Eles costumam tomar de aperitivo no meio do dia um copo de vinho branco, Sauvignon Blanc ou Prosseco, acompanhados de “cichetes”, tira-gosto semelhante aos “tapas” espanhóis. No centro histórico, o Mercado de Peixes nas manhãs de sábado apresenta a fauna e a culinária veneziana, rica em pescados. Os restaurantes são caríssimos e a maioria não passa de armadilhas de turistas – não coma pizza em Veneza, prefira os sanduíches! Com um bom guia procure um restaurante local e peça um bacalla mantecato, uma das especialidades feitas com bacalhau. Como os restaurantes são muito caros, nos outros dias não hesite em comprar comidas leves nas mercearias e comer nas inúmeras praças, no intervalo dos percursos pela cidade. Vale a pena dormir ao menos uma noite em Veneza. É uma experiência impar pelo som da água e dos barcos e a ausência de carros, que a maioria dos viajantes perde por se hospedar em Mestre, onde os preços são bem mais baratos. Aos finais de semana ocorriam concertos em igrejas e peças dos mais variados perfis.
Os Giardini são um contraponto à pedra e à água?
Ao contrário do que se imagina, Veneza tem bastante área verde. São os fantásticos jardins dos palácios e casarões, portanto, sem acesso público. Os Giardini da Bienal ficam no extremo da ilha, alcançáveis ao final de um longo e belo passeio a pé que começa na frente de São Marco. Lá estão os pavilhões nacionais, que são ocupados pelas delegações nacionais nos anos de Bienal. O pavilhão do Brasil é um dos mais bonitos. Projetado por Henrique Mindlin e Gincarlo Palanti, e construído pelo arquiteto italiano Amerigo Marchesin, situa-se às margens de um canal. Por uma coincidência, nunca estive lá em um ano de Bienal.
Qual a maior pérola escondida em Veneza?
A cidade oferece várias surpresas. A primeira que tive foi no dia que cheguei. Depois de um pequeno repouso no hotel, acordei com o som dos cantores dos passeios de gôndola e sai para dar uma volta. Quando viro a esquina dei de cara com a ponte de entrada da Fundação Querini Stampalia de Carlos Scarpa. Mas o melhor viria no dia seguinte.
Logo pela manhã fomos conhecer a praça e a Basílica de São Marcos. No cantinho da praça, sob as arcadas, a loja da Ollivetti se apresentava discretamente naquela magnífica cena urbana. Falou-se muito de Scarpa na década de 1980 no Brasil, na voga pós-moderna, sem que se percebesse que ele não tinha nada que lhe permitisse ser enquadrado nesse rótulo. No interior, a luz, os recortes dos planos de materiais, que parecem encapar a pré-existência, e as superfícies com os mosaicos revelam seu moderno que incorpora o saber artesanal.
O que não pode se deixar de ver em Veneza?
O forte de Veneza é sua arquitetura, repleta de obras de artes de todos os tempos. Sem uma boa programação com mapa e trajeto predefinido, perde-se muito tempo. Das coisas novas a Fundação Gugenhein tem um bom museu lá, em uma casa onde morou Peggy Gungenhein. O Palazzo Grassi sempre tem boas exposições temáticas de arquitetura, assim como a Fundação Masiero (que teria um projeto de Wright vetado pela prefeitura local). É importante visitar a Giudecca, ilha de onde se vê a cidade do outro lado da Baia de São Marcos.
E visitar o Lido, a estreita faixa de terra que separa a laguna do mar. Não deixe de subir nas torres dos campanários de São Marcos e de San Giorgio Maggiore, de onde se pode ver a cidade do alto.
Deve-se visitar quais outras cidades do Veneto?
Ainda na laguna é preciso destacar as ilhas de Murano, Burano e Torcello. Murano é famosa pelas fábricas de vidro – vasos, pratos e outros finos trabalhos em vidro colorido preservam uma cultura artesanal de fortes raízes. Burano é uma ilha de pescadores, com seu casario mais simples e colorido, famosa pelo artesanato de rendado. Nas proximidades existe um pequeno conjunto habitacional projeto por Gaincarlo de Carlo, que tenta dialogar com a tipologia local. De Veneza deve-se partir para um giro pelo Veneto, começando por Padova, a cidade mais próxima. Depois Vicenza, a grande concentração de obras de Palladio merece ao menos um dia. Basilica, as igrejas e os palácios e o pequeno teatro, um paradigma para a tipologia teatral do renascimento em diante. Nos arredores situam-se as principais vilas, como a Rotonda, a mais conhecida delas.
Verona vale uma visita?
Além da Arena romana, no centro da cidade, o Museu de Castel Vecchio é a obra mais fascinante. Com projeto de Carlo Scarpa, as ruínas do antigo castelo no centro da cidade e às margens do Rio Adige foram transformadas em um dos mais interessantes museus do pós-guerra italiano. A partir de Castel Vecchio, pelo Corso Cavour, segue-se para a Piazza delle Erbe, com seu mercado ao ar livre e dali para a Piazza della Signoria, formando um rico complexo de praça cívica.
Um pouco mais adiante, atravessando a Ponte di Pietra, alcança-se um gigantesco anfiteatro romano, muito bem preservado às margens do Rio Adige. Em vários pontos afloram ruínas romanas, cuidadas com inteligentes projetos arquitetônicos que a protegem da vida cotidiana sem impedir a sua presença na cidade.
Qual seu interesse por Palmanova?
Palmanova fica mais distante a nordeste, perto de Udine e já próximo da fronteira com a Áustria e a Eslovênia. Eu tinha muita curiosidade em conhecê-la, pois havíamos feito um projeto lá na Bienal de Veneza de 1985. É fascinante como estando lá, pouco se percebe da sua complexa geometria. Já concebida para os combates com canhões e armas de fogo, a muralha é oculta por um conjunto de fossos e bastiões com altura crescente. Muito diferente das demais cidades fortificadas que visitei. Internamente à muralha a cidade não oferece grande interesse arquitetônico e a geometria das ruas não se sobressai. Em 1994, quando a visitei, a cidade estava bem preservada, situada em uma região bastante ocupada por pequenas propriedades rurais e servida por uma ampla rede de estradas regionais.
sobre o entrevistado
Renato Luis Sobral Anelli, arquiteto (FAU PUCCAMP, 1982), Mestre em História (IFCH, UNICAMP, 1990), Doutor em Arquitetura (FAU USP, 1995), Livre-Docente (EESC USP, 2001). Com apoio do CNPq realizou viagens de pesquisa na Itália (1994 e 1998) e nos EUA (2008). Professor titular e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da USP. É autor de “Rino Levi, Arquitetura e Cidade” (Romano Guerra, 2001) e “Architettura Contemporanea in Brasile” (24 Ore Motta Cultura, 2008)