Por volta dos anos 936 ou 940, Abd Al-Rahman III ordenou o início da construção de um grande recinto urbano onde se implantariam seu palácio e as sedes dos órgãos administrativos do recém proclamado Califado de Córdoba. A nova cidade constituiria a encenação simbólica do poder califal e a afirmação da superioridade omíada ante seus rivais religiosos e políticos. Menos de um século depois, no ano de 1010, a cidade foi totalmente destruída e saqueada em conseqüência da guerra civil que pôs fim àquele califado independente de Damasco. O passar do tempo e o espólio de suas estruturas completaram lentamente a absoluta desaparição daquela que foi em seu momento, em sua efêmera vida, a cidade mais esplendorosa do Ocidente: Madinat al-Zahra.
Nessa mesma localização onde se situou Madinat al-Zahra, a poucos quilômetros de Córdoba, ante o pé rochoso do monte cuja topografia em declive permitiu desenvolver o ordenado programa urbanístico e o cuidadoso planejamento de toda uma série de sofisticadas infra-estruturas, o lugar de um passado oculto, é ante o qual, quase dez séculos depois, se situaram Fuensanta Nieto e Enrique Sobejano para projetar um edifício que materializa o re-surgimento da cidade desaparecida.
A sede e museu institucional de Madinat al-Zahra se converterão em museu, centro de interpretação e laboratório de pesquisas, o que possibilitará a adequada conservação, catalogação e exposição do ingente volume de material encontrado desde o início das escavações arqueológicas em 1911. Simultaneamente, o conjunto será capaz de atuar como um espaço cultural capacitado para administrar uma difusão pedagógica atrativa e dinâmica para promover o conhecimento sobre o patrimônio material e cultural da cidade, de cuja superfície total de 112 hectares intramuros unicamente se escavou até então uma décima parte.
Em sua evidente impecabilidade como obra arquitetônica subsiste claramente a força da sensatez e sensibilidade de Nieto e Sobejano, que através deste edifício fazem do ato arquitetônico um exercício de reflexão dotado de força material e subjetiva. O museu e sede institucional de Madinat al-Zahra é ante tudo uma obra metafórica que fala da necessidade de consolidar a presença simbólica do passado no presente e para o futuro.
Inspirados pelo próprio ato de escavar e descobrir o oculto que exerce o arqueólogo, os arquitetos conceberam sua tarefa como a de realizar uma construção que conceitualmente não devia significar levantar uma nova edificação. Sua decisão foi criar um edifício "introvertido, que terá aparecido na paisagem silenciosamente, desenterrado", consciente da intensidade da identidade da antiga urbe e da persistência de sua vida latente, voltando a ocupar pouco a pouco seu território.
O edifício se situa sobre a implantação do exterior da medina, aproveitando o traçado de um dos caminhos originais de acesso, evitando condicionar as escavações futuras. Está pensado como um ponto de partida para a visita ao sítio arqueológico, desde o qual este é apresentado ao visitante; o edifício é um corpo horizontal, retangular, de muros de concreto branco à vista, que não quer interferir nem protagonizar o lugar, e que articula seus usos entorno a uma seqüência de cheios e vazios, ambientes de luz e de penumbra, espaços cobertos e pátios. As qualidades materiais e espaciais geram uma mesma entidade indissolúvel com o pragmatismo com que o programa do edifício é resolvido.
O legado do tempo
A decisão dos arquitetos foi buscar uma forma de interpretar o legado do tempo com uma linguagem arquitetônica e alguns processos mentais próprios e coerentes com o presente. Com sua estratégia adotada em Madinat al-Zahra, Nieto e Sobejano demonstram que podem se fazer edifícios belos com um profundo valor simbólico e, ao mesmo tempo, úteis para servir a sua função. Afirmam que o edifício não necessita competir com a essência e o potencial do lugar, mas que pode ser uma peça importante deste complexo entorno sem necessidade de adquirir um protagonismo que se voltaria contra o sentido da própria proposta. Com este exemplo de sensível adequação do edifício a suas circunstâncias, sem renegar a própria essência da arquitetura, evidenciam ser possuidores de uma qualidade que hoje se sente falta na prática arquitetônica. Nieto e Sobejano escolhem fazer do desafio conceitual a base de sua arquitetura e decidem desde uma liberdade imaginativa que elege não ver o passado em ruínas e sim se nutrir da transcendência e essência trans-temporal de Madinat al-Zahra para formular uma noção da arquitetura como intérprete ativo do tempo.
[artigo publicado originalmente no caderno “Cultura|s” do jornal “La Vanguardia”, em 30 de abril de 2008]
sobre o autor
Fredy Massad (arquiteto) y Alicia Guerrero Yeste (licenciada em História da Arte) fundaram o ¿btbW/Architecture, dedicando sua atividade para a análise crítica da arquitetura contemporânea. Colaboradores regulares dos periódicos espanhóis ABC e La Vanguardia, seus artigos aparecem também em diferentes mídias internacionais