A sensação de viajar pelas cidades asiáticas é sempre recheada de surpresas inesperadas e uma contínua sucessão de estranhamentos, permeados por aquela inevitável sensação de ser o estranho do ninho. Essa excentricidade involuntária é acompanhada por um analfabetismo, também involuntário, onde o universo de ideogramas indecifráveis dos outdoors, enquanto por um lado nos dificulta a vida, por outro nos imuniza contra a informação desnecessária para poder concentrar o olhar sobre a cidade. Em todo caso as experiências variam muito em cada país que se visita, e neste caso descreverei o que foi uma das minhas melhores viagens, aquela a uma das maiores cidades do planeta, Tóquio. A viagem foi feita no mês de maio, aparentemente a melhor e única época para visitar o país, cujo verão e inverno são insuportáveis.
A grande diferença das cidades asiáticas com as cidades japonesas é o grau de limpeza, organização e ordem da sociedade nipônica. Ao contrário do que se imagina, essa rigidez, que ajuda na organização do fluxo de seus 22 milhões de habitantes, está longe de fazer da cidade um amontoado de espaços e ambientes previsíveis ou estéreis.
Apesar de haver um boom de desenvolvimento durante os anos 1970, muito marcado pela estética das grandes infra-estruturas (trens, metrô, pontes e a grande parte dos arranha-céus), Tóquio é uma rede de dezenas de micro centros que funcionam com nódulos “temáticos” em torno das principais estações de transporte público. Os estímulos vêm de todas as partes, seja através de luzes, sons, movimento e multidões, ou por códigos ininteligíveis, espaços imprevisíveis e atitude bizarra de alguns cidadãos aventureiros que tentam se enfrentar contra o estereotipo ultra-civilizado, respondendo com o outro lado da moeda, a ultra-esquizofrenia.
Três semanas antes do embarque começa a viagem do arquiteto: coletar dados sobre as obras modernas e contemporâneas, fazer fotocópia de revistas, anotar endereços, contatar amigos dos amigos. Não havia guias de arquitetura (eu morava na China na época, o que me restringiria a qualquer bibliografia em mandarim), e tão pouco haveria a lista de obras mais recentes. A maneira como funcionam os endereços no Japão (mais ou menos como o sistema em Brasília, por quadras) faz com que somente algumas ruas principais da cidade tenham nome.
Para isso entra em campo a mais moderna de todas as ferramentas para o arquiteto viajante: Google Maps. Essa magnífica ferramenta permite viajar de antemão, passeando pelas ruas da cidade, sentindo os espaços urbanos e cores reproduzidos nas fotos aéreas.
Entretanto, elaborar a cartografia da lista de visitas de um arquiteto sem conhecer a escala da cidade parecia tarefa difícil. Felizmente uma das características que mais surpreendem em Tóquio é que as distâncias a serem percorridas são sempre muito menores do que se imagina. Há uma estranha sensação de que a cidade parece ter sido o resultado da “pulverização” da malha urbana ocidental, o que resulta em quarteirões muito diminutos divididos em terrenos estreitos, circundados por pequenas ruas, que justificam o motivo pelo qual a arquitetura unifamiliar se adapta de maneira tão brilhante e resolve de forma criativa as plantas das casas nesses terrenos minúsculos.
Em Roma faça como os romanos: organizei um calendário extremamente preciso, com nomes dos projetos, endereços, estações de trem e metrô mais próximas (em japonês e transcrição “romanizada”), horários dos trens (já disse que os japoneses são pontuais? O trem das 15:34 sai às 15:34 e zero segundo) e os mapas da internet impressos. As revistas e os blogs de arquitetura nos avisam que dois projetos muito interessantes acabavam de ser inaugurados: a Biblioteca da Universidade de Tama, de Toyo Ito, e a Biblioteca da Universidade de Seikei, de Shigeru Ban.
A implantação do projeto de Toyo Ito, com um instigante térreo inteiramente em declive é excepcional, e a estrutura em arcos não idênticos cria belos espaços enquanto a luz natural penetra através das imensos vidros do andar superior, onde se encontram as salas de leitura. No projeto de Shigeru Ban, separa-se os espaços de armazenamento de livros do átrio central, onde os andares se conectam em diferentes alturas a um universo de bolhas de vidro soltas no grande espaço livre do átrio de acesso.
O calendário deveria também incluir o Terminal de barcos de Yokohama, do FOA, em , além das visitas obrigatórias: o Museu de Arte Ocidental de Le Corbusier, a casa Moriyama de Nishizawa (do escritório Sanaa) e o novo Museu de Arte Nacional, de Kurokawa. O museu de Le Corbusier, baseado nos seus estudos para o Museu de Crescimento Ilimitado, é o caso de uma obra menor, devido ao pouco caso feito pelo arquiteto sobre o projeto, embora o esmero dos japoneses na sua realização tenha criado bons detalhes e acabamentos difíceis de se encontrar na sua produção francesa. Surpreende o fato de Le Corbusier ter tido uma reação tão negativa em relação ao país durante a sua única visita em 1955. A “modernidade” da arquitetura tradicional e a leveza de seus painéis deslizantes, ao invés de fasciná-lo (como ocorrera com Gropius e Bruno Taut), acabou sendo caracterizada como “demasiadamente pitoresca para ser chamada de arquitetura”.
Completada em 2006, a Casa Moriyama do arquiteto Ruye Nishizawa (sócio de Sejima no escritório Sanaa) é uma das obras mais surpreendentes por sua ousadia. O limite do “habitável” é transgredido sem pudor algum de submeter o usuário a um modo de vida inédito, rigoroso e assustador.
Os moradores da unidade projetada de forma mais radical são os que precisam sair fora de sua casa para ir ao banheiro e à sala de televisão. Tendo em vista o inverno polar de Tóquio, será que há um revival do penico? O arquiteto fragmenta a superfície de seis apartamentos em cubos autônomos estabelecendo uma relação de “microcosmo urbano” entre si, resultando num projeto de espaço intersticial permeável cuja leitura está necessariamente ligada à vida e relação entre os moradores. O rigor das formas é levado ao extremo e apesar do pouco espaço para a flexibilidade de uso, o projeto é um exemplo da reinvenção constante japonesa.
A cidade oferece inúmeras atrações do ponto de vista antropológico, lúdico e eletrônico. O fato do arquiteto viajante manter um ritmo de sono a seis horas diárias, ajuda no cumprimento do calendário, e se vê surpreendido por um universo de boa arquitetura anônima, auto-referências e momentos históricos da cidade que se percorrem na malha de uma cidade que, aparentemente estagnada nos anos 70, continuamente redefine seus limites e desafios.
Em Akihabara o comércio de videogames e Mangá são verdadeiras lojas de departamentos. As lojas de pachinko, espécie de “bingos” ensurdecedores, ocupam os térreos, enquanto nos andares superiores é difícil acostumar os olhos a tanta informação visual nos corredores entulhados de fliperamas de última geração, bonecos, objetos de colecionador, as fantasias de estudante colegial ou empregada doméstica que ocupam as prateleiras de um sex-shop light e ainda um café extravagante, onde os clientes fazem fila para pagar preços exorbitantes com o intuito de serem servidos por garçonetes vestidas como as suas personagens favoritas de Mangá e, pasmem, sem nenhuma aparente conotação sexual.
É marcante a massa de trabalhadores esperando o metrô no horário do rush vestidos identicamente, como se padronizados dentro de um exército inofensivo de Matrix. A antítese desse modelo é o grito de liberdade das “ovelhas negras”, que às vezes criam personagens em seu imaginário e caminham pelas ruas vestidos como de saíssem de um Mangá (podem ser vistos em sua reunião dominical na Estação de Harajuku), ou ainda acabam fugindo do padrão isolando-se dentro do mundo invisível dos chamados hikikomori.
Uma das facetas mais leves dessa tendência freak japonesa é a loja Ikebukuro, um apartamento em que vivem 15 gatos, decorado com uma temática kitsch felina, onde muitos cidadãos, cujos apartamentos minúsculos da cidade não permitem criar animais domésticos, pagam para passar uma tarde acariciando-os.
Uma das paradas obrigatórias em Tóquio é o maior mercado de peixes do mundo, Tsukiji, onde cada madrugada centenas de atuns são vendidos aos compradores locais, cujo leilão se transformou em ponto turístico. Acordar às 4 da manhã e pegar o primeiro metrô a partir do hotel transformariam aquele dia num dos mais longos da minha vida, mas a visita ao mercado é um dos pontos altos de Tóquio, especialmente por conta do café-da-manhã num dos pequenos restaurantes ao redor do mercado, que servem o sushi mais fresco e delicioso do planeta.
A visita ao mercado Tsukiji é obrigatoriamente seguido pela visita ao Bairro de Ginza, que é uma área que concentra o desenvolvimento de arquiteturas metabolistas (com os marcos importantes como os edifícios de Kurokawa e Tange) e obras contemporâneas de Sanaa, Viñoly, Piano, Ito, entre muitos outros. Omotesando é a rua “prima rica” de Ginza, onde H&deM, MRDV, Ando, Sanaa, Ito têm projetado as novas catedrais das boutiques internacionais.
As inúmeras Tóquios estão escondidas em vitrines, portas e escadas acessíveis pelas ruas estreitas de seus minúsculos quarteirões. Shinjuku é a estação de metrô com o maior movimento diário de passageiros do mundo, 3,5 milhões de passageiros diários, e as suas quase 200 (!!) saídas levam ao bairro mais cosmopolita e dinâmico da cidade, cujas ruas escondem pequenos restaurantes, showrooms, cafés, prostíbulos e cassinos sob os arranha-céus mais altos da cidade. Shibuya, por outro lado, é uma versão mais high-tech de Shinjuku, onde o ponto de partida é a famosa intersecção de ruas em que a faixa de pedestres na diagonal confunde e fascina os estrangeiros, servindo de cartão postal do dinamismo da cidade.
As noites de Tóquio para os pés cansados do arquiteto eram preenchidas com escolhas mais ou menos aleatórias de restaurantes (universo completamente diferente do bairro da Liberdade), visitas a um mega cyber-café chamado Bagus, que mais parece algo entre clube noturno, locadora de DVD, hotel e labirinto (eu só queria ler o meu e-mail e me deram uma cabine com sofá, roupão, pantufas e um buffet livre com todo tipo de bebidas!) e ainda a inevitável incursão a um sex-shop mega store (com surpresas nauseabundas – prefiro não descrever).
Não poderia faltar a experiência dos hotéis-cápsula, também obrigatórios para qualquer viajante arquiteto. O ambiente ultra-retrô anos 70 do interior das cápsulas com o rádio-despertador e televisão embutidos acabam não sendo usados no entretenimento: no final do dia o cérebro, já cansado de absorver tanta informação, faz com que o corpo e a alma, preenchidos com experiências visuais únicas nessa cidade tão fascinante, acabem dormindo como uma pedra.
Porém uma viagem ao Japão não está completa sem uma incursão a um onsen, os famosos banhos japoneses. Com as suas mais de mil fontes termais, os japoneses fazem do banho um ritual muito importante, chegando ao ponto de criar rankings e guias especializados. Como a experiência do onsen deveria ser a mais completa possível, ao invés de ir a um onsen urbano, dedicamos um dia todo à viagem fora de Tóquio, a quase três horas entre trem e ônibus. O onsen Takaragawa foi eleito como um dos mais bonitos do país, e os esforço realmente vale a pena tanto para reciclar os pulmões da cidade grande quanto pela beleza do lugar. As piscinas (escavadas artificialmente) situam-se aos dois lados de um rio muito caudaloso, no meio de um vale verdejante bastante rural.
Ao entrar num onsen, as recepcionistas entregam uma toalha aos visitantes (chamar de toalha é malvadeza, aquilo era menor do que uma toalha de rosto). Mas não é aí onde começa o problema... em nenhum momento, segundo o protocolo, as toalhas devem entrar e “sujar” a água. Para manter a pureza das fontes, o que entra é o corpo nu, obviamente depois de uma boa ducha. Senhoras e senhores, bem-vindos ao Japão de verdade. Ali começam os constrangimentos.
Constrangimento que, como eu veria logo a seguir, era somente meu, pois aquelas senhoras japonesas octogenárias não estavam vendo nada muito diferente do que já teriam visto em suas longas vidas. Porém para mim não era fácil aprender aquele malabarismo inédito. As sensações eram múltiplas, e as habilidades se desenvolviam in loco: como cobrir verso e reverso com a minúscula toalha? Como se livrar da toalha sem que o pulo n’água acabasse expondo livremente a minha “alma” para o grande público? E, especialmente como se adaptar à altíssima temperatura da água, a quase 46° C, enquanto recomenda-se que o movimento seja extremamente vagaroso para evitar a sensação da alta temperatura? Tudo isso em meio a crianças, adultos, senhores e senhoras nus como vieram ao mundo. Numa sociedade considerada conservadora, o ambiente de um onsen parece ser um grito de libertação de todos os traumas e dramas da sociedade japonesa. A minha dica mais valiosa sobre o Japão? Tente despojar-se da toalhinha, o que acaba fazendo muito bem para a mente. Aquele lazer absolutamente familiar e inesperado se transformou no momento mais relaxante da viagem.
sobre o autor
Flávio Coddou é arquiteto e urbanista (PUC-Campinas, 1998) de segunda a sexta-feira, fotógrafo e chef de cozinha nos finais de semana