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architectourism ISSN 1982-9930


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GUERRA, Abilio. Museus da moderna Salvador. Arquiteturismo, São Paulo, ano 02, n. 023-024.07, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/02.023-024/1497>.


Salvador, a primeira e mais duradoura capital do Brasil, é conhecida por suas características de cidade antiga, com um grande e importante patrimônio arquitetônico e urbanístico do período colonial. Sua importância turística está diretamente relacionada com esta condição.

Contudo, é possível visitar a cidade com os olhos seletivamente postos em sua modernidade. O sistema de avenidas de fundo de vale – que se inicia com a Avenida Centenário projetada pelo engenheiro e arquiteto Diógenes Rebouças ainda na década de 1940 e que se amplia de forma consistente para norte nas décadas seguintes – permite um dos mais eficientes fluxos urbanos de automóveis e ônibus do país, ligando com eficiência os mais distantes bairros ao centro da cidade.

Na arquitetura esta modernidade é muito anterior. O famoso Elevador Lacerda, ícone da capital baiana e aliança feliz de elegantes linhas art déco e eficiência infraestrutural, foi inaugurado em 1873. O Instituto do Cacau, marcante obra do modernismo ao largo da influência corbusiana, de autoria do alemão Alexander Buddeüs e do austríaco Anton Floreder, data de 1934.

Por sua autoria qualificada – é do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé – e polêmica gerada desde sua construção – pretensa incompatibilidade de suas características formais e tecnológicas modernas em um sítio urbano de grande valor histórico –, a Prefeitura de Salvador é uma das mais conhecidas destas presenças. Tanto na cidade baixa, como na cidade alta, é possível se observar excelentes edifícios modernos conformando um contexto urbano rico pela diversidade e harmonia.

Considero duas obras imperdíveis: o Centro Admistrativo de Salvador, com os enormes edifícios de estrutura em concreto pré-moldado do Lelé; e o Teatro Castro Alves, do arquiteto Bina Fonyat. Neste, a provocativa forma de cunha do edifício maior é gerada pelo assentamento do seu volume sobre o terreno muito inclinado, que ao se transformar em plano libera o "bico" em vão livre, possibilitando a instalação do segundo edifício, uma lâmina de concreto e vidro que faz as vezes de foyer. A rampa que liga os edifícios passa por um jardim ao ar livre, sob a sombra profunda produzida pelas costas do auditório suspenso. Seguramente é uma das mais fortes influências da Cidade da Música do Rio de Janeiro, projeto de Christian de Portzamparc.

Em uma cidade aonde o grande apelo turístico é seu patrimônio imaterial que se expressa na enorme comunicabilidade dos soteropolitanos e na alegria contagiante de suas festas, em especial o Carnaval de várias semanas, é possível se cumprir uma prazerosa agenda cultural visitando seus numerosos museus. Três deles nos interessam em especial, por serem uma feliz intromissão de princípios modernos em edifícios antigos, chegando a sínteses interessantes entre o presente e o passado.

O primeiro dele é o Solar do Unhão, projeto de restauro de um antigo conjunto arquitetônico do século XVI – casarão, igreja e tulha –, que ao longo dos séculos recebeu diversos anexos e diversos usos, inclusive pavilhões fabris, quando abrigou uma manufatura no final do século XIX. O conjunto localiza-se no extremo norte da cidade baixa, quando a avenida costeira dobra para o interior e passa por baixo do Campo Grande. Sua situação geográfica é impressionante, pois as paredes das construções grandes e pesadas do casarão e de um galpão terminam abruptamente junto ao mar, sustentadas por um arrimo de pedra.

A intervenção moderna foi realizada por Lina Bo Bardi no finalzinho da década de 1950. A decisão mais acertada da arquiteta italiana foi ter demolido diversos anexos para a liberação de um grande terreiro quadrangular, que permitiu uma vista mais desobstruída para o conjunto arquitetônico. Alguns elementos antigos foram mantidos como monumentos do passado – um velho guindaste, o painel de azulejo com São Jorge e o Dragão – e outros foram construídos em clara sintonia com a idade do conjunto – treliçados de madeira em aberturas, escada inteiramente de madeira com encaixes imitando os usados em carros de boi e o contraste entre o caiado branco das paredes com os tons escuros das madeiras e das cerâmicas.

Destinado ao uso cultural, o conjunto tem abrigado seguidas exposições contemporâneas, tornando-se um ponto obrigatório de visitação por suas qualidades artísticas e arquitetônicas, potencializada recentemente com a realização do Parque das Esculturas, que amplia o conjunto para sul, junto à orla, com áreas ao ar livre e edificada sob uma arcada que sustenta a avenida costeira.

Após sua primeira passagem marcante por Salvador décadas antes, quando foi importante elemento de coesão do grupo brilhante de jovens intelectuais e artistas – Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tomzé, Torquato Neto, Capinam, Joaquim Koellreutter, entre outros – Lina Bo Bardi viria a ser convidada na segunda metade dos anos 1980 para uma segunda rodada de projetos a partir de um plano de recuperação do Centro Histórico da cidade – o Belvedere da Sé, o Teatro e Fundação Gregório de Mattos, a Casa do Olodum, a Ladeira da Memória e a Fundação Pierre Berger.

Dentre eles, nosso segundo edifício antigo imperdível que recebeu intervenção moderna, a Casa do Benin na Bahia, edifício histórico situado em um dos lugares mais significativos da vida sócio-cultural da capital baiana. Com sua ampla fachada cheia de portas e janelas denunciando os quatro pavimentos e o telhado de duas águas desenhando como um frontão colonial a fachada principal, a Casa do Benin se impõe na parte baixa do Largo do Pelourinho, praticamente fechando o pátio seco e inclinado de forma trapezoidal conformado pelo casario centenário.

Nesse período, já acompanhada dos arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki e após a realização de sua obra prima, o Sesc Pompéia em São Paulo, a arquiteta italiana já demonstra um grande controle projetual ao determinar o que se manter e o que introduzir de novo, decisões que se tornaram ainda mais complexas diante de uma intervenção anterior, que trocou a antiga estrutura em madeira da edificação por uma estrutura de concreto armado, um tanto desajeitada em uma construção de proporções de frontalidade larga e profundidade estreita.

O peso do concreto foi aliviado com o "encapamento" dos pilares por telas de palmas trançadas a mão. Outra decisão fundamental foi tomar partido de um belíssimo muro de pedra no fundo do casarão, valorizado com a entrada de luz zenital e a presença da escadaria que foi deslocada para o espaço que separa o muro e a primeira série de pilares. O restauro cuidadoso das esquadrias em madeira, a coloção criteriosa de complementos metálicos (guarda-corpos, corrimões e escadas secundárias) acabam dando ao conjunto uma expressiva composição que contrasta e equilibra o velho e o novo.

O terceiro edifício que queremos destacar se coloca na tradição dos outros dois. Trata-se do Museu Rodin Bahia, reforma e restauro do Palacete Comendador Catharino, construído no início do século XX e localizado no bairro Graça, área nobre de Salvador. O projeto, que data do início deste novo século e visa a readequação de uso residencial para expositivo, é de autoria do escritório Brasil Arquitetura, que tem como um dos seus atuais sócios Marcelo Ferraz, que participou como arquiteto associado dos projetos de Lina Bo Bardi na Bahia nos anos 1980.

A intervenção parte de questões presentes nas obras anteriores de Lina em Salvador – em especial a decisão sempre arbitrária de se escolher o que vai ser demolido, o que vai ser preservado e o que vai ser incorporado. Contudo, vai além e com uma decisão forte de projeto já presente no Sesc Pompéia: a construção de um anexo totalmente novo, em concreto armado, criando um grande contraponto em relação à edificação antiga. No Museu Rodin temos ainda a decisão radical de se demolir diversas paredes divisórias (que deixam sua memória impressa nos forros das coberturas), fundamentais no programa residencial, mas problemas intrasponíveis quando se busca um espaço expositivo dinâmico.

Visitar Salvador com os olhos postos em sua modernidade e, em especial, nos seus museus reciclados por arquitetos modernos, é uma ótima opção cultural, que pode ficar ainda melhor com a leitura de alguns textos de apoio.

referências bibliográficas

OLIVEIRA, Olivia de. Lina Bo Bardi. Sutis substâncias da arquitetura. São Paulo, Romano Guerra / Gustavo Gili, Barcelona, 2006.

FERRAZ, Marcelo (org). Lina Bo Bardi. 2ª edição. São Paulo, Instituto Bardi, 1996.

FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

NAHAS, Patricia Viceconti. Brasil Arquitetura: memória e contemporaneidade. Um persurso do SESC Pompéia ao Museu do Pão 1977-2008. Dissertação de mestrado. São Paulo, Mackenzie, 2009.

sobre o autor

Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e do Arquiteturismo

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