Nota inicial. Ao sair da Espanha em direção ao famoso balneário francês Côte d’azur é relativamente simples – um desvio de apenas 40 km – passar pela cidade de Marseille e, no caso de um arquiteto, fazer uma inevitável visita pela Unités d'Habitation – projetada por Le Corbuiser na segunda metade dos anos 1940 –, um protótipo de edifício para uma urbe moderna.
Aproximadamente a 150 km de Marseille encontra-se a pequena Vila de Saint Tropez, provavelmente um dos destinos turísticos mais conhecidos do mundo por suas praias, modelos e atrizes famosas, barcos particulares de dimensões inimagináveis e festas disputadíssimas. Contudo a vila é apenas uma pequena parte de um encantador golfo homônimo e, por incrível que pareça, ainda possível de ser descoberto. Começando pelo vinho; a região tem uma intensa produção de vinho, com ênfases no tipo rosado, uma excelente opção no cálido verão local. A produção é tão importante que os vinhedos – há poucos metros da rochosa linha costeira – dominam a paisagem, justapondo, em alguns pontos, um intenso azul mediterrâneo com o verde listrado dos vinhedos.
Esse cenário forma uma intensa paisagem – não menos mediterrânea que a de casas brancas (espanholas ou gregas) tão presentes no imaginário coletivo – composta por um número importante de pequenas cidades incrustadas em pontos estratégicos, como Ramatuele e Gassin, as duas com a extravagante cifra imobiliária de 10.000 € por metro quadrado.
Ao fugir da sofisticada 1º linha de mar, poluída por um sem fim de arquiteturas residências de todas as possíveis nacionalidades e embrenhando-se no complexo emaranhado de vinhedos, chama a atenção a sutil e elegante arquitetura rural que emerge entre os vinhedos, tipificada em inúmeras residências nas revistas de decoração, mas que aí, em alguns exemplares, ainda mantêm tanto sua lógica construtiva como seu uso original misto: residência e trabalho.
Algumas de suas principais e mais constantes características são: a orientação, protegendo as principais janelas e portas do frio e seco Mistral; os telhados inclinados a duas águas (na direção norte/ sul, a última onde predominam as aberturas); a ausência de janelas e de beirais laterais (leste/ oeste); as telhas de barro; a variação e o alinhamento dos tamanhos das janelas e portas fechadas por tabuas tipo macho e fêmea; os diferentes matizes de cores terrosas; uma série de detalhes como o arremate de chaminés e o acabamento dos beirais (norte/ sul) a partir da sobreposição de telhas, seguindo a tradição construtiva local em que o sentido das vigas principais da cobertura é perpendicular ao da inclinação dos telhados; e o agenciamento de um programa que justapõe a morada e o trabalho rural articulados em volumes de planta baixa e sobrado com diferentes alturas que formam um interessante efeito de claros e sombras sob a luz do sol Mediterrâneo. Tudo indica que a lógica desses volumes evoluiu a partir do “cabanon” francês, tipo de construção primitiva rural que podia ser usada para moradia, trabalho ou armazenamento e que a partir do século XVIII vai assumindo gradativamente papel secundário em direção às casas rurais de volumes acoplados.
Essa arquitetura se impõe na paisagem por sua simplicidade e conveniência, captando a atenção do viajante menos interessado nas lojas da vila de Saint Tropez. Mas porque uma arquitetura marcada por qualidades como simplicidade, correção ou sutileza ainda é capaz de captar o interesse? Uma resposta possível é, sem dúvida, a atmosfera que envolve a essas casas, de enorme atração, composta pelos mundos do Vinho e do Mar Mediterrâneo e, portanto o sincretismo de valores permanentes. No entanto, também se pode ensaiar outra saída como resposta, presente na idéia de “mediterraneidade” utilizada por alguns arquitetos no início dos anos 1930 como forma de solução para o dilema entre uma arquitetura nacional e internacional alicerçada no adjetivo racionalista.
Naquele momento, optou-se pela casa popular mediterrânea “branca” e sem telhado como arquétipo adequado à paisagem, ao clima e, sobretudo, vinculado a uma tradição construtiva local. Portanto, ajustando-se a uma descrição possível de alguns pressupostos formais da arquitetura moderna centro européia dos anos 1920. Como exemplo, essa operação é evidente dentro do grupo de arquitetos catalães, GATCPAC, e principalmente através de Josep Lluis Sert.
Provavelmente se dirigíssemos a descrição destas modestas casas populares que se disseminam por grande parte da costa sul francesa poderíamos aproximá-las como exemplo de solução correta a problemas técnicos, programáticos e climáticos, portanto podendo ser entendidas como racional, mas também de grande interesse estético, devido a sua simplicidade, discrição e cautela. Porém, isso pouco importa nos dias de hoje; e, portanto a primeira tentativa de resposta, sobre a atmosfera de um mundo que ainda parece ser marcado por valores permanentes, mesmo em meio à selvageria turística, parece ser muito mais interessante.
Nota final. É como mínimo curioso que o mesmo Le Corbusier que projetou a Unités d'Habitation Marseille ou cidades de mais de 1 milhões de habitantes, tenha optado em terminar sua vida há poucos kilometros (136) do Golfo de Saint Tropez, em Roquebrune – Cap – Martin, numa pequena cabana de madeira – Le petit cabanon, desenhada pelo próprio Corbusier nos mesmos anos que desenhou a Unités d'Habitation Marseille – debruçada sobre o Mediterrâneo.
sobre o autor
Marcio Cotrim Cunha, arquiteto e urbanista, doutor pela UPC Barcelona e representante do Vitruvius Espanha