A fotografia de Şeyda Sever é indissociável de seu percurso e suas convicções políticas.
Imbuída em um corpo miúdo, repleto de generosidade, marcada por uma perseverança e auto-confiança e uma uma mente lúcida e reivindicativa, Şeyda Sever se formou como jornalista em 1991, mas nunca exerceu a profissão. Trabalha em uma ONG suíça de prevenção e conscientização cívica sobre desastres naturais (que no seu caso, no Oriente Médio, sua ONG está focada sobre os terremotos).
É difícil considerá-la como feminista, mas suas convicções quase sempre tendem a aproximar-se de uma visão menos sexista do mundo. Seu discurso funda-se claramente a favor da tolerância entre as religiões, sexos e nações, porém mais especificamente reafirma em suas entrelinhas o rechaço às injustiças de gênero, e propõe uma releitura, sempre a menos óbvia, sobre o seu país, a Turquia. A célebre essência da Turquia como ponte entre vários mundos extrapola o horizonte geo-político e invade a sua produção fotográfica, reafirma o reconhecimento de individualidades e as relações pessoais estabelecidas em seu caminho e viagens a outros países.
Ela não se considera fotógrafa, e, apesar de sua excessiva modéstia, é capaz de transmitir o seu embate pessoal e os desafios da dicotomia entre individualidade e coletividade. O seu mundo pode ser considerado como um laboratório de tolerância religiosa, política, nacionalismo inclusivo, e inquietude em relação às desigualdades.
Şeyda nasceu no seio de uma família de Rize, no nordeste da Turquia, às margens do Mar Negro. Pertence à minoria Laz, cuja língua, que possui pouco mais de 100 mil falantes, é, segundo a Unesco, uma das línguas em risco de extinção. O fato se agrava por não possuir escrita, é exclusivamente oral. A pertinência a essa minoria étnica e lingüística confiou a Şeyda a bagagem de curiosidade, estímulo e identidade que tange o seu olhar.
A espontaneidade de seu ato de fotografar converte a sua câmera em testemunha de momentos cuja essência vão além da "representação" de um instante. O clique de sua fotografia não é o instante “profissional” do fotojornalista. Se muitas das características técnicas e pictóricas coincidem com as dos grandes mestres por conta das mesmas câmeras usadas (uma Leica M6 e uma Contax G2), a fotografia de Şeyda é inspiradora porque contém um grau de clichês de turismo e drama social presentes no fotojornalismo, porém com deslizes de imperfeição e uma surpreendente domesticidade.
As fotos são envolventes, a fotógrafa parece ser capaz de camuflar-se e tornar-se invisível atrás de sua câmera. A tríade objeto, meio e sujeito acaba tendo pesos, se não iguais, pouco usuais. Porque no caso de Şeyda, a supremacia que a fotografia historicamente legou ao objeto, se funde com a bagagem do olhar tangencial do sujeito (sem a inocência do amateur, tampouco a perversidade do profissional), e o interesse pelas vicissitudes do meio.
Essas características a transformam em uma retratista ímpar. Me refiro àquela senhora de cócoras no Marrocos, num registro tão dramático como poético. E também àqueles jovens reunidos em uma roda de música na Índia, em que é difícil ignorar o fato de ter sido uma mulher a fotõgrafa capaz de retratar tal momento de distensão numa sociedade machista e patriarcal. A pose, ou seja, a preparação do retratado, alguns instantes prévios ao clique, é muito efêmera, e somente possível por conta da cumplicidade instantânea entre sujeito e objeto. As fotografias de Seyda Sever cruzam diversas vezes a fronteira entre reportagem fotográfica e casualidade. Seu olhar é capaz de identificar momentos precisos, e a aparente despreocupação com a “composição” é desconcertante.
Vejamos o caso da fotografia do gato no Marrocos, em que as diagonais estabelecem uma dinâmica entre a figura do gato e os meios-corpos ao fundo. Somos quase incapazes de imaginar o instante posterior àquele clique, o “nosso” gato é esse, naquele exato ponto do campo do obturador. É essa a ficção da fotografia que Seyda conhece tão bem e que é capaz de captar com a sua aparente despreocupação com a composição clássica e axial.
Há ainda uma última observação, acerca do suporte físico. Na série do Marrocos (assim como na série sobre a África, que será publicada posteriormente em Arquiteturismo), percebemos uma escolha deliberada em manter a irregularidade da borda do marco do ampliador até o limite do negativo. Esse modo de apresentar a fotografia é tem um duplo sentido: por um lado, é declaradamente uma apologia à imperfeição, e por outro, reafirma a verdade, a essência íntegra do negativo, em que a “totalidade” da fotografia está presente e patente, sem recortes –nesse caso reafirma a ausência de qualquer intervenção posterior ou afinação da composição, seja durante a revelação quanto na edição digital usando o computador. Os limites irregulares reivindicam a condição da fotografia como ficção, reforçam a ideia de que o instante do clique é imposto, intencional, autoral, e portanto, uma representação dessa impostura. Essa borda irregular, que rechaça a clareza do recorte ortogonal, é uma imperfeição que nos força a expandir mentalmente a fotografia, ir além da imposição do autor dentro das coordenadas no espaço e tempo, desdobrando uma ficção pessoal e duradoura sobre aqueles milímetros suplementares do instante fotografado.
sobre o autor
Flavio Coddou é arquiteto (1998) e um dos editores responsáveis pelo Vitruvius Espanha.