Não me lembro mais das aulas de história que explicavam como o Brasil perdeu a Província Cisplatina, hoje o orgulhoso e pequeno país chamado Uruguai. Quem foi aluno de geografia pouco tempo atrás talvez ainda se lembre porque eles se denominam orientais. Sei apenas que sempre desejei conhecer Montevidéu, sua capital, desde os tempos que, junto com amigos como Nabil Bonduki, Ermínia Maricato e Ioshiaqui Shimbo, comecei a lutar pela construção de habitações de interesse social de qualidade, no início dos anos 1980.
As cooperativas de habitação do Uruguai sempre foram uma referência para os estudiosos e militantes do assunto, iniciadas ainda nos anos 1960. Sua qualidade arquitetônica e urbanística é indiscutível, um modelo para nós, arquitetos brasileiros preocupados com as cidades e as pessoas que nelas vivem. Juntou-se a isso minha admiração pela literatura de Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina) e Mário Benedetti (A trégua), cuja leitura recomendo sem exceções e o modelo político da Frente Ampla. Calhou de poder conhecer o Uruguai agora.
Meu hotel, simples e longe do centro, foi inaugurado pelo próprio presidente da República em 1993, algo que nunca tinha visto antes, isso é coisa para prefeito provinciano, no máximo. A carne, os chorizos (lingüiças), chivitos (presuntos) e pescados são a base da alimentação dos montevideanos e o antigo mercado do porto tem uma série de arapucas para todos os gostos e bolsos, como costumo chamar estes lugares arrumadinhos para turistas acidentais.
Há jogo por todo lado, cassinos legalizados e casas de câmbio se multiplicam pelas movimentadas avenidas. Como sempre, levei prejuízo: o real vale muito lá e o pouco que troquei no Brasil daria o dobro lá.
Passei diante do Estádio Centenário, onde o Brasil costuma quase sempre apanhar no campo e fora dele. Fui conhecer o Shopping Punta Carretas, construído sobre o que foi o presídio político dos Tupamaros, palco da fuga mais espetacular dos tempos da guerrilha de esquerda latino-americana mais bem-sucedida. Tanto que Pepe Mujica foi um deles, preso por quase 15 anos na condição de refém da ditadura. Hoje, é o presidente eleito democraticamente dos uruguaios.
A construção de outro belo shopping urbano é de Eladio Dieste, o engenheiro que colocou de pé a igreja do Cristo Obrero, que não deu tempo de ver, mas que foi um mestre com tijolos armados. Andei bastante pela rambla, uma grande avenida cheia de parques, praias e estátuas, que acompanha o estuário do rio da Prata, paisagem linda e serpenteante, com 22 km de extensão. Por falar em estátua, nunca vi tantas eqüestres na vida, todas as praças tem uma, pelo jeito todo figurão do Uruguai andava a cavalo.
Dei uma corrida a Punta Del Este, cidade americanizada, com uma arquitetura mais luxuosa que bonita. Valeu mais para reconhecer a plana geografia do país e o kitsch da “Casa-pueblo”, obra-processo do artista Carlos Vilaró. Montevidéu é muito mais surpreendente e interessante, mistura equilibradamente arquitetura do início do século 20 com a modernista e a contemporânea, todas com exemplares de qualidade. O trânsito é civilizado, educado, poucos carros, baixa velocidade e táxi barato. Misturam-se carroças com moderníssimos carros elétricos nas ruas arborizadas. O Uruguai é isto, um misto de modernidade e atraso com um quê de nostalgia, há coisas que parecem paradas no tempo, outras sofisticadas e contemporâneas. Em certos aspectos, das cidades que conheço, lembra Havana, tal a riqueza do patrimônio cultural edificado e, às vezes, a Buenos Aires dos bairros mais tradicionais, como Palermo.
Oriundo de Franca, uma cidade onde elas não existem mais, senti inveja da quantidade de livrarias de rua, grandes, enormes, cheias de livros e leitores. No centro antigo, a Cidade Velha, a livraria Linardi & Risso recebeu Vargas Llosa na véspera do dia que passei por ela. Que azar o meu.
Montevidéu é cidade para se conhecer a pé. Calma, tranqüila, nada de correria, do jeito que gosto, calçadas largas e árvores enormes, é um jardim vista do alto onde me hospedei. Um lugar para sentar e ler nas cafeterias, como fizemos no Café Brasileiro, de 1876. Ou no centro, ao lado da fonte dos cadeados (lugar lendário para prender os enamorados), onde a gafe comeu solta, como não podia deixar de acontecer quando viajo. Ao nosso lado, um sujeito enorme que lembrava vagamente o Tim Maia, com um brinco na orelha, tomava seu café. As pessoas começaram a parar e cumprimentá-lo, uma após a outra. Perguntamos ao garçom: “esse é o famoso quem?”
Era simplesmente Ruben Rada, um percussionista famosíssimo, que tem como fãs ninguém menos que Milton Nascimento e Paul MacCartney. Também fui à prefeitura, um enorme e deserto prédio, para procurar um livro sobre as cooperativas habitacionais. Depois que consegui localizar o setor de publicações e encontrar o livro, a burocracia obrigava pagar na tesouraria, em outro andar. Quando entrei, recordei os tempos do banco Hipotecário em Franca, onde meu pai trabalhou e às vezes me levava. O cheiro e o ambiente era o mesmo, de máquinas de datilografia, papel carbono, móveis antigos de madeira escura.
Fui à sede da FUCVAM, a federação das cooperativas de habitação por ajuda mútua, conheci uma de suas intervenções no centro velho. Visitei vários museus, como dos Azulejos e do artista Torres Garcia. Mas um deles eu encontrei fechado, o de artes visuais. Havia um bilhete na porta anunciando a reabertura em fevereiro, embora no website constasse como em funcionamento. Um argentino já tinha deixado um recado malcriado na porta: “pongá-lo na web”. Reclamação de incautos que vieram de longe para dar com a porta na cara. De qualquer maneira, valeu a pena esperar tanto para conhecer o Uruguai. Da próxima vez, vou chamar o Daniel Amor (presidente do SASP) para ir junto. Desde que devidamente liberado pela Berthelina, para mostrar as outras “quebradas” inacessíveis aos turistas, aquelas que só os nativos conhecem.
sobre o autor
Mauro Ferreira (Franca, 1952) é arquiteto (FAU Braz Cubas, 1974), mestre e doutor em arquitetura (EESC-USP), e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais, no campus de Passos. Atua em sua cidade natal, realizando projetos de arquitetura e planejamento urbano. Mantém uma coluna semanal de crônicas no caderno Nossas Letras, do jornal Comércio da Franca. É ficcionista, com contos e romances publicados e premiados. É um dos dirigentes do movimento cultural Laboratório das Artes de Franca.