Araraquara, anos 1970. Adolescente, mas já interessado em arte e cultura, eu vivia a solidão intelectual típica das cidades do interior. Descobri na ocasião, entre entusiasmado e envergonhado, que havia sim vida inteligente por ali. Eu apenas ia aos lugares errados.
Comecei a frequentar então o circuito que envolvia a Biblioteca Mário de Andrade (homenagem ao grande escritor modernista, que escreveu Macunaíma em uma fazenda fincada no município), a Sessão Zoom de cinema de arte (que acontecia à meia-noite do sábado, no Cine Capri da rua 3) e o auditório Dante Moreira Leite, na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", ou simplesmente Unesp Araraquara, onde ocorriam frequentes debates e palestras.
Fui diversas vezes, mas me recordo que o mais prazeroso era ir ao campus – naquela ocasião muito afastado da cidade, situação que mudou radicalmente com o crescimento da cidade até suas proximidades – andando de bicicleta, pois era possível observar, sentindo o vento batendo no rosto, as edificações de concreto armado magnificamente fundidas ao território, cumprindo seu papel de proteger as atividades coletivas do sol abrasador da região.
Depois de anos, me dei conta que, em geral, conhecemos inicialmente os arquitetos e suas obras em aulas, palestras, livros e revistas (e hoje, também na internet), para depois conhecê-las ao vivo, informados e com a percepção controlada por um juízo de valor já estabelecido. Quando, nestas ocasiões, dizemos que gostamos ou não gostamos de uma determinada obra, em grande medida esta percepção imediata está relacionada com o quanto ela deu conta - ou não - das expectativas já sedimentadas.
Minha relação com as obras de Toscano nunca foi assim. Da mesma forma que só soube depois - na verdade, muito muito tempo depois - que o Campus da Unesp Araraquara se originou de um risco seu, o mesmo aconteceu com as belas estações de trem, metrô e ônibus que o arquiteto brindou a cidade de São Paulo, aonde me radiquei depois de formado. Os terminais Largo 13 (trens da CPTM), Vila Madalena (metrô) e Princesa Isabel (ônibus do sistema SPTrans) fazem parte, há muito tempo, do meu cotidiano de pedestre convicto. Eu gostava delas "organicamente", "sensualmente" e, por decorrência, "esteticamente", sem saber da autoria.
Minha ignorância, em parte, era provocada pela própria discrição do arquiteto, que se refletia na pequena difusão de sua obra (a outra parte podemos tributar a minha negligência, pois, como pude verificar depois, todos os projetos importantes do arquiteto tinham sido publicados nas revistas Projeto e AU por ocasião de suas inaugurações). A publicação, em 2002, do belo livro organizado por Rosa Artigas (1) corrigiu em grande parte a falta de informações mais sistemáticas e precisas sobre a obra de Toscano. Na ocasião, eu já sabia que os projetos que tanto gostava eram de sua autoria, mas foi na publicação da Editora Unesp que observei, pela primeira vez de forma atenta, os croquis, os desenhos técnicos e as fotos de detalhes das obras. Folheando o livro era possível constatar: estávamos diante de um grande arquiteto.
De forma muito modesta (2), pude recentemente retribuir ao arquiteto o prazer que suas obras sempre me deram. Na exposição "Viver na floresta" (3) inclui os projetos do Balneário de Águas da Prata, o Campus da Unesp em Araraquara, e os terminais Largo 13 e Princesa Isabel (este último de forma mais completa, com desenhos e fotos de Cristiano Mascaro). E pude também apresentar o livro organizado pela Rosa Artigas para minha grande amiga Valentina Moimas, arquiteta do Beaubourg de Paris e responsável pelo acervo de arquitetura latino-americana da instituição. Moimas se encantou com a obra do arquiteto e, logo depois, com o próprio arquiteto. Convenceu-o a doar originais para o Centre Pompidou e agora sua obra está imortalizada no acervo parisiense (4).
Mas, muito mais importante do que a celebração intelectual é a celebração da própria vida cotidiana, que sua obra construída eleva por sua generosidade espacial-ambiental e por sua qualidade estético-construtiva. Adaptando a frase francesa do período glorioso dos reis à realidade prosaica e republicana de nossa própria condição, podemos afirmar:
— Toscano morreu. Viva o Toscano!
notas
NE
As fotos que ilustram o artigo tiveram a autorização de publiação dada por seus autores, o arquiteto Victor Hugo Mori e o fotógrafo Cristiano Mascaro, amigos do arquiteto João Walter Toscano.
1
ARTIGAS, Rosa (org.). João Walter Toscano. São Paulo, Editora Unesp, 2002.
2
A pequenez da minha atenção por sua obra fica ainda mais evidente quando consideramos que, além do livro monográfico que mereceu, Toscano foi premiado pela Bienal de Sofia (Bulgária, 1987), representou o Brasil na 8ª Bienal de Veneza (Itália, 2002) e foi tema da exposição individual João Walter Toscano, promovida pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, de 6 de outubro a 10 de novembro de 2004. Ver: PEREIRA, Margareth da Silva. João Walter Toscano e a arquitetura da cidade. Arquitextos, São Paulo, n. 05.053, Vitruvius, out. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.053/539>.
3
Arquitetura brasileira - Viver na floresta. Curadoria de Abilio Guerra. Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, 15 de junho a 01 de agosto de 2010. Itinerância: Palácio das Artes, Belo Horizonte, 08 de abril a 08 de maio de 2011.
4
MOIMAS, Valentina. João Walter Toscano (1933–2011). Arquiteto e urbanista. Drops, São Paulo, 12.045, Vitruvius, jun. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/12.045/3926>.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.