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“Viemos do vale do Nilo”. Assim diz uma das narrativas dos Bamoun. “Mais perto de nós os Tikar, povo da savana, nossos ancestrais, que usavam máscaras para dominar a floresta”.
Em Foumban, desde 1394, há uma festa bienal. Acima o Rei ou Sultão El Hadj Mbombo Njoya em seu trono, transportado à praça do festival. Mais à esquerda, no alto, a sua foto com o presidente dos Camarões. Discretamente, na tenda laranja, o patrocínio da empresa francesa de telefonia.
Na praça roga-se o auxílio dos espíritos e dos ancestrais para dirimir os conflitos da comunidade. É o instante em que os chefes tribais "avaliam", numa espécie de parlamento, os dois anos que se passaram. Pedem-se escolas, controle de terras, investimentos. Depois o Rei solenemente responde.
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Na frente do Rei, as antigas dinastias passam em procissão. Contam-se 19, com suas inúmeras mulheres e princesas. Há também guerreiros e notáveis, vice-reis e espíritos, que vagam pela festa. Diz-se que um importante rei do século XX, Ibrahim Njoya, se converteu ao cristianismo e em seguida ao islã, antes de fundar a própria religião, o Nwotkweta. Dele há uma frase de efeito: a proibição da poligamia pelo cristianismo e do álcool pelo islã são restrições muito duras para o homem.
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A procissão se ergue contra a grande mesquita de Foumban. Alguns chefes antecipam os disfarces com folhas e galhos, que servirão para a festa guerreira do domingo. Vejo meus amigos à direita, na ponta dos pés, de chapéus, com suas máquinas fotográficas.
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Na praça, no momento em que insistia para deixar dois finlandeses entrarem na área reservada, perdi a cena do sacrifício. Depois do discurso do Sultão, imola-se um cordeiro aos pés do microfone. Na internet é possível encontrar um artigo detalhando a prática do sacrifício no povo Bamoun e a islamização da comunidade a partir de 1916.
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Na sexta-feira, o Ngoun, espírito que protege a cidade, o povo e a tradição, entra no palácio do Sultão. Com danças e tambores, vem trazido por príncipes, guerreiros da tribo, chefes religiosos. Um deles, quando nota a presença de mulheres em nosso grupo, pede que se afastem. As mulheres não devem ver o Ngoun.
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No domingo cedo pela manhã toda a comunidade sai às ruas para a cerimônia do Fit-nkindi, a “convocação dos guerreiros”. Fecha-se à circulação de carros a avenida principal, que vai do portal da cidade até o palácio do Rei. Num grande carnaval, apesar da encenada hostilidade, canta-se um familiar "Ô, iá-iá", "Ô, iô-iô".
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As fotos de domingo não revelam uma curiosidade. Para cada uma delas, como a do rapaz acima, uma outra com nós mesmos, o fotógrafo, os “brancos”, foi “cobrada” pelos guerreiros Bamoun. Assim, nos juntávamos para concorridas sessões de fotos de família, celebração da paz na guerra. “Eu posso também te filmar?”, me diziam.
sobre os autores
Albert Masias (Barcelona, 1984) é fotógrafo especializado em fotografia documental e foto-jornalismo. Vive atualmente em Yaoundé (Camarões), onde realiza um projeto multimídia partindo da fotografia para documentar a situação dos habitantes da cidade que perderam casa ou trabalho em virtude das transformações urbanas ligadas a interesses políticos e econômicos. Realizou outros projetos fotográficos na Palestina e em Sarajevo.
Pablo Simpson (Rio de Janeiro, 1976) é professor de literatura, crítico literário e poeta.
[fotos de Albert Masias, texto de Pablo Simpson]