A diluição do patrimônio
O Egito é sempre lembrado como um dos berços da civilização, inovações arquitetônicas marcaram a era faraônica e serviram de referência para avanços construtivos e tecnológicos posteriormente. Mas será que hoje os egípcios continuam a ser essa mesma civilização que serve de laboratório para outras nações? Presumo e afirmo que sim pelo legado construído, porém, com significantes ressalvas. Essa é uma opinião baseada nos quatro anos residindo e trabalhando aqui.
Não tão magníficas é a melhor definição para uma visita as pirâmides de Gizé, o tecido urbano avançou e alcançou as beiradas do famoso “plateau”, deixando as construções sem o devido esplendor. Tratando-se das únicas construções remanescentes das consideradas “sete maravilhas do mundo antigo”, datadas acerca de 2560 a.C., cria-se uma expectativa enorme quanto ao cuidado e condições de tal lugar. Infelizmente a realidade é outra, há uma enorme poluição visual, um trânsito desordenado de pedestres e veículos, o livre e descontrolado comércio de ambulantes, a carência de sinalização e informações turísticas, entre outras facetas de tal desordem. Essa situação reflete o desrespeito com relação ao patrimônio construído, um abuso e crescimento desenfreado quanto ao uso da terra, e a falta de identidade na maioria das intervenções e renovações urbanas e arquitetônicas contemporâneas.
O Cairo de hoje
A cidade do Cairo, considerada no passado capital do mundo é conhecida internacionalmente por seus contrastes e complexidade visual. A famosa urbe, encontra-se mais do que nunca em um processo de banalização e descaracterização urbana. Ao longo dos últimos anos a degradação paisagística se acentuou, o que intrigantemente serve cada vez mais como chamariz para o turismo. A urbe ainda se mantém “demarcada” geograficamente pelo curso do Rio Nilo e pelo início do deserto do Sahara, enquanto distritos e bairros se confundem e diluem através de logradouros, praças e elevados. Com uma população de mais de oitenta milhões de pessoas, sendo mais de quinze no Cairo e subúrbios, o desenvolvimento e planejamento urbanístico se tornaram ineficazes. Como muitas outras cidades a especulação imobiliária dita as regras e passa a todo vapor ignorando normas e leis. Bairros concebidos e construídos para edificações de dois a três pavimentos, evaporam e dão lugar a espigões, fruto da total falta de planejamento e descaso com a legislação. Essa mutação já reflete no caótico trânsito, que ainda é um dos maiores entraves quanto ao desenvolvimento da cidade. A exploração de meios de transportes fluviais, uma vez que o Rio Nilo corta a cidade de norte a sul adjacente a zonas de extremo interesse, seria uma boa alternativa que agregaria valor no bem estar e na qualidade de vida dos cidadãos, porém não é devidamente explorado.
Acupuntura urbana
Entretanto, renovações vêm aparecendo e seguem o mesmo escopo: embelezamento do próprio espaço, ignorando o entorno. Colagens arquitetônicas e adereços exteriores pipocam como sarampo e descaracterizam ruas antes decadentes, porém possuidoras de um padrão e linguagem. Algumas das mais recentes se qualificam por um retrofit pontual que ignora o contexto do todo e age por conta independente. É um processo de acupuntura sem benefícios, aonde somente a “dor” tem vez, a recuperação se percebe apenas pelo impacto visual que o novo adorno representa. Fica difícil associar esse processo a arquitetura antes tão emblemática devido a riqueza e sofisticação de detalhes, tais como musharabis, geometria dos mosaicos, texturas, o jogo de luz e sombras, entre outros. Estes detalhes vem se perdendo, ficando para trás e esquecidos por trás de colagens metálicas. Hoje, muitos profissionais não fazem uso deste “vocabulário”, se entregando a soluções que maquiam o patrimônio construído, intervenções desconectadas e de qualidades estéticas questionáveis. Ao longo do último século, alguns conseguiram fugir a regra e desenvolveram obras de destaque como Hassan Fathy. Fathy, que elaborou uma arquitetura vernacular associada ao Egito, é reconhecido pelo estilo simples e eficaz, sumarizando conceitos climáticos práticos e elaboração de espaços funcionais. Ele e seu legado são de referência para inúmeros arquitetos que vivem as voltas entre desenvolver o estilo contemporâneo egípcio ou sucumbir a modelos internacionais sem identidade.
Construção e aparência
As construções no Cairo são famosas por prédios que expõem suas tubulações e instalações ao longo de suas fachadas. Essa característica ou descaso faz-nos lembrar do centro cultural Georges Pompidou em Paris, projetado por Richard Rogers e Renzo Piano, aonde estes elementos complementares viraram o atrativo e ponto de referência na arquitetura. Neste caso as tubulações e dutos foram pensados e identificados de tal maneira a dar uma identidade ímpar a arquitetura criada. A história por aqui é bem diferente, cada proprietário customiza sua fachada e inseri os elementos e cores que desejam. Edificações recém concluídas já são vitimas de alterações que descaracterizam e desfiguram as fachadas. Aparelhos de ar condicionado, antenas parabólicas, fiações, outdoors, varais de roupa, dentre outros elementos expostos ao longo das fachadas, já são quase um pré-requisito.
Um novo rumo
Ao decorrer da última década, novos projetos vêm sendo anunciados, tanto pela iniciativa pública quanto privada, com parte dos projetos de maior destaque sendo entregues a equipes estrangeiras. É um fato que ocorre em outras capitais na busca por uma maior exposição internacional. Essa troca tem tudo para ser benéfica, permeando pela educação e formação de novos profissionais locais, que muitas vezes se vêm limitados pelos poucos investimentos e projeções do mercado de trabalho no país, porém é sempre um assunto polêmico que gera muito desconforto e diferentes opiniões.
No projeto do novo campus da Universidade Americana do Cairo, inaugurado em 2008, a interação de profissionais estrangeiros e egípcios aconteceu de forma exemplar. O projeto culminou num interessante exemplo de design contemporâneo baseado na tradição e conceitos da arquitetura egípcia. A presença do escritório egípcio Abdel-Halim Community Development Collaborative como umas das equipes principais – juntamente com os americanos do Sasaki and Associates – foi fundamental para que todos os times entendessem a essência e linguagem da arquitetura local e traduzissem para um campus contemporâneo, arrojado e harmônico.
Outros projetos que merecem destaque são o da Biblioteca de Alexandria e o “Grande Museu do Egito”, ambos frutos de concurso internacional. A biblioteca teve como vencedor o escritório norueguês Snohetta, que desde sua inauguração em 2002 tem sido bastante elogiado e segue um pouco o fenômeno da cidade de Bilbao na Espanha, aonde a construção do museu Guggenheim se tornou um marco turístico além de arquitetônico. O museu, vencido pelo escritório irlandês Heneghan Peng Arquitetos está em fase de construção e tem previsão de término para 2013.
Recentemente foi anunciado o projeto de remodelação do centro internacional de exibições, no qual mediante uma competição carta-convite, teve o escritório de Zaha Hadid vencedor. O conceito foi criar uma massa homogênea que se adapte aos limites do terreno. O resultado remete aos processos de escultura e talha, utilizados pelos ancestrais egípcios. Seu escritório também foi comissionado com o projeto de uso misto chamado “Stone Towers”, aonde os complexos desenhos e texturas presentes nos minaretes do Cairo juntamente com as desenhos dos hieróglifos egípcios serviram de referência abstrata para o design dos blocos.
Acredito que o trabalho dos arquitetos Reese Campbell e Demetrios Comodromos não seja tão utópico. A dupla desenvolveu um arranha-céu no coração da cidade. É um trabalho especulativo onde utilizaram a tipologia formal do arranha-céu para diminuir e frear o avanço da cidade, propondo a maior densificação do tecido urbano. Após investigar a falta de construções de torres na cidade eles propuseram um arranha-céu que verticaliza a complexa relação das redes sociais informais com a forma urbana e cívica. O resultado é uma edificação impactante que segue o padrão estético do entorno propondo um interessante jogo de volumes sobrepostos e interconectados.
Fica aqui a esperança de que a arquitetura local resgate seus valores e seja novamente referência para outras culturas, uma vez que inspiração não falta nesta cidade.
sobre o autor
Leonardo Ferreira Castello é arquiteto e urbanista graduado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro (2002). Também foi docente da mesma instituição entre 2006 e 2007 na qual lecionou a disciplina “Projeto de Arquitetura”. Ao final do ano 2000 teve a sua primeira experiência de trabalho fora do país ao residir e trabalhar na cidade de Barcelona, Espanha. A partir daí começou a focar sua carreira fora do Brasil, o que o levou a China em 2005, aonde passou um ano trabalhando em diversos projetos de média e larga escala, em sua maioria complexos residenciais, comerciais e de uso misto. Atualmente reside na cidade do Cairo, Egito, aonde trabalha para a empresa Dar Al-Handasah Shair and Partners, uma consultoria multinacional de planejamento, design e implementação de projetos e que possui destaque internacional com sua atuação no Oriente Médio, África e Ásia desde 1956.